A Dona Olga e eu
António Lobo Antunes
Mora aqui, num destes prédios sem idade nem elevador, sempre vestida como para um baptizado ou um casamento, de boininha verde na cabeça, toda pinoca: nenhuma prega, nenhuma nódoa, um camafeu a fechar-lhe a gola, pulseiras, anéis, o caracol trabalhado sobre a linha de lápis castanho das sobrancelhas.
Deixa uma cauda de perfume atrás, um sorriso difícil à frente. Rugas no lugar das covinhas das bochechas: que idade terá? Quase não se percebe a falta de dinheiro, quase não se percebe a solidão: domingos compridíssimos, o retrato de um sargento da Marinha na cómoda: isso vejo do passeio porque a sala é pequena e o rés-do-chão baixo. Ao lado do sargento, num prego, o calendário com um mês de atraso: janeiro e por cima dos dias todos de janeiro uma paisagem de montanha, um lago, um pastor a tocar flauta sentado numa pedra, de mindinhos suspensos. Um gato na almofada de uma cadeira, que só existe quando não estamos a olhar. Se olharmos a almofada vazia, com rosas de cetim bordadas. Às vezes uma jarrita de flores a acompanhar o sargento. Ao cabo de uma semana a água da jarrita amarela escura.
Gostava tanto, por ela, que na cómoda do retrato houvesse uma gaveta cheia de cartas do militar. Dando a volta ao prédio a cozinha: quase nada nas prateleiras. Não: um duende de borracha a sorrir, com o boné inclinado para a nuca e uma lata com uma amolgadela que diz Feijão.
Em casa dos meus pais latas que diziam Feijão, Arroz, Grão, Sal: procurava-se lá dentro e tudo trocado. Ou vazias. Na última chocalhava uma moeda ferrugenta, alemã. Sacudia-se a lata e a moeda a cantar. Em alemão acho eu, porque não entendia as palavras. Uma parte da minha ascendência é alemã: trisavô Rudolf, trisavó Josephine. Loiros, de olhos claros.
Pareço-me com eles. O trisavô Rudolf inventou uma carruagem muito alta, sem portas, que guiava de uma banco empoleirado no tejadilho. Conta-se que ia perdendo filhas pelo caminho, devido ao baloiçar da geringonça. Não perdeu a bisavó Paulina, feia como a noite dos trovões, porque ando aqui. A prosa está a sair-me toda torta, acho que perdi a mão para escrever. Recomecei esta crónica umas cinco vezes. E a esposa do sargento da Marinha nem sequer põe problemas, em condições normais era só deixar correr a esferográfica. Não corre. Cada letra custa. Bom, fiquei a espreitar a cozinha. A lâmpada do candeeiro mais perto fundira-se e creio que não me viu. Trazia o retrato que poisou na bancada a embirrar com o duende, e aqueceu a sopa num tachito. Não lhe faltavam os anéis, nem o camafeu, nem a boina. Acabada a sopa descascou uma maçã para dentro do prato, e foi-a comendo com a ajuda da faca, quase de costas para mim. O gato que só existia quando não olhávamos arredondou-se numa mesa de tampo de oleado. Reparei na coleira com um guiso silencioso. A senhora acabou a maçã e ficou eternidades quieta a observar as mãos. Ajeitou a boininha.
A torneira do lava-loiças pingava lágrimas custosas que não tombavam logo, rodeavam o bico primeiro, hesitando, até acederem num desgosto pesado. De minuto a minuto uma melancolia transparente achatava-se no ralo, uma nova tremura principiava a inchar. As árvores fabricavam um ventinho distraído. A senhora levou o retrato para a sala: presumo que conversavam de barcos. De barcos não acredito: o sargento apresentava-se mais a um sargento de secretaria, desses que carimbam, carimbam. A tertúlia dos reformados juntava-se no café do paquistanês e a senhora imóvel na sala a responder ao marido finado.
Descontados os barcos de que falariam, à sombra do janeiro remoto do calendário? Rugas no lugar das covinhas das bochechas, o despertador a sofrer do coração no quarto, empurrando minutos na direcção de quê? A lata, ofendida, repetia Feijão feijão feijão. O gato voltou aos bocadinhos, uma pata, o focinho, a orelha direita, o resto do bicho no corredor ou na copa, invisível, secreto. Apetecia-me estar ali com ela, em silêncio, pegar-lhe no cotovelo, cumprimentar
- Olá.
Explicaram-me que anda a tratar-se no hospital, avia gotas na farmácia, injecções de beber, entra no cabeleireiro, fiado, antes das consultas:
- Estou melhor
aposto que com o retrato do marido na carteira: a companhia do defunto ajuda, o sargento tem cara de homem sério. Segundo a proprietária do quiosque de revistas deu-lhe um aneurisma
(- Essas veias que rebentam)
e ficou negro no soalho, a espernear. Quando acabou de espernear a boca aberta numa surpresa enorme, a dentadura a descolar-se
(- Uma dentadura cara, com ganchos de arame para agarrar lá atrás)
o indicador ainda a encolher-se e a esticar. Quando deixou de se encolher e esticar fardaram-no
(- Tinha uma medalha e tudo)
e sumiu-se do bairro. Imagino um caixão em forma de corveta, com um carimbo em cima. É a vida
(- É a vida)
ninguém cá fica para semente. Ou seja fica o duende, fica o calendário, fica a almofada, fica ela sempre vestida como para um casamento ou um baptizado, toda pinoca. Quase não cumprimenta as pessoas: o camafeu não lhe fecha apenas a gola, fecha-lhe a alma inteira. Dona Olga
(- Chama-se Dona Olga)
que substitui os sapatos por chinelos e espera. Quem? O médico verifica-a nos aparelhos, aumenta as gotas, diminui as gotas. Segreda-se que tem um filho no Luxemburgo
(- O Armando)
e a proprietária do quiosque
- Luxemburgo o tanas, na cadeia
em consequência de uma ourivesaria a jeito: é a vida
(- Se o pai sonhasse)
mas o pai não sonha, incha na moldura, com a condecoração. A sopinha, a maçã. Às vezes a dona Olga tem uma nesga da janela aberta, e diante da nesga da janela aberta o que queria mesmo era encontrar a lata onde chocalhava a moeda alemã, tirar a moeda e deixar-lha no peitoril. Mesmo que não servisse para pagar o cabeleireiro a dona Olga podia agitá-la na palma e ouvi-la cantar numa língua estrangeira.
© António Lobo Antunes