Segunda-feira, 24.08.09

As bibliotecas têm fantasmas

Bibliomanias
 
José Mário Silva
 
As pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas obcecadas por livros. A bibliofilia não é apenas uma doença crónica; é também contagiosa. Ao lermos sobre as grandes bibliotecas pessoais – com dezenas ou centenas de milhares de volumes – aspiramos a uma igual desmesura, subitamente embaraçados com a pequenez, a desordem e as lacunas da dúzia e meia de estantes lá de casa. Melhor dito: as pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas ainda mais obcecadas por livros do que elas. E foi por isso que devorei de uma assentada o ensaio breve de Jacques Bonnet intitulado Des bibliothèques pleines de fantômes (Denoël, 2008, 138 páginas).
 
Editor, tradutor e autor de livros sobre pintura, Bonnet é um bibliómano que nos escancara a sua bibliomania, não escondendo um certo exibicionismo e uma certa ostentação (nalguns casos até uma certa vaidade), próprios de qualquer bibliómano que se preze. Por muito que mencione as bibliotecas dos outros, ele regressa sempre à sua, minuciosamente descrita em dezenas de páginas que chegam assemelhar-se a um catálogo bibliográfico. Através dos seus livros, é a sua vida, é a sua biografia que se desenha. Nada de muito espantoso, diga-se. Faz parte da natureza das bibliotecas tornarem-se um espelho do seu proprietário. E quem as saiba «descodificar com subtileza» encontrará nelas, mais ou menos escondida, "a natureza profunda do seu bibliotecário".
 
Ao recordar a forma como chegou a certos livros, Bonnet revela, de facto, alguns aspectos da sua personalidade, como a perseverança e a extrema atenção aos detalhes. Por exemplo, a abrir o ensaio, aborda o célebre episódio em que Fernando Pessoa se candidatou ao lugar de conservador-bibliotecário do museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, corria o ano de 1932. Como se sabe, o poeta dos heterónimos acabaria por ser recusado, em favor de um "pintor obscuro". Ao citar a carta de candidatura de Pessoa, com a sua "retórica insólita", Bonnet explica que a encontrou reproduzida na Fotobiografia de Maria José de Lencastre (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), por si comprada em 1983, por 500 escudos, numa livraria de Coimbra, cidade em que se lembra de ter visto uma mulher a andar na rua com uma máquina de costura equilibrada sobre a cabeça.
 
Na linha do que sugeriram Borges e Bachelard, para Bonnet a biblioteca é o que mais se aproxima da ideia de paraíso terrestre. Ela é um "concentrado de tempo e de espaço", protege da "hostilidade exterior", como se fosse um útero, e confere "um sentimento de poder absoluto". Rodeado pelos seus livros, o bibliómano nunca se sente desamparado. Sabe que tem, sempre ao seu alcance, os instrumentos necessários para interpretar a realidade. E não lhe falem da Internet e suas infinitas reservas de informação. Por muito que se encontre por lá tudo o que se queira saber, quase instantaneamente, ela é "desprovida de fantasmas", diz Bonnet, falta-lhe a dimensão "divina".
 
A maior parte do ensaio centra-se nas alegrias e tormentos de quem possui uma biblioteca "monstruosa", com dezenas de milhares de livros. E não faltam histórias incríveis. Como a de Antoine-Marie-Henri Boulard (1754-1825), que encheu nove prédios, adquiridos expressamente para receberem os seus 600 mil livros – após a sua morte, ao venderem a colecção, os filhos inundaram o mercado, baixando durante muitos anos os preços nos alfarrabistas. Ou a de Charles-Valentin Alkan, pianista virtuoso que morreu esmagado por uma estante, em 1888, o que o habilita ao estatuto de "santo mártir" dos bibliófilos. Ou a daquele condenado à guilhotina que continuou a ler enquanto o conduziam ao cadafalso e, chegada a hora, marcou a página onde estava, antes de entregar o pescoço à lâmina.
 
Além de analisar as complexas questões logísticas e imobiliárias associadas às bibliotecas proliferantes, Bonnet dedica muito espaço ao bicudo problema da classificação e arrumação, multiplicando hipóteses, sistemas e estratégias. Eu, à minha reduzida escala, também conheço o dilema. Não sei, por exemplo, onde colocar, agora que acabei de o ler, este livrinho a abarrotar de livros (e de fantasmas) lá dentro.
 
 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel 

Imagem: Natureza morta com crânio - Paul Cézanne, Pintura - óleo sobre tela, circa 1900

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publicado por ardotempo às 18:38 | Comentar | Adicionar

É a vida

A Dona Olga e eu

António Lobo Antunes
 
Mora aqui, num destes prédios sem idade nem elevador, sempre vestida como para um baptizado ou um casamento, de boininha verde na cabeça, toda pinoca: nenhuma prega, nenhuma nódoa, um camafeu a fechar-lhe a gola, pulseiras, anéis, o caracol trabalhado sobre a linha de lápis castanho das sobrancelhas.
 
Deixa uma cauda de perfume atrás, um sorriso difícil à frente. Rugas no lugar das covinhas das bochechas: que idade terá? Quase não se percebe a falta de dinheiro, quase não se percebe a solidão: domingos compridíssimos, o retrato de um sargento da Marinha na cómoda: isso vejo do passeio porque a sala é pequena e o rés-do-chão baixo. Ao lado do sargento, num prego, o calendário com um mês de atraso: janeiro e por cima dos dias todos de janeiro uma paisagem de montanha, um lago, um pastor a tocar flauta sentado numa pedra, de mindinhos suspensos. Um gato na almofada de uma cadeira, que só existe quando não estamos a olhar. Se olharmos a almofada vazia, com rosas de cetim bordadas. Às vezes uma jarrita de flores a acompanhar o sargento. Ao cabo de uma semana a água da jarrita amarela escura.
 
Gostava tanto, por ela, que na cómoda do retrato houvesse uma gaveta cheia de cartas do militar. Dando a volta ao prédio a cozinha: quase nada nas prateleiras. Não: um duende de borracha a sorrir, com o boné inclinado para a nuca e uma lata com uma amolgadela que diz Feijão.
 
Em casa dos meus pais latas que diziam Feijão, Arroz, Grão, Sal: procurava-se lá dentro e tudo trocado. Ou vazias. Na última chocalhava uma moeda ferrugenta, alemã. Sacudia-se a lata e a moeda a cantar. Em alemão acho eu, porque não entendia as palavras. Uma parte da minha ascendência é alemã: trisavô Rudolf, trisavó Josephine. Loiros, de olhos claros.
 
Pareço-me com eles. O trisavô Rudolf inventou uma carruagem muito alta, sem portas, que guiava de uma banco empoleirado no tejadilho. Conta-se que ia perdendo filhas pelo caminho, devido ao baloiçar da geringonça. Não perdeu a bisavó Paulina, feia como a noite dos trovões, porque ando aqui. A prosa está a sair-me toda torta, acho que perdi a mão para escrever. Recomecei esta crónica umas cinco vezes. E a esposa do sargento da Marinha nem sequer põe problemas, em condições normais era só deixar correr a esferográfica. Não corre. Cada letra custa. Bom, fiquei a espreitar a cozinha. A lâmpada do candeeiro mais perto fundira-se e creio que não me viu. Trazia o retrato que poisou na bancada a embirrar com o duende, e aqueceu a sopa num tachito. Não lhe faltavam os anéis, nem o camafeu, nem a boina. Acabada a sopa descascou uma maçã para dentro do prato, e foi-a comendo com a ajuda da faca, quase de costas para mim. O gato que só existia quando não olhávamos arredondou-se numa mesa de tampo de oleado. Reparei na coleira com um guiso silencioso. A senhora acabou a maçã e ficou eternidades quieta a observar as mãos. Ajeitou a boininha.
 
A torneira do lava-loiças pingava lágrimas custosas que não tombavam logo, rodeavam o bico primeiro, hesitando, até acederem num desgosto pesado. De minuto a minuto uma melancolia transparente achatava-se no ralo, uma nova tremura principiava a inchar. As árvores fabricavam um ventinho distraído. A senhora levou o retrato para a sala: presumo que conversavam de barcos. De barcos não acredito: o sargento apresentava-se mais a um sargento de secretaria, desses que carimbam, carimbam. A tertúlia dos reformados juntava-se no café do paquistanês e a senhora imóvel na sala a responder ao marido finado.
 
Descontados os barcos de que falariam, à sombra do janeiro remoto do calendário? Rugas no lugar das covinhas das bochechas, o despertador a sofrer do coração no quarto, empurrando minutos na direcção de quê? A lata, ofendida, repetia Feijão feijão feijão. O gato voltou aos bocadinhos, uma pata, o focinho, a orelha direita, o resto do bicho no corredor ou na copa, invisível, secreto. Apetecia-me estar ali com ela, em silêncio, pegar-lhe no cotovelo, cumprimentar
 
 - Olá.
 
Explicaram-me que anda a tratar-se no hospital, avia gotas na farmácia, injecções de beber, entra no cabeleireiro, fiado, antes das consultas:
 
- Estou melhor
 
aposto que com o retrato do marido na carteira: a companhia do defunto ajuda, o sargento tem cara de homem sério. Segundo a proprietária do quiosque de revistas deu-lhe um aneurisma
 
(- Essas veias que rebentam)
 
e ficou negro no soalho, a espernear. Quando acabou de espernear a boca aberta numa surpresa enorme, a dentadura a descolar-se
 
(- Uma dentadura cara, com ganchos de arame para agarrar lá atrás)
 
o indicador ainda a encolher-se e a esticar. Quando deixou de se encolher e esticar fardaram-no
 
(- Tinha uma medalha e tudo)
 
e sumiu-se do bairro. Imagino um caixão em forma de corveta, com um carimbo em cima. É a vida 

(- É a vida)
 
ninguém cá fica para semente. Ou seja fica o duende, fica o calendário, fica a almofada, fica ela sempre vestida como para um casamento ou um baptizado, toda pinoca. Quase não cumprimenta as pessoas: o camafeu não lhe fecha apenas a gola, fecha-lhe a alma inteira. Dona Olga
 
(- Chama-se Dona Olga)
 
que substitui os sapatos por chinelos e espera. Quem? O médico verifica-a nos aparelhos, aumenta as gotas, diminui as gotas. Segreda-se que tem um filho no Luxemburgo
 
(- O Armando)
 
e a proprietária do quiosque
 
- Luxemburgo o tanas, na cadeia 
 
em consequência de uma ourivesaria a jeito: é a vida
 
(- Se o pai sonhasse)
 
mas o pai não sonha, incha na moldura, com a condecoração. A sopinha, a maçã. Às vezes a dona Olga tem uma nesga da janela aberta, e diante da nesga da janela aberta o que queria mesmo era encontrar a lata onde chocalhava a moeda alemã, tirar a moeda e deixar-lha no peitoril. Mesmo que não servisse para pagar o cabeleireiro a dona Olga podia agitá-la na palma e ouvi-la cantar numa língua estrangeira.
 
 

© António Lobo Antune

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publicado por ardotempo às 14:06 | Comentar | Adicionar

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Obrigado, José Simões. Conforme reza a regra, a passagem do bastão deve acontecer na área assinalada e no tempo certo. Viver não é preciso...

 

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publicado por ardotempo às 13:51 | Comentar | Adicionar

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