Sábado, 08.08.09

Para o Dia dos Pais...

A sombra do pai 
 
José Saramago
 
Mikhail Bahktine escreveu na sua Estética e Teoria do Romance: «O objecto principal do género romanesco, aquele que o “especifica”, aquele que cria a sua originalidade estilística, é o homem que fala e a sua palavra». Creio que raramente uma asserção de âmbito geral como esta é terá sido tão exacta como no caso humano e literário de Franz Kafka. Desrespeitando certos teóricos que, não destituídos de razão, se têm insurgido contra a tendência “romântica” de ir procurar à existência de um escritor os sinais da passagem do vivido para o escrito, o que, supostamente, seria a final explicação da obra, Kafka não esconde em nenhum momento (e parece fazer mesmo questão de que se note) o quadro de factores que determinaram a sua dramática vida e, em consequência, o seu trabalho de escritor: o conflito com o pai, o desentendimento com a comunidade judaica, a impossibilidade de deixar a vida celibatária pelo casamento, a enfermidade.
 
Penso que o primeiro daqueles factores, isto é, o antagonismo nunca superado que opôs o pai ao filho e o filho ao pai, é o que constitui a trave mestra de toda a obra kafkiana, dele derivando, como os ramos de uma árvore derivam do tronco principal, o profundo desassossego íntimo que o levou à deriva metafísica, à visão de um mundo agonizando pelo absurdo, à mistificação da consciência.
 
A primeira referência a O Processo encontra-se nos Diários, foi escrita em 29 de Julho de 1914 (a guerra desencadeara-se no dia anterior) e começa com as seguintes palavras. “Uma noite, Josef K…, filho de um rico comerciante, depois de uma grande discussão que tinha tido com o pai…”. Sabemos que não é assim que o romance irá principiar, mas o nome da personagem principal – Josef K… – já ficou anunciado, tal como em três rápidas linhas de A Metamorfose, escrito quase dois anos antes, já se anunciava o que viria a ser o núcleo temático central de O Processo. Quando, transformado da noite para o dia, sem qualquer explicação do narrador, num bicharoco nojento, misto de escaravelho e de barata, se queixa dos sofrimentos imerecidos que caem sobre o viajante de comércio em geral e sobre ele próprio em particular, Gregorio Samsa expressa-se de uma maneira que não deixa margem para dúvidas: “muitas vezes é vítima de uma simples murmuração, de um acaso, de uma reclamação gratuita, e é-lhe absolutamente impossível defender-se, uma vez que nem sequer sabe de que o acusam”. Todo O Processo está contido nestas palavras.
 
É certo que o pai, “rico comerciante”, desapareceu da história, que a mãe só é mencionada em dois dos capítulos inacabados, e mesmo assim fugazmente e sem caridade filial, mas não me parece um excesso temerário, salvo se estou demasiado equivocado sobre as intenções do autor Kafka, imaginar que a omnipotente e ameaçadora autoridade paterna terá sido, pela estratégia da ficção, transferida para as alturas inacessíveis da Lei Última, essa que, sem precisar de enunciar uma culpa concreta recolhida nos códigos, será sempre implacável na aplicação do castigo. O angustiante e ao mesmo tempo grotesco episódio da agressão executada pelo pai de Gregorio Samsa para expulsar o filho da sala familiar, atirando-lhe com maçãs até que uma delas se lhe vai incrustar na carapaça, descreve uma agonia sem nome, a morte de qualquer esperança de comunicação.
 
Poucas páginas antes, o escaravelho Gregório Samsa ainda havia articulado penosamente as últimas palavras que a sua boca de insecto fora capaz de pronunciar: “Mãe, mãe”, Depois, como numa primeira morte, entrou na mudez de um silêncio voluntário, senão obrigado pela sua irremediável animalidade, como quem teve de resignar-se definitivamente a não ter pai, mãe e irmã no mundo das baratas. Quando por fim a criada varrer para o lixo a carcaça ressequida em que Gregório Samsa terminará transformado, a sua ausência, daí em diante, só servirá para confirmar o esquecimento a que os seus já o tinham votado. Numa carta de 28 de Agosto de 1913, Kafka irá escrever: “Vivo no meio da minha família, entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar, como alguém mais estranho que um estranho. Com a minha mãe, nos últimos anos, não falei, em média, mais que vinte palavras por dia, com o meu pai jamais troquei mais que as palavras de saudação”. Será preciso estar muito desatento à leitura para não perceber a dolorosa e amarga ironia contida nas próprias palavras (“Entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar”) que parecem estar a negá-la. Desatenção igual, creio, seria não atribuir importância especial ao facto de Kafka haver proposto ao seu editor, em 4 de Abril de 1913, que os relatos O Fogueiro (primeiro capítulo do romance América), A Metamorfose e A Sentença fossem reunidos num único volume com o título de Os Filhos (o que, aliás, só muito recentemente, em 1989, viria a suceder).
 
Em O Fogueiro, “o filho” é expulso pelos pais por ter ofendido a honra da família ao engravidar uma criada, em A Sentença “o filho” é condenado pelo pai a morrer por afogamento, em A Metamorfose “o filho” deixou simplesmente de existir, o seu lugar foi tomado por um insecto…
 
Mais do que a Carta ao Pai, escrita em Novembro de 1919, mas que nunca viria a ser entregue ao destinatário, são estes relatos, segundo entendo, e em particular A Sentença e A Metamorfose, que, precisamente por serem transposições literárias em que o jogo de mostrar e esconder funciona como um espelho de ambiguidades e reversos, nos oferecem com mais precisão a dimensão da ferida incurável que o conflito com o pai abriu no espírito de Franz Kafka. A Carta assume, por assim dizer, a forma e o tom de um libelo acusatório, propõe-se como um ajuste de contas final, é um balanço entre o deve e o haver de duas existências enfrentadas, de duas mútuas repugnâncias, pelo que não se pode rejeitar a hipótese de que se encontrem nela exageros e deformações dos factos reais, sobretudo quando Kafka, no final do escrito, passa subitamente a usar a voz do pai para se acusar a si mesmo
 
Em O Processo, Kafka pôde desfazer-se da figura paterna, objectivamente considerada, mas não da sua lei. E tal como em A Sentença o filho se suicida porque assim o tinha determinado a lei do pai, em O Processo é o próprio acusado Josef K… que acabará por conduzir os seus algozes ao lugar onde será assassinado e que, nos últimos instantes, quando a morte já se vem acercando, ainda dará por si a pensar, como um derradeiro remorso, que não tinha sabido desempenhar o seu papel até ao fim, que não tinha conseguido poupar trabalho às autoridades… Isto é, ao Pai.
 
© José Saramago - Publicado no Blog Caderno de Saramago 
publicado por ardotempo às 19:58 | Comentar | Adicionar

Um indivíduo no meio de uma multidão

Un hombre honesto
 
Guillermo Altares
 
Aunque nadie firma los artículos (tal vez precisamente por eso), la revista británica The Economist es una de las publicaciones mejor escritas y con un lenguaje más cuidado del panorama periodístico internacional. Su libro de estilo, disponible en Internet y muy recomendable, comienza con el siguiente párrafo: "La claridad en la escritura refleja la claridad en el pensamiento. Piensa lo que quieras decir y entonces dilo tan simple como sea posible. Y siempre ten en mente las seis reglas elementales de George Orwell (Politics and the english languaje):
 
1. Nunca uses una metáfora u otro juego de lenguaje que hayas visto impreso.
 
2. Nunca uses una palabra larga si puedes utilizar una corta.
 
3. Si puedes cortar una palabra, córtala.
 
4. Nunca utilices el pasivo si puedes utilizar el estilo directo.
 
5. Nunca utilices una palabra extranjera, un término científico o extranjero si puedes emplear un término actual.
 
6. Rompe estas reglas cuando sea necesario".
 
No es casualidad que The Economist arranque sus principios con George Orwell (1903-1950). De hecho, el escritor británico, autor de dos metáforas universales sobre el totalitarismo, Rebelión en la granja y 1984, debería ser uno de los referentes para cualquier periodista.
 
Como explicó Timothy Garton Ash, uno tiene siempre la impresión de que Orwell trata de decir la verdad, que hace enormes esfuerzos para ser honesto, para superar sus prejuicios, su visión del mundo y describir las cosas como son. Y en ninguna obra queda tan claro como en Homenaje a Cataluña, que Tusquets acaba de reeditar en bolsillo dentro del volumen Orwell en España. Esta editorial también ha rescatado su sátira Que no muera la aspidistra.
 
 
Orwell viaja en 1936 a España para sumarse a la lucha contra el fascismo y descubre la Barcelona revolucionaria del principio de la guerra. Alistado en la milicia trotskista del POUM, lucha en el frente de Aragón hasta que el partido comunista, dominado por Stalin, decide acabar con ellos y lanzar una guerra dentro de la guerra. Orwell se salva por los pelos y logra escapar a Inglaterra. Y, sin embargo, al final de Homenaje a Cataluña, le dice al lector: "Tenga cuidado con mi partidismo, con mis detalles erróneos y con la inevitable distorsión que nace del hecho de haber presenciado los acontecimientos sólo desde un lado". ¿Qué autor es capaz de decir al lector: ten cuidado, porque soy parcial? Eso es lo que le convierte en el más fiable, porque la claridad lingüística de Orwell refleja sobre todo una claridad moral que nace de la duda.
 
Guillermo Altares - Publicado em El País
tags:
publicado por ardotempo às 14:15 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Agosto 2009

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
18
19
20
21

Posts recentes

Arquivos

tags

Links