Domingo, 16.08.09

Preferia não fazê-lo

Bartleby ou O eclipse da palavra
 
João Ventura
 
"Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro (...é a barbárie. AT) ", afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, repetiu até à própria laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: "Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só".
 
Caídos neste torvelinho de terrível impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hanna Arendt chamou a «banalidade do mal», escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de ter proferido palavras de um modo que anunciava a promessa de novas palavras, como um rio que de repente tivesse secado deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do nunca mais dito. Como se escrever, acrescentar mais alguma semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.
 
Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos seus Diários. Borges cita o poeta argentino Enrique Banchs, de quem diz: "Na cidade de Buenos Aires, em 1911, Enrique Banchs publica La urna, o melhor dos seus livros, e um dos melhores da literatura argentina: depois, misteriosamente, emudece. Há vinte e cinco anos que emudeceu". Seriam, afinal, cinquenta e sete anos. E essa mesma experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século por escritores com medo de existir diante da anormalidade da escrita: Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Juan Rulfo, J. D. Salinger, Henri Roth… Tal como os seus antepassados Hölderlin, Joseph Joubert, Rimbaud. Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: "sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido" e, com uma singular precocidade, a escrever toda a sua obra até aos dezanove anos para depois partir para a aventura abissínia.
 
A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia [Assírio & Alvim, 2001 / Cosac&Naify - Brasil], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa "pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre". Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto homónimo de Herman Melville – que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente "Preferia não o fazer" - espécie formulação não exaltante na negatividade moderna -, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, «notas sem texto», como ele lhe chama, sobre o síndroma de Bartebly, esse "mal endémico das letras contemporâneas", uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude é a de avivar-nos a memória e o desejo de revisitar as paisagens literárias que vai povoando e seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth e tantos outros escritores que formam a nossa biblioteca obscur
 
Entretanto, se alguém quiser adentrar-se mais no significado desta renúncia bartlebyana deverá visitar os ensaios de Giorgio Agamben [Bartebly o della contigenza, Macerata, 1993] ou Gilles Deleuse ["Bartleby ou la formule", in Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1993].
 
 
 
 
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades 
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publicado por ardotempo às 20:28 | Comentar | Adicionar

A consciência de existir

Morrer não dói
 
Ferreira Gullar
 
Todo mundo respirou aliviado com a notícia de que Felipe Massa, ao contrário do que se temia, estava fora de perigo e, sobretudo, sem sequelas. Mal acreditei quando o vi na televisão, com o olho esquerdo ainda arroxeado, falando sobre o acidente. Bem, estou dizendo o óbvio. Não obstante, ao ouvir suas declarações, um detalhe me chamou a atenção, quando afirmou que não se lembrava de ter sido atingido por algo nem de nada do acidente. Ou seja, o baque que sofrera na cabeça, ao sofrer o impacto de uma mola, de quase um quilo de peso, voando a mais de 200 quilômetros por hora, não aconteceu. Para ele, Felipe Massa, não aconteceu.
 
Muito bem. Então, vamos agora admitir, por mera hipótese (bata na mesa), que ele tivesse morrido, que o capacete não fosse tão resistente e, mesmo, que a tal mola tivesse vindo alguns centímetros abaixo etc. etc. etc... Imaginou o que teria acontecido naquele domingo?
 
A expectativa que se criou logo após o acidente e que já foi suficiente para deixar todo mundo assustado, teria tido outro desfecho, como no caso de Ayrton Senna.
 
 
Assim que, na ambulância, os médicos constatassem o estrago que o impacto teria provocado na cabeça dele, imediatamente, pela reserva mesma que certamente adotariam, a apreensão ganharia peso e sem muita demora a notícia terrível se espalharia pelo mundo. Felizmente, não aconteceu, mas, se tivesse acontecido, em que pese o impacto brutal da notícia, ele, Felipe, como se sabe agora, não teria sabido de nada. Ou seja, ele teria vivido apenas até uma fração de segundo antes de apagar-se para sempre, de deixar de existir.
 
Espero que o leitor não fique chocado com o tipo de especulação que estou fazendo aqui. De qualquer modo, é impossível ignorar este fato: Felipe Massa não soube de nada que lhe aconteceu, mesmo tendo sofrido uma pancada de incalculável violência que poderia tê-lo matado.
 
Milhões de pessoas no mundo todo teriam sentido a sua morte, que tomaria conta do noticiário em todos os veículos de comunicação, mas, ele, o personagem central do drama, saíra de cena antes, uma fração de segundo antes.
 
É isso aí, a gente não morre a nossa morte; morre a dos outros.
 
No que se refere a nós, os que continuaram vivos, a morte do jovem piloto nos teria atingido de maneira brutal. Enquanto isso, lá na Hungria restaria apenas um corpo morto dentro de um macacão de piloto da Fórmula 1. Para ele, Felipe, nada tinha acontecido, nem o acidente nem nada antes. É que, ao morrer, ao apagar-se o que somos - a consciência de existir - apaga-se o presente, o passado, tudo. Quem morre é como se nunca houvesse existido, a não ser para os outros.
 
Desculpem se insisto nesta conversa aparentemente macabra. Mas lembrem do que aconteceu com os passageiros daquele avião da Continental Airlines, que se dirigia para Houston e, na altura das Antilhas, entrou numa zona de turbulência. Os sacolejos violentos jogaram gente para cima, para os lados, houve quem desse com a cabeça no teto do avião, outros quebraram o nariz, o braço, soltaram gritos aterradores. Mas não morreu ninguém. Uma passageira, falando mais tarde aos jornalistas, mal continha o pânico que ainda a tomava. "Foi um desespero, estava certa de que ia morrer!"
 
Veja bem: enquanto Felipe Massa, atingido na cabeça por um objeto que, por um triz, o teria matado, de nada se lembra, essa senhora, que não sofreu um arranhão durante a turbulência, fala dela como de um momento aterrador. Espera jamais passar por experiência semelhante.
 
Tendo a concluir que morrer não dói: o que dói é o medo de morrer, pois isso ainda é vida. Claro, só sofre quem vive, consciente, e daí concluímos que a morte é problema dos vivos. E o morto também. O que fazer com ele? Isso é ocupação dos que ficam, não dele, agora livre de tudo.
 
Na verdade, o pior da morte, como vimos, é temê-la. Por isso mesmo, desisti de andar de avião. Melhor é não pensar nela e, quando pensar, aceitá-la. Ruim mesmo é a doença que põe o sujeito cara a cara com ela por muito tempo.
 
Já se, por exemplo, o cidadão adormece e não acorda mais, ótimo. Isso, levando-se em conta que, cedo ou tarde, tanto os mais velhos quanto os mais jovens, irão todos dormir para sempre. Não há exceção, nem mesmo para os políticos, habituados a privilégios: terão de deixar a cena também, o que é certamente auspicioso para o futuro do país.
 
 
A candidatura de Marina Silva à Presidência da República, se confirmada, como espero que seja, pode assinalar o início da grande mudança, a que a nação brasileira aspira. 
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL 
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publicado por ardotempo às 20:27 | Comentar | Adicionar

Está livre?

Os que sabem
 
Luis Fernando Verissimo
 
 
 
 
Já se disse que o mundo está nesse estado porque as únicas pessoas que sabem o que deve ser feito, os barbeiros e os motoristas de táxi, estão trabalhando em barbearias e dirigindo táxis em vez de nos governar. Barbeiros e motoristas de táxis têm a solução para tudo e é lamentável que não estejam em posições de comando, onde suas análises e receitas teriam conseqüências práticas. No Brasil, barbeiros e motoristas de táxis deveriam substituir governantes e políticos e decidirem os rumos da nação de acordo com as acuradas exposições que nos fazem da realidade nacional, mesmo sem serem solicitadas.
 
É claro que a substituição de políticos por barbeiros e motoristas de táxis poderia trazer uma contrapartida assustadora: a substituição de barbeiros e motoristas de táxi por políticos desempregados. Imagine-se num táxi dirigido pelo Sarney, espremido no banco de trás com toda a família dele, ou numa cadeira de barbeiro, sem possibilidade de fuga, obrigado a ouvir o Mão Santa falando sem parar enquanto corta seu cabelo - ou vendo o Collor se aproximar com aquele seu olhar furioso e uma navalha. Imagine-se numa corrida longa com o Suplicy na direção, cantando. Imagine a confusão no transito com a indecisão dos motoristas entre direita e esquerda, muitas vezes passando de um lado para o outro sem qualquer sinalização. Políticos substituindo motoristas de táxi e barbeiros aumentariam os engarrafamentos e os acidentes, inclusive os de orelhas cortadas sem querer. E no fim da corrida em táxi dirigido por políticos ainda haveria a questão do pagamento: o preço seria o que aparece no taxímetro mais um adicional por stress, auxílio moradia, subsidio para alimentação, verba de representação, diária de viagem...
 
Apesar deste perigo, acho que vale a pena proporcionar aos barbeiros e motoristas de táxi a oportunidade de darem um jeito no Brasil e no mundo.
 
A teoria, e a certeza das suas convicções, eles já têm. E se a atual crise do sistema financeiro mundial nos ensinou alguma coisa é jamais confiar o que quer que seja nos profissionais da matéria. Os economistas falharam em tudo, das previsões às soluções. De agora em diante deve-se proibir os economistas de se meterem na economia. Deve-se dar vez aos amadores e aos palpiteiros. Que venham os leigos! Com os barbeiros e os motoristas de táxi à frente.
 
© Luis Fernando Verissimo
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publicado por ardotempo às 20:25 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Joaquim Torres-Garcia

Pintura

 

 


 

Joaquim Torres-Garcia - Pintura - Óleo sobre tela (Montevideo - Uruguay), 1932

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publicado por ardotempo às 20:05 | Comentar | Adicionar

Emanoel Araújo - Escultura

Escultura em aço policromado

 

 

 

 

Emanoel Araújo - Escultura em aço policromado, com tinta automotiva - Jardim das Esculturas, MAM Museu de Arte Moderna SP Parque Ibirapuera (São Paulo SP Brasil)

publicado por ardotempo às 19:58 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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