A continuidade dos parques
José Mário Silva
São cinco da tarde e eu releio, num livro de bolso da Alianza Editorial (Los Relatos, 2: Juegos), um conto brevíssimo de Julio Cortázar: Continuidad de los parques. É sobre dois mundos que de repente se tocam e quebram, não sabemos bem como, uma barreira.
No início, o protagonista retoma a leitura de um romance que encetara uns dias antes. No regresso à sua quinta, de comboio, após resolver assuntos urgentes, começa a "interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho das personagens". Logo que pode, fecha-se no escritório. Não está para ninguém. Afundado na sua poltrona preferida, enquanto a mão esquerda acaricia "uma e outra vez o veludo verde" do cadeirão, mergulha nos últimos capítulos do livro. Mergulhar é o verbo certo para descrever o que se passa. Embora ainda esteja consciente da suavidade do veludo e dos cigarros ali por perto, ele experimenta um "prazer quase perverso": o de sentir que a realidade à sua volta se afasta (ou dissolve) gradualmente. Linha a linha, palavra a palavra, ele está cada vez menos no escritório e cada vez mais dentro da história, "deixando-se ir de encontro às imagens que se concertavam e adquiriam cor e movimento".
Dentro da história, há uma mulher e o seu amante, determinados a viverem até às últimas consequências uma paixão que as circunstâncias mantiveram em segredo. As circunstâncias resumem-se a um obstáculo: o marido dela. Escondidos numa cabana, os amantes discutem. A mulher tenta evitar o crime (há um punhal escondido que espera a sua hora), procura enredar o amante com os gestos do amor, mas essas carícias apenas desenham "abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir". O destino está traçado; tanto o deles como o da vítima. Ajustam-se os pormenores, planeia-se cada acto, previnem-se os acasos. À porta da cabana, despedem-se e separam-se. Ela segue por um caminho, ele pelo caminho oposto, correndo através dos bosques até distinguir, na bruma do crepúsculo, a alameda que leva à casa.
Tudo acontece como previsto: os cães não ladram, o mordomo está ausente. Ele entra em casa e segue as instruções. Atravessa a sala azul, a galeria. Sobe uma escada. Lá em cima, no primeiro andar, uma porta aberta. Punhal na mão, ele apercebe-se da luz que entra pelas janelas, vê um cadeirão de veludo verde e sentado, de costas, infinitamente vulnerável, o homem que lê, absorto, um romance. O marido. O leitor. A dupla vítima.
São cinco e picos da tarde. Acabei de reler, num livro de bolso da Alianza Editorial (Los Relatos, 2: Juegos), um conto brevíssimo de Julio Cortázar: Continuidad de los parques.
Estou sentado numa cadeira de plástico cor-de-laranja, diante de uma mesa de plástico cor-de-laranja, num dos topos da Feira do Livro de Lisboa. Na mesa, duas pilhas de livros de capa preta. Tenho a esferográfica a postos, à espera dos meus leitores (essa vaga categoria).
Será que aquela rapariga de óculos? Não. O rapaz com o suplemento cultural debaixo do braço? Não. Aquela senhora com cara de quem vai à Gulbenkian todas as semanas?
Também não. As pessoas passam, espreitam, seguem. Os adolescentes, carregando grossos volumes de Stephenie Meyer que devem fazer mal à coluna (fora o resto), nem olham. A poucos metros, António Lobo Antunes e uma fila gigantesca dos seus fiéis leitores (uma categoria nada vaga). O céu ameaça chuva, mas não cumpre. De mesa para mesa, os autores que não se chamam Lobo Antunes trocam piadas. Sempre se passa o tempo. Nos seus campeonatos particulares de autógrafos, o resultado final é sempre 1-0, 1-1 ou 0-0. Antes do meu golo de honra, antes do meu prémio de consolação, penso no conto de Cortázar. A continuidade dos parques. A ficção que entra na realidade porque a realidade está já dentro da ficção.
No Parque Eduardo VII, ponho-me a escrever mentalmente um texto: é sobre alguém que está numa sessão de autógrafos, sem dar uso à caneta, e esboça uma crónica em que um leitor, como o assassino de Cortázar, atravessa Lisboa e vai ter com ele, ao exacto local onde os Parques (o verdadeiro e o imaginado) se tocam. Contra todas as evidências, o leitor aparece mesmo. E o texto, a crónica real sobre a crónica inventada, também.