Não me sinto perseguido: sou perseguido

Barulhos

 
Ferreira Gullar
 
 
Inadvertidamente, aceitei morar num apartamento de segundo andar. Os quartos eram amplos, a rua tranquila, havia de tudo por perto e o céu estrelado. Só que, bem embaixo de meu quarto, havia uma boate que funcionava das dez da noite às quatro da manhã. Mas essa história já contei, com "happy end" e tudo o mais. Hoje, no lugar da boate há uma loja de móveis usados, onde reina o silêncio.
 
Mas a vida muda, e às vezes para pior. O sol matinal, que aquecia saudavelmente o apartamento, foi obstruído pelo enorme edifício de um hotel que construíram quase em frente ao meu, e o céu estrelado hoje mal se vê, tanta é a poluição provocada pelos ônibus e caminhões de lixo. Existe algo mais barulhento do que um caminhão de lixo, parado em frente à tua janela, deglutindo o que despejam em sua garganta de aço?
 
Pois bem, esses caminhões, que apareciam aqui três vezes por semana, por volta das onze e trinta e da meia-noite, como a vida muda, passaram a me atormentar quatro vezes ao dia, fazendo-me pensar: como é que o lixo que podia ser retirado em apenas três vezes por semana agora necessita de 28 viagens?
 
A rua é a mesma, os moradores e comerciantes os mesmos, como pode então ter o lixo aumentado tanto? Não sei, não, mas esse negócio de limpeza urbana dá sempre em sujeira. Isso era na administração anterior. De qualquer modo, se havia ali alguma falcatrua, não poderiam realizá-la com menos estardalhaço, sem me agredir os ouvidos? Se querem roubar, que roubem, mas me deixem ao menos dormir em paz!
 
Eu não sou sujeito a mania de perseguição, embora pareça, mas há coisas que se repetem de maneira tão frequente e estranha que sou obrigado a acreditar que é fruto de alguma conspiração contra mim. Não digo que seja uma pessoa determinada ou várias que, por esta ou aquela razão, decidiram atazanar-me. Nem a ação de forças malignas, nas quais não acredito.
 
Mas, quem sabe por mera obra do acaso, certos fatos irritantes costumam se repetir com tal frequência que parecem obedecer a alguma deliberação misteriosa. Um desses fatos é o disparo de alarmes de automóveis, sistematicamente, um dia por semana, no começo da noite, exatamente quando me sento em frente à televisão para relaxar da faina diária.
Confesso que já me preparo para ouvi-los. Se não é na segunda-feira, é na terça, ou na quarta, ou na quinta, ou na sexta. A verdade é que acontece, e o que me deixa mais exasperado é essa incerteza: sei que vai acontecer, mas não sei ao certo em qual dia. O resultado é que, devido a essa expectativa, em vez de me irritar apenas quando o alarme dispara, irrito-me a semana inteira à espera dele.
 
Só pode ser perseguição! Mas, como afirmei, não me sinto perseguido: sou perseguido. E como já disse, e insisto, a vida muda. O disparo dos alarmes ocorria, como disse, no começo da noite, mas o resto do dia era tranquilo. Isto é, relativamente, porque o primeiro caminhão de lixo começava a roncar por volta das dez horas da manhã; antes disso, quase nada me perturbava, a não ser o bate-papo dos vendedores de picolé que, por volta das oito da manhã, ficam conversando embaixo da minha janela, enquanto leio o jornal.
 
É que, numa das lojas do prédio, instalou-se uma fábrica de sorvetes e picolés, que são vendidos na praia em carrinhos refrigerados. Esses carrinhos são conduzidos por vendedores que, àquela hora, vêm pegá-los para levá-los à praia. Conversam em voz alta, embora estejam próximos uns dos outros, mas esse é o hábito de quem vende picolés: gritar. De qualquer modo, como têm que ir vender, não demoram demasiado nas conversas.
 
E a vida muda tanto que, esta manhã, quando estava esboçando a crônica do próximo domingo, ouvi um som inusitado, uma espécie de apito ou pio, não sabia ao certo. O som era alto, insistente e repetido:
 
- Pio! Pio! Pio!
 
Fiz que não ouvia e continuei concentrado em meu trabalho.
 
- Pio! Pio! Pio!
 
Parei para tentar identificar o som. Apurei o ouvido:
 
- Pio! Pio! Pio!
 
O troço era desagradável, porque agudo, muito alto e repetido.
 
- Pio! Pio! Pio!
 
Era só o que me faltava, uma nova aporrinhação? Não, disse a mim mesmo, otimista. Deve ser algum cara soprando um apito e que irá, logo, embora.
 
Não foi. Decidi finalmente verificar do que se tratava e descobri que um vizinho, do outro lado da rua, dependurara uma gaiola fora de sua janela e, dentro dela, havia um pássaro chato que piava alto e repetido:
 
- Pio! Pio! Pio!
 
 
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
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publicado por ardotempo às 13:50 | Comentar | Adicionar