Segunda-feira, 31.08.09

Sapatos

Estante de sapatos

 

 

 

 

Gilberto Perin - Fotografia - Arquibancada (Esteio RS Brasil), 2009

publicado por ardotempo às 15:51 | Comentar | Adicionar

A justiça no Brasil é para uns e para outros

Um é muito rico, o outro é muito pobre
 
A Justiça é cega
 
O que é o que é?
 
Tem tromba de elefante, corpo de elefante, presas de elefante, patas de elefante, caminha como um elefante, mas não é um elefante, segundo o Supremo Tribunal Federal?
 
É o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci depois de livrar-se da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República contra os suspeitos pela quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.
 
Decisão judicial não se discute, cumpre-se”, repetem os que consideram errada uma sentença, mas preferem calar a respeito.
 
Decisão judicial se discute, sim, ora essa. Juiz não é infalível.
 
A infalibilidade do Papa só se tornou dogma em 1817. Mesmo assim se restringe às questões e verdades relativas à fé e à moral. Acata-se decisão judicial. Mas quando possível se contesta junto à própria Justiça.
 
Francenildo foi caseiro de uma mansão em Brasília frequentada por prostitutas de luxo, Palocci e ex-assessores da época em que ele foi prefeito de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
 
Desconfia-se que ali também rolavam negócios sujos. Nunca se investigou.
 
Em depoimento na CPI dos Bingos do Senado, um motorista que servira à turma de Ribeirão Preto havia dito ter visto Palocci na mansão várias vezes. Palocci jurou jamais ter ido lá.
 
Descoberto pelo jornal O Estado de S. Paulo, Francenildo contou que flagrara Palocci na mansão de 10 a 20 vezes. A entrevista foi publicada no dia 14 de março de 2006.
 
No dia 16, Francenildo renovou a acusação na CPI. "Vou morrer dizendo isso", enfatizou.
 
Só pôde falar na CPI porque chegou com atraso ao Senado liminar concedida pelo ministro Cezar Peluso em ação impetrada pelo PT proibindo Francenildo de depor.
 
No mesmo dia, pelo menos seis órgãos do Estado, entre eles a Polícia Federal e a Receita, se ocuparam em devassar a vida de Francenildo.
 
Um empregado da jornalista Helena Chagas confidenciara à ela que Francenildo procurava uma casa para comprar. Como poderia ter tanto dinheiro para isso?
 
A informação bateu nos ouvidos do senador Tião Viana (PT-AC), que a repassou a Palocci, que convidou Helena para um encontro.
 
Palocci perguntou a Helena se o empregado dela toparia depor contra Francenildo. Helena respondeu que não.
 
Às 19h, no Palácio do Planalto, Palocci reuniu-se com Jorge Mattoso, presidente da Caixa Econômica. Em seguida foi para casa e Mattoso voltou ao prédio da Caixa.
 
Às 20h, Mattoso entregou a um assessor o CPF e o nome completo de Francenildo. Saiu para jantar em um restaurante.
 
Dali a uma hora, Mattoso recebeu do assessor um envelope pardo com os extratos bancários de Francenildo, dono de uma conta na Caixa e de depósitos que somavam R$ 38,860,00.
 
Estava consumado o crime de quebra do sigilo bancário.
 
Ainda no restaurante, Mattoso atendeu a um telefonema de Palocci. Foi ao encontro dele. Palocci examinou os extratos. Que no dia seguinte foram parar na sucursal da revista ÉPOCA.
 
Pouco depois das 19h do dia 17, a revista postou os dados em seu site junto com a explicação de Francenildo sobre a origem do dinheiro – uma doação do empresário Eurípides Soares da Silva, seu pai.
 
Eurípides confirmou a doação, mas negou que fosse pai de Francenildo.
 
A tentativa de desacreditar o caseiro, sugerindo que ele fora subornado para mentir, acabou desmontada até as 22h. A mãe de Francenildo admitiu que ele era filho bastardo do empresário. O próprio Eurípides confessou que dera dinheiro a Francenildo para não ter que reconhecê-lo como filho.
 
Por que fizeram isso comigo?” – queixou-se Francenildo. "Por que não fizeram com o ministro?"
 
Porque “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”, conferiu o ministro Marco Aurélio de Melo, um dos quatro votos vencidos na sessão do Supremo da semana passada. Cinco colegas dele rejeitaram a denúncia contra Palocci. Não viram indícios suficientes de sua participação na quebra do sigilo.
 
Sobrou para Mattoso, que será o único processado pela quebra do sigilo bancário do caseiro.
 
Para a Justiça, o elefante da história é ele.
 
Quanto a Palocci, poderia ter denunciado Mattoso ao receber dele extratos que ele nega ter encomendado. Afinal, estava diante de um ato criminoso.
 
 Ignora-se por que não o fez "!" 
 
 
Ricardo Noblat - Publicado no Blog do Noblat 
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O silêncio é fácil

 
Um rectângulo de papel rugoso
 
José Mário Silva
 
 
Tens a fotografia nas mãos. A velha fotografia. À esquerda, o contorno das dunas, o brilho fosco da areia, o mar apenas sugerido, três gaivotas de asas abertas, nuvens imensas a encher o céu. Ao centro, numa espécie de penumbra, a casa: alvenaria batida pelos ventos, janelas rasgadas diante do furor oceânico, vigas de madeira carcomidas pela humidade salina, restos de cal e de um esplendor antigo. 
 
À direita, a imensa sombra da lagoa, o pinhal estendendo-se terra adentro – voraz – e com ele o princípio da estrada de todos os regressos, de todas as despedidas.
 
Olhas para o pequeno rectângulo de papel rugoso, agora cheio de riscos, amarelado nas pontas. Quem captou aquela imagem morreu há muitos anos. A casa já não existe; é só areia, corrosão, ruínas. E aquele que tu foste, dentro da casa, também desaparece aos poucos, devorado pela máquina ferrugenta da memória, perdido nesse passado que se vai tornando difuso, frágil e inútil.
 
Sabes muito bem o que o tempo faz às coisas. Monta o cerco. Expande o deserto. Seca por fora e por dentro. Transforma tudo em pó. Nada lhe resiste. Nada. Nem sequer a imagem de uma casa frente ao mar que alguém, um dia, com paciência e nitrato de prata, fixou. Nem sequer esta velha fotografia que se desfaz, aos poucos, nas tuas mãos demasiado gastas.
 
Segues agora, com o olhar, cada uma das linhas da imagem que se desvanece, as gradações de um preto e branco cada vez mais submerso na irrealidade das coisas extintas. Percorres, às cegas, as fronteiras de um mapa imaginário: o mar escondido, as paredes onde a cal nunca se demorava, o crepúsculo violento atravessando as salas, as tábuas de madeira que rangiam nas noites de ventania, a bruma sobre a lagoa, vozes saindo da escuridão com a forma do teu nome.
 
Acendes, uma última vez, a memória. Ficas à espera. Mas a memória calou-se. As vozes não regressam, não há ninguém que te chame neste agora que veio depois de tudo o que se apagou, não há variações dentro da brancura espessa do esquecimento. A névoa engoliu tudo. Já não há azul, já não há verde, já não há ouro, já não há prata.
 
Ainda assim, a fotografia continua entre os teus dedos. Intacta. Olhar para ela tornou-se uma violência. O que foi belo, magoa. O silêncio devora-te. O vazio é uma faca apontada ao coração. Sabes que nunca ninguém virá, nunca mais. Por isso aproximas do lume o rectângulo de papel rugoso. E vês arder tudo aquilo: a casa, o mar, as nuvens imensas, a tua infância.
 
 
© José Mário Silva - Efeito Borboleta 
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Gravura em metal

Carborundum

 

 

 

Maria Inês Rodrigues - Gravura em metal / Relevos sobre chapa de cobre em técnica de carborundum (Porto Alegre RS Brasil)

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Arte Maior

Anselm Kiefer vai morar e criar sua obra em Portugal
 
Um dos maiores artistas plásticos da actualidade, o alemão Anselm Kiefer, vai fixar-se em Portugal, para criar uma "floresta cultural" numa extensa herdade no Litoral Alentejano, foi hoje anunciado.
 
O pólo cultural que vai ser criado perto da Comporta, no concelho de Alcácer do Sal, pretende ser um "centro de atracção pública" e foi negociado com o Governo e com o município local. "Portugal ficará, assim, a contar com uma grande centro cultural e turístico de excepcional qualidade de projecção internacional, (...) o primeiro envolvendo o nosso país e um grande criador mundial de nacionalidade não portuguesa", refere o texto enviado à Lusa. 
 
Anselm Kiefer, 64 anos, tem obras nos maiores museus do mundo, caso do Arte Moderna de Nova Iorque, Gugenheim, de Bilbao (Espanha), Centre Pompidou (Paris) e foi o segundo artista contemporâneo vivo a integrar a colecção permanente do Louvre, também na capital francesa. O primeiro foi Georges Braque, cerca de 50 anos antes. 
 
Com uma obra que vai além das artes plásticas, concebeu, dirigiu e encenou a ópera comemorativa dos 20 anos da Ópera da Bastilha, em França. Em 2008, recebeu o Friedenspreis der Deutschen Buchhandels - um do prémios de maior prestígio na Alemanha, pela primeira vez atribuído a um artista plástico. 
 
Kiefer chega a Portugal vindo de França, onde ao longo de 14 anos e num espaço de 100 hectares, em Barjac, criou um importante conjunto de obras. 
 
A opção por Portugal significa que o artista alemão terá "declinado múltiplos convites alternativos, alguns deles formulados por países europeus".
 
Considerado um dos mais conhecidos artistas de sucesso do pós-guerra, mas também dos mais controversos, Anselm KIefer tornou-se conhecido pelas suas pinturas de materiais (materialbilder) e na sua obra confronta-se com o passado e aborda temas tabu bastante controversos, como a época nazi. 
 
Um dos seus quadros mais famosos é "Margarethe", em que utiliza na tela óleos e palha, e se inspira no poema "Todesfuge" (Fuga da Morte) de Paul Celan. 
 
Nos media da Alemanha, trava-se há muitos anos uma controvérsia em torno do real valor da sua obra, que já teve incursões pela mitologia alemã e pela mística judaica, a chamada Kabbala. 
 
Além de quadros, Kiefer criou aguarelas, fotos e embutidos de madeira e também esculturas. Os seus mísseis e aviões de chumbo, e uma biblioteca formada por álbuns (fólios) de chumbo, intitulada "60 milhões de ervilhas", estão também entre as obras de Kiefer mais conhecidas.
 
 
 
Imagem: Anselm Kiefer - Quarto de madeira - Pintura - Óleo sobre tela
 
Publicado no Ipsilon 
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Manequins em Porto Alegre

Voluntários da Pátria

 

 

 

 

Leopoldo Plentz - Fotografia - Manequins / Bundas da Voluntários da Pátria (Porto Alegre RS Brasil), 2005 

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Manequins em São Paulo

Cinturas baixas

 

 

 

 

Itaci Batista - Fotografia - Manequins / Barriguinhas (São Paulo SP Brasil), 2009

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Manequins na Tunísia

Vestidos longos

 

 

 

Gilberto Perin - Fotografia - Manequins / Bocas Vermelhas (Tunísia), 2009 

publicado por ardotempo às 02:23 | Comentar | Adicionar

Iluminando o olhar

Dois fotógrafos
 
Os olhares dos fotógrafos agem de duas formas: iluminando o mundo em que vivemos e levando-nos a ver de maneira diversa aquilo a que o olhar se acostumara.  Duas exposições podem ilustrar essa ação. 
 
A primeira, por ordem alfabética, é a de Gilberto Perin, no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo (Porto Alegre RS Brasil), denominada Conexões Infinitas. Seu olhar é refinadíssimo. Trabalhando com os melhores meios digitais contemporâneos, Perin vai-nos mostrando cidades e espaços comuns, até triviais; digamos: na aparência são fotos de um flâneur que visita o Oriente, a Europa, Porto Alegre, Nova York. Mas isto só à primeira vista.
 
 
 
 
Quando paramos sem pressa frente aos painéis, as fotos vão revelando pormenores, circunstâncias que provocam pequenas epifanias, nas quais está presente um saudável toque de humor e de sabedoria. Há uma foto, Os frades, realizada em Roma, que vale por um tratado teológico; três sorridentes e jovens religiosos divertem-se com a câmera na praça de São Pedro, Roma, enquanto repartem um lanche, composto de bolachinhas industrializadas e sucos de supermercado. Há outra que, pelo insólito, nos conquista: um homem desce por uma rua da Alfama. A verticalidade dos prédios faz um pendant com a figura longilínea do homem. Uma bênção visual.
 
O outro fotógrafo é Roberto Schmitt-Prym, cuja exposição virtual já é disponível em www.e-design.com.br/fotografia [inaugurará em 2010 a exposição “real” na Aliança Francesa], intitulada Cenários da Memória. Liga-se ao trabalho de Perin pelo fato gerador das fotos: o tema da visita e do flâneur. Só que, aqui, em Schmitt-Prym acontece, no material primário, uma intervenção profunda, obsessiva. As imagens sobrepõem-se, e são várias, dezenas para cada foto. A partir daí, há interferência da cor, quase sempre única. O resultado é perturbador: sabemos que o cenário existe, podemos localizá-lo em nossas lembranças, mas já não é o mesmo. Poder-se-ia destacar, como exemplo, a fachada principal de Notre-Dame de Paris. Multiplicam-se as portas, os santos do pórtico, a dizer que são inúmeros. O mesmo se pode dizer do Castel Sant’Angelo, luzindo ao sol de Roma.
 
 
 
 
Eis, em resumo, algo das mostras de Perin e Schmitt-Prym. Na obra de ambos fotógrafos, instaura-se aquilo que é o propósito da arte: tornar estranho o que é quotidiano e, se possível, ensinar a viver melhor. São exposições imperdíveis.
 
Luiz Antônio de Assis Brasil  
Imagens: © Gilberto Perin - Os frades - Fotografia (Roma Itália), 2009
             © Roberto Schmitt-Prym - Castel Sant'Angelo (Roma itália)
 
Publicado em Zero Hora
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Domingo, 30.08.09

Do Museu Imaginário

Apenas reproduções: o retábulo de papel que parece o original
  
Los nueve vecinos que quedan en el pequeño pueblo pirenaico de Enviny, una pedanía de Sort (Lleida), retrocederán hoy un siglo en el tiempo cuando vean la reproducción casi exacta del retablo gótico del siglo XV que decoró el ábside de la iglesia parroquial hasta que en 1909 el párroco lo vendió a un anticuario.
 
No ha sido fácil conseguir las copias de esta valiosa obra realizada en 1490 por el pintor Pere Espallargues. El cuerpo principal se conserva en la Hispanic Society of America de Nueva York, mientras que las puertas y la predela se guardan en el Philadelphia Museum of Art. Obtener fotografías de cada una de las imágenes y detalles de la obra ha sido una odisea que ha requerido 11 años de laboriosas negociaciones con los responsables de los dos museos. Por eso hoy se ha preparado una gran fiesta para celebrar el acontecimiento.
 
Realmente no se sabe por cuánto se vendió el retablo, pero con el dinero obtenido se erigió el actual campanario, se arregló el tejado de la iglesia, se reformó el camino de los huertos y se construyó el nuevo altar, que fue quemado durante la Guerra Civil. "Si no lo hubieran vendido seguramente hoy no estaría en museos, ya que también lo habrían quemado", indica Joan Escales, de 79 años, hijo, vecino y párroco de Enviny. La réplica ha costado unos 26.000 euros.
 
"Las personas que vengan a verlo no distinguirán la copia del original", asegura Olga Méndez, responsable del departamento de reproducciones de Arsus Paper, la empresa barcelonesa que se ha especializado en realizar reproducciones exactas de obras de arte valiéndose de las nuevas tecnologías. En este caso ha utilizado una técnica pionera basada en el Papelgel, un producto desarrollado por la firma y patentado en 13 países. "Es un papel que se convierte en un material elástico que permite transferir imágenes fotográficas a cualquier soporte, incluso sobre cuerpos tridimensionales", explica Méndez.
 
La empresa tiene experiencia en estos trabajos ya que ha reproducido pinturas murales en varias iglesias pirenaicas y también réplicas de pinturas rupestres en el País Vasco. Aseguran que en interiores las tintas utilizadas pueden durar más de 200 años.
 
En el retablo original había una talla de madera de la Virgen, que lleva décadas en paradero desconocido y ahora el alcalde de Sort prevé iniciar una campaña por Internet para localizarla.
 
 
Publicado em El País 
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Sábado, 29.08.09

Chuva em São Paulo

Fotografia

 

 

 

Itaci Batista - Fotografia - Chuva na Av. Paulista (São Paulo SP Brasil), 2009 

publicado por ardotempo às 12:15 | Comentar | Adicionar

Pintura em Paris

Karel Appel

 

 

 

Karel Appel - Pintura - Óleo sobre tela (Paris - França), Galerie Lelong, 2009

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Vertente

A junta do motor
 
José Saramago
 
 
 
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados.
 
Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas. Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meu verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado.
 
Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros. (Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo. É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência).
 
Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador. Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda.
 
Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada. Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver.
 
Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara? Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
 
 

© José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago

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Sexta-feira, 28.08.09

Os que caminham para lá

 

Trilhos

 

 

 

 

Gilberto Perin - Trilhos - Série Conexões Infinitas - Fotografia (Lisboa - Portugal), 2009

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Quinta-feira, 27.08.09

Azul

Fotografia

 

 

 

 

Itaci Batista - Parede azul - Fotografia  (São Paulo SP Brasil), 2009

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Saramago sobe ao ringue

 
Saramago carga contra Dios y salva a Caín
 
José Saramago vuelve a ocuparse de la religión en Caín, su nueva novela, que la editorial Alfaguara publicará previsiblemente a mediados de octubre, en la que redime a su protagonista del asesinato de Abel y señala a Dios "como el autor intelectual al despreciar el sacrificio que Caín le había ofrecido".
 
Caín viajará a la Feria del Libro de Frankfurt el próximo octubre y a finales de ese mes estará en las librerías de Portugal, América Latina y España, donde ver la luz también en catalán. Será en Lisboa, en su presentación mundial, donde el Nobel hable por primera vez de su nuevo libro, pero desde su casa de Lanzarote, donde pasa el verano y ya prepara las maletas para volver a Lisboa, ha explicado a través del correo electrónico que lo que ha querido decir con Caín es que "Dios no es de fiar. ¿Qué diablos de Dios es éste que, para enaltecer a Abel, desprecia a Caín?".
 
Casi 20 años después de su discutido libro El evangelio según Jesucristo, que fue vetado por el Gobierno portugués para competir por el Premio Europeo de Literatura, el Nobel luso hace un irreverente, irónico y mordaz recorrido por diversos pasajes de la Biblia pero no teme que vuelvan a crucificarle. "Algunos tal vez lo harán - explica Saramago -, pero el espectáculo será menos interesante. El Dios de los cristianos no es ese Jehová. Es más, los católicos no leen el Antiguo Testamento. Si los judíos reaccionan no me sorprenderé. Ya estoy habituado. Pero me resulta difícil comprender cómo el pueblo judío ha hecho del Antiguo Testamento su libro sagrado. Eso es un chorro de absurdos que un hombre solo sería incapaz de inventar. Fueron necesarias generaciones y generaciones para producir ese engendro".
 
José Saramago no considera este libro su particular y definitivo ajuste de cuentas con Dios -"las cuentas con Dios no son definitivas", dice -, pero sí con los hombres que lo inventaron.
 
"Dios, el demonio, el bien, el mal, todo eso está en nuestra cabeza, no en el cielo o en el infierno, que también inventamos. No nos damos cuenta de que, habiendo inventado a Dios, inmediatamente nos esclavizamos a él", explica el autor. Niega que la cercanía de la muerte, hace ahora un año debido a su enfermedad, le hiciera pensar más en Dios. "Tengo asumido que Dios no existe, por tanto no tuve que llamarlo en la gravísima situación en que me encontraba. Y si lo llamara, si de pronto él apareciera, ¿qué tendría que decirle o pedirle, que me prolongase la vida?".
 
Y continúa Saramago: "Moriremos cuando tengamos que morir. A mí me salvaron los médicos, me salvó Pilar (su esposa y traductora), me salvó el excelente corazón que tengo, a pesar de la edad. Lo demás es literatura, y de la peor".
 
Hace un año, el escritor sorprendió a sus lectores por la ironía y el humor que destilan las páginas de El viaje del elefante (Alfaguara) y que ahora vuelve a con Caín. Para él es un misterio. Y reflexiona: "No fue deliberado ni premeditado, la ironía y el humor aparecen en las primeras líneas de ambos libros. Podía haberlo contrariado e imprimirle un tono solemne a la narrativa, pero lo que está me vino ofrecido en una bandeja de plata, sería una estupidez rechazarlo".
 

El escritor empezó a pensar en Caín hace muchos años, pero se puso a escribirlo en diciembre de 2008 y lo terminó en menos de cuatro meses. "Estaba en una especie de trance. Nunca me había sucedido, por lo menos con esta intensidad, con esta fuerza", rememora. Saramago, que una vez escribió que "somos cuentos de cuentos contando cuentos, nada" y así sigue viéndose, escribe más y más rápido que nunca (tres libros en un año), quizás como la mejor manera de seguir vivo. "Es verdad. Tal vez la analogía perfecta sea la de la vela que lanza una llama más alta en el momento en que va a apagarse. De todos modos, no se preocupen, no pienso apagarme tan pronto", sentencia.

 

En su blog (blog.josesaramago.org ) aparece hoy el anuncio de la nueva novela, una suerte de tráiler del libro y una carta de la presidenta de la Fundación Saramago, Pilar del Río, en la que anuncia a los lectores del Nobel que este Caín no les dejará indiferentes. 

 

 

Publicado em El País

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1987

O fim de uma época: Daniel Buren na biblioteca de Serralves
 
O episódio é conhecido: em 1971, uma série de nomes ligados sobretudo ao minimalismo, à arte conceptual e à "land art" - Donald Judd, Dan Flavin, Joseph Kosuth e Richard Long - exigiram a exclusão de uma obra de Daniel Buren, a monumental "Peinture-Sculpture", da sexta exposição internacional organizada pelo Guggenheim, em Nova Iorque, com o argumento de que o trabalho do francês comprometia a visão de outras criações, nomeadamente as dos autores do pedido de exclusão.
 
 
 
Apesar de a instalação ter sido aprovada inicialmente pela comissária da mostra, Diane Waldman, esta viria a ceder aos argumentos dos contestatários, decidindo retirar a peça de Buren - uma tela não esticada com 20x10 metros, suspensa, de modo a dividir, desde a clarabóia até à parte inferior da primeira rampa, o espaço cilíndrico da rotunda do museu.
 
Em oposição à retirada de "Peinture-Sculpture", dezasseis dos vinte e um artistas presentes na exposição assinaram uma petição, tendo mesmo Carl Andre, em solidariedade com Buren, retirado a sua obra da mostra; contudo, apesar dos gestos de solidariedade, a peça acabou por ser desmontada antes da inauguração. Nesse ano, 1971, uma retrospectiva de Hans Haacke foi cancelada pelo mesmo museu, na sequência da vontade do então director do Guggenheim, Thomas Messer, de excluir dois trabalhos da exposição, um desejo repudiado neste caso quer pelo artista, quer pelo comissário, Edward Fry - as obras em questão eram "Shapolski et al. Manhattan Real Estate Holdings" e "Sol Goldman and Alex DiLorenzo Manhattan Real Estate Holdings". Os trabalhos de Buren - não esqueçamos a sua imagem de marca, as listras coloridas, com 8,7 cm de largura - e de Haacke podem ser considerados momentos fundadores da crítica institucional.
 
Hoje, a assimilação deste projecto pelas instituições, nomeadamente através da inclusão nas suas agendas de iniciativas (mostras, colóquios, cursos, etc.) relacionadas com a investigação sistemática do sistema artístico anulou os seus efeitos práticos. Continua, mesmo assim, a ser necessária uma análise atenta e permanente das possíveis instrumentalizações das estruturas museológicas para outros fins - ou das instrumentalizações por estas realizadas em seu benefício. Essa tarefa pode ser realizada quer a partir de um olhar centrado na sua componente artística - por exemplo, a relação da obra de arte com a arquitectura envolvente ou a forma como se constitui um programa de exposições -, quer focando a atenção na autonomia de um museu relativamente a interesses distintos (políticos, económicos, sociais, administrativos).
 
Em texto incluído em "Art Since 1900", precisamente o dedicado a 1971, Benjamin Buchloh escreve que a crítica institucional, tal como formulada por Haacke e Buren, é um projecto que pode ser associado ao impacto das teorias críticas e pós-estruturalistas nas artes visuais: "Podemos dizer que para Haacke este efeito é evidentemente o legado do pensamento da Escola de Frankfurt e de Jürgen Habermas, enquanto para Buren é evidentemente o legado estruturalista e pós-estruturalista de Roland Barthes, Michel Foucault e Louis Althusser, que levaram a práticas artísticas que tomam em conta a inescapável sujeição da arte a interesses ideológicos." Porém, tudo isto parece distante, absorvido: passados 34 anos, o artista francês, já depois de consagrado com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza (1986), volta ao Guggenheim com uma exposição intitulada "The Eye of the Storm" - Buren, que, em 2005, num diálogo com Olafur Eliasson publicado na revista "Artforum", declara a propósito de instituições como a Tate, o Centro Pompidou, o MoMa ou o Guggenheim: "Estes são certamente lugares onde expor ainda é um "plus", mas expor em quaisquer outros é como expor numa galeria ou seja lá onde for - não é uma coisa que indica que o teu trabalho é muito especial."
 
Serralves pertence porventura àqueles museus que ainda não foram atingidos pelo síndroma de que hoje sofre o Louvre, uma situação analisada recentemente por Pietro Citati em artigo publicado no "La Repubblica" : "Os oitomilhõesquinhentosecinquentamil visitantes [o número de entradas na instituição francesa, no ano passado] não são, na sua maioria, nada: não compreendem nada: não amam a pintura: não distinguem um Grünewald de um Caravaggio: não experimentam nenhuma alegria; e aborrecem-se mortalmente." Através desta poderosa crítica, o escritor italiano consegue atingir o cerne da actual questão: o divórcio absoluto entre o espectador e a obra de arte, confundindo-se esta cada vez mais com as necessidades básicas de compreensão do público - quanto mais divertida a experiência, melhor, chegando-se ao ponto de, numa das exposições realizadas este ano no Guggenheim, o artista Carsten Höller propor um espaço em que o visitante podia dormir por um preço que variava entre 259 (estudantes, só às segundas-feiras) e os 799 dólares (fins-de-semana), sendo-lhe ainda permitido circular pelos seis pisos da instituição durante a sua estada.
Comissariada por Guy Schraenen, a actual exposição dedicada a Daniel Buren pela biblioteca de Serralves - numa altura em que o museu comemora dez anos - é, por isso, uma excelente oportunidade para reflectir sobre os desígnios da instituição. Mais público, menos arte, parece ser a estratégia, na qual o marketing ganha cada vez mais território relativamente à investigação, ao saber.
 
 
Quanto aos livros e publicações expostos, aparecem transformados em "documentos" de uma época já desaparecida - alguns surgem sobre plintos, outros emoldurados, numa contradição absoluta relativa aos seus usos, como é o caso dos convites/cartazes usados nas intervenções realizadas pelo artista no Wide White Space, em Antuérpia, entre 1969 e 1974.
 
Há um envelhecimento precoce em muitos destes domesticados objectos, talvez porque se quis andar demasiado depressa, sem pensar nas consequências desse movimento: a ineficácia crítica.
 
Oscar Faria - Publicado no Ipsilon
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publicado por ardotempo às 12:43 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 26.08.09

Quem quer comprar?

Todos querem vender...

 

 

 

 

Itaci Batista - Fotografia - Concorrência (São Paulo SP Brasil), 2009

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Sapatos

 
Um problema dos blogs
 
Un problema de los blogs literarios: Al buscar una cierta espontaneidad, corrigen poco cuando corregir – elaborar tras haber producido previamente el documento espontáneo - suele ser  esencial para la escritura de un texto literario.
 
No escribo. Corrijo”, decía Augusto Monterroso.
 
Quisiera corregir, reelaborar el fragmento. Pero no lo suprimas. Deja que este fragmento, aún volviendo sobre las mismas cuestiones y diciendo cosas muy parecidas – también él con el mal de la espontaneidad, todo sea dicho -, lo corrija.
 
Me he ido de vacaciones y he vuelto. No ha llovido un solo día en la casa del Eterno Retorno. Al volver, observo que permanece en mí esa tendencia a enredarse en el camino de la que hablaba Sterne en su Tristram Shandy.
 
Tengo que advertirte que estoy enmarañado y que esa parece mi única realidad. Una vez más, percibo que no es fácil volver a un libro del pasado. 
 
Me gustaría que te preguntaras esto: ¿Qué hombre podría soportar volver a pensar, como testigo, todo lo que pensó a lo largo de su vida? Sería sin duda insoportable. Nuestra vida, en cambio, lo es menos, tal vez porque es más espontánea. Quizás porque es tan espontánea, la reescribimos. Para corregirla.
 
Recuerdo que Paul Valéry, en los Cahiers, decía más o menos que nuestra historia, nuestra vida, hace de nosotros tal persona, y eso es un insulto. Qué hay más ridículo que alguien, se preguntaba Valéry. Resulta escasamente estimulante volver sobre el pasado remoto, créeme, y ya no digamos sobre lo escrito en los días ya casi olvidados. Me gusta mirar siempre adelante, hacia los nuevos horizontes. Pero el horizonte tal vez también esté en aprender a examinar en profundidad lo que pensaba en los días juveniles en los que escribí ese libro o gran fiesta de shandys. Examinar en profundidad, he dicho. Pero te diré la verdad. En esos días pensaba tan sólo banalidades como ésta: Valery es formidable.
 
Pensaba cosas así. Lo que, por otro lado, prueba que no fue nada aleatoria, como se ve, la referencia a Valéry, el epígrafe procedente de Monsieur Teste que abría el libro: 
El infinito, querido, es bien poca cosa; es una cuestión de escritura. El universo sólo existe sobre el papel”.
 
Pongamos ahora una fotografía de uno de los Cahiers de Valéry. 
Pongamos los zapatos de Monsieur Teste. 
Valéry es formidable. Sí. 
 
Podría añadir algo más a este formidable y demostrar que ya no estoy en el punto perdido en el que me movía cuando era joven. Pero saber más – en este caso, haber leído precisamente  al propio Valéry cuando decía que estaba claro que aumentar y profundizar un pensamiento se opone a la vida - me impide ahora precisamente decir más.
 
Ciertas contradicciones necesitan zapatos. Para ir despacio a corregirlas. O para salir corriendo de ellas.
 
 
 
 

© Enrique Vila-Matas 

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Terça-feira, 25.08.09

A catedral

Arquitetura

 

 

 

 

 

Antoni Gaudí - La Sagrada Familia - Catedral / Arquitetura (Barcelona - Espanha)

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Segunda-feira, 24.08.09

As bibliotecas têm fantasmas

Bibliomanias
 
José Mário Silva
 
As pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas obcecadas por livros. A bibliofilia não é apenas uma doença crónica; é também contagiosa. Ao lermos sobre as grandes bibliotecas pessoais – com dezenas ou centenas de milhares de volumes – aspiramos a uma igual desmesura, subitamente embaraçados com a pequenez, a desordem e as lacunas da dúzia e meia de estantes lá de casa. Melhor dito: as pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas ainda mais obcecadas por livros do que elas. E foi por isso que devorei de uma assentada o ensaio breve de Jacques Bonnet intitulado Des bibliothèques pleines de fantômes (Denoël, 2008, 138 páginas).
 
Editor, tradutor e autor de livros sobre pintura, Bonnet é um bibliómano que nos escancara a sua bibliomania, não escondendo um certo exibicionismo e uma certa ostentação (nalguns casos até uma certa vaidade), próprios de qualquer bibliómano que se preze. Por muito que mencione as bibliotecas dos outros, ele regressa sempre à sua, minuciosamente descrita em dezenas de páginas que chegam assemelhar-se a um catálogo bibliográfico. Através dos seus livros, é a sua vida, é a sua biografia que se desenha. Nada de muito espantoso, diga-se. Faz parte da natureza das bibliotecas tornarem-se um espelho do seu proprietário. E quem as saiba «descodificar com subtileza» encontrará nelas, mais ou menos escondida, "a natureza profunda do seu bibliotecário".
 
Ao recordar a forma como chegou a certos livros, Bonnet revela, de facto, alguns aspectos da sua personalidade, como a perseverança e a extrema atenção aos detalhes. Por exemplo, a abrir o ensaio, aborda o célebre episódio em que Fernando Pessoa se candidatou ao lugar de conservador-bibliotecário do museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, corria o ano de 1932. Como se sabe, o poeta dos heterónimos acabaria por ser recusado, em favor de um "pintor obscuro". Ao citar a carta de candidatura de Pessoa, com a sua "retórica insólita", Bonnet explica que a encontrou reproduzida na Fotobiografia de Maria José de Lencastre (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), por si comprada em 1983, por 500 escudos, numa livraria de Coimbra, cidade em que se lembra de ter visto uma mulher a andar na rua com uma máquina de costura equilibrada sobre a cabeça.
 
Na linha do que sugeriram Borges e Bachelard, para Bonnet a biblioteca é o que mais se aproxima da ideia de paraíso terrestre. Ela é um "concentrado de tempo e de espaço", protege da "hostilidade exterior", como se fosse um útero, e confere "um sentimento de poder absoluto". Rodeado pelos seus livros, o bibliómano nunca se sente desamparado. Sabe que tem, sempre ao seu alcance, os instrumentos necessários para interpretar a realidade. E não lhe falem da Internet e suas infinitas reservas de informação. Por muito que se encontre por lá tudo o que se queira saber, quase instantaneamente, ela é "desprovida de fantasmas", diz Bonnet, falta-lhe a dimensão "divina".
 
A maior parte do ensaio centra-se nas alegrias e tormentos de quem possui uma biblioteca "monstruosa", com dezenas de milhares de livros. E não faltam histórias incríveis. Como a de Antoine-Marie-Henri Boulard (1754-1825), que encheu nove prédios, adquiridos expressamente para receberem os seus 600 mil livros – após a sua morte, ao venderem a colecção, os filhos inundaram o mercado, baixando durante muitos anos os preços nos alfarrabistas. Ou a de Charles-Valentin Alkan, pianista virtuoso que morreu esmagado por uma estante, em 1888, o que o habilita ao estatuto de "santo mártir" dos bibliófilos. Ou a daquele condenado à guilhotina que continuou a ler enquanto o conduziam ao cadafalso e, chegada a hora, marcou a página onde estava, antes de entregar o pescoço à lâmina.
 
Além de analisar as complexas questões logísticas e imobiliárias associadas às bibliotecas proliferantes, Bonnet dedica muito espaço ao bicudo problema da classificação e arrumação, multiplicando hipóteses, sistemas e estratégias. Eu, à minha reduzida escala, também conheço o dilema. Não sei, por exemplo, onde colocar, agora que acabei de o ler, este livrinho a abarrotar de livros (e de fantasmas) lá dentro.
 
 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel 

Imagem: Natureza morta com crânio - Paul Cézanne, Pintura - óleo sobre tela, circa 1900

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É a vida

A Dona Olga e eu

António Lobo Antunes
 
Mora aqui, num destes prédios sem idade nem elevador, sempre vestida como para um baptizado ou um casamento, de boininha verde na cabeça, toda pinoca: nenhuma prega, nenhuma nódoa, um camafeu a fechar-lhe a gola, pulseiras, anéis, o caracol trabalhado sobre a linha de lápis castanho das sobrancelhas.
 
Deixa uma cauda de perfume atrás, um sorriso difícil à frente. Rugas no lugar das covinhas das bochechas: que idade terá? Quase não se percebe a falta de dinheiro, quase não se percebe a solidão: domingos compridíssimos, o retrato de um sargento da Marinha na cómoda: isso vejo do passeio porque a sala é pequena e o rés-do-chão baixo. Ao lado do sargento, num prego, o calendário com um mês de atraso: janeiro e por cima dos dias todos de janeiro uma paisagem de montanha, um lago, um pastor a tocar flauta sentado numa pedra, de mindinhos suspensos. Um gato na almofada de uma cadeira, que só existe quando não estamos a olhar. Se olharmos a almofada vazia, com rosas de cetim bordadas. Às vezes uma jarrita de flores a acompanhar o sargento. Ao cabo de uma semana a água da jarrita amarela escura.
 
Gostava tanto, por ela, que na cómoda do retrato houvesse uma gaveta cheia de cartas do militar. Dando a volta ao prédio a cozinha: quase nada nas prateleiras. Não: um duende de borracha a sorrir, com o boné inclinado para a nuca e uma lata com uma amolgadela que diz Feijão.
 
Em casa dos meus pais latas que diziam Feijão, Arroz, Grão, Sal: procurava-se lá dentro e tudo trocado. Ou vazias. Na última chocalhava uma moeda ferrugenta, alemã. Sacudia-se a lata e a moeda a cantar. Em alemão acho eu, porque não entendia as palavras. Uma parte da minha ascendência é alemã: trisavô Rudolf, trisavó Josephine. Loiros, de olhos claros.
 
Pareço-me com eles. O trisavô Rudolf inventou uma carruagem muito alta, sem portas, que guiava de uma banco empoleirado no tejadilho. Conta-se que ia perdendo filhas pelo caminho, devido ao baloiçar da geringonça. Não perdeu a bisavó Paulina, feia como a noite dos trovões, porque ando aqui. A prosa está a sair-me toda torta, acho que perdi a mão para escrever. Recomecei esta crónica umas cinco vezes. E a esposa do sargento da Marinha nem sequer põe problemas, em condições normais era só deixar correr a esferográfica. Não corre. Cada letra custa. Bom, fiquei a espreitar a cozinha. A lâmpada do candeeiro mais perto fundira-se e creio que não me viu. Trazia o retrato que poisou na bancada a embirrar com o duende, e aqueceu a sopa num tachito. Não lhe faltavam os anéis, nem o camafeu, nem a boina. Acabada a sopa descascou uma maçã para dentro do prato, e foi-a comendo com a ajuda da faca, quase de costas para mim. O gato que só existia quando não olhávamos arredondou-se numa mesa de tampo de oleado. Reparei na coleira com um guiso silencioso. A senhora acabou a maçã e ficou eternidades quieta a observar as mãos. Ajeitou a boininha.
 
A torneira do lava-loiças pingava lágrimas custosas que não tombavam logo, rodeavam o bico primeiro, hesitando, até acederem num desgosto pesado. De minuto a minuto uma melancolia transparente achatava-se no ralo, uma nova tremura principiava a inchar. As árvores fabricavam um ventinho distraído. A senhora levou o retrato para a sala: presumo que conversavam de barcos. De barcos não acredito: o sargento apresentava-se mais a um sargento de secretaria, desses que carimbam, carimbam. A tertúlia dos reformados juntava-se no café do paquistanês e a senhora imóvel na sala a responder ao marido finado.
 
Descontados os barcos de que falariam, à sombra do janeiro remoto do calendário? Rugas no lugar das covinhas das bochechas, o despertador a sofrer do coração no quarto, empurrando minutos na direcção de quê? A lata, ofendida, repetia Feijão feijão feijão. O gato voltou aos bocadinhos, uma pata, o focinho, a orelha direita, o resto do bicho no corredor ou na copa, invisível, secreto. Apetecia-me estar ali com ela, em silêncio, pegar-lhe no cotovelo, cumprimentar
 
 - Olá.
 
Explicaram-me que anda a tratar-se no hospital, avia gotas na farmácia, injecções de beber, entra no cabeleireiro, fiado, antes das consultas:
 
- Estou melhor
 
aposto que com o retrato do marido na carteira: a companhia do defunto ajuda, o sargento tem cara de homem sério. Segundo a proprietária do quiosque de revistas deu-lhe um aneurisma
 
(- Essas veias que rebentam)
 
e ficou negro no soalho, a espernear. Quando acabou de espernear a boca aberta numa surpresa enorme, a dentadura a descolar-se
 
(- Uma dentadura cara, com ganchos de arame para agarrar lá atrás)
 
o indicador ainda a encolher-se e a esticar. Quando deixou de se encolher e esticar fardaram-no
 
(- Tinha uma medalha e tudo)
 
e sumiu-se do bairro. Imagino um caixão em forma de corveta, com um carimbo em cima. É a vida 

(- É a vida)
 
ninguém cá fica para semente. Ou seja fica o duende, fica o calendário, fica a almofada, fica ela sempre vestida como para um casamento ou um baptizado, toda pinoca. Quase não cumprimenta as pessoas: o camafeu não lhe fecha apenas a gola, fecha-lhe a alma inteira. Dona Olga
 
(- Chama-se Dona Olga)
 
que substitui os sapatos por chinelos e espera. Quem? O médico verifica-a nos aparelhos, aumenta as gotas, diminui as gotas. Segreda-se que tem um filho no Luxemburgo
 
(- O Armando)
 
e a proprietária do quiosque
 
- Luxemburgo o tanas, na cadeia 
 
em consequência de uma ourivesaria a jeito: é a vida
 
(- Se o pai sonhasse)
 
mas o pai não sonha, incha na moldura, com a condecoração. A sopinha, a maçã. Às vezes a dona Olga tem uma nesga da janela aberta, e diante da nesga da janela aberta o que queria mesmo era encontrar a lata onde chocalhava a moeda alemã, tirar a moeda e deixar-lha no peitoril. Mesmo que não servisse para pagar o cabeleireiro a dona Olga podia agitá-la na palma e ouvi-la cantar numa língua estrangeira.
 
 

© António Lobo Antune

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publicado por ardotempo às 14:06 | Comentar | Adicionar

Recomendação de Blog

Blog

 

 

Obrigado, José Simões. Conforme reza a regra, a passagem do bastão deve acontecer na área assinalada e no tempo certo. Viver não é preciso...

 

Blog recomendado: Der Terrorist

publicado por ardotempo às 13:51 | Comentar | Adicionar
Domingo, 23.08.09

Vocação autoritária

O meio e a mensagem
 
Ferreira Gullar
 
A imprensa também erra. Alguns importantes jornais brasileiros apoiaram o golpe militar de 1964, que pôs abaixo o governo de João Goulart. Tornou-se célebre o editorial de primeira página do "Correio da Manhã", intitulado "Basta!". Foi como um sinal para que os militares conspiradores deflagrassem a sublevação que derrubou o presidente legítimo e colocou em seu lugar um general até então desconhecido de todos.
 
O erro daqueles jornais foi fruto do temor de que a aliança de Jango com as lideranças de esquerda, por favorecerem a mobilização dos descontentes nas cidades e no campo, propiciaria a tomada do poder pelos comunistas. Temor injustificado, que os fez confiar nos militares como guardiões da democracia. Alguns meses foram suficientes para mostrar-lhes o engano em que haviam incorrido e, a partir de então, passaram a questionar o novo regime. A reação dos milicos não se fez esperar: das ameaças iniciais contra jornalistas, passaram à censura dos jornais, chegando ao ponto de instalar censor nas Redações.
 
Imprensa livre e regime autoritário não podem coexistir, e a razão é óbvia: a informação livre e a opinião independente são intoleráveis a quem se julga dono da verdade e inseguro quanto à legitimidade de seu poder.
 
É verdade, porém, que não são apenas os ditadores e os tiranos que odeiam a imprensa livre. As pessoas, de modo geral, não aceitam ser criticadas, e os políticos, especialmente, uma vez que o bom êxito de sua carreira depende da opinião pública.
 
Deve-se considerar, no entanto, que uma coisa é não gostar de ser criticado e outra é querer calar quem o critica. Aqui mesmo, como cronista, tenho sentido isso, quando abordo algum tema polêmico; há os que escrevem apenas discordando, mas há os que, indignados, sugerem que a direção do jornal me obrigue a calar. "Muito me admira que um jornal como a Folha publique artigos que ofendem a verdade..." Assim também pensava a ditadura: quem discordava dela, ofendia a verdade e, por isso, era legítimo calá-lo.
 
Certos políticos lidam mal com a imprensa, como é o caso do presidente Lula, que está sempre acusando-a de parcialidade e má-fé. Mas esse é um caso muito especial, já que nunca neste país um presidente da República teve tanta cobertura da imprensa. Sua figura e suas palavras estão permanentemente na tela da televisão e nas páginas dos jornais.
 
Não obstante, ele também permanentemente se queixa de que a mídia o persegue e a seus aliados. Recentemente, afirmou que os jornais estão condenando as pessoas, sem que a Justiça as julgue, quando, na verdade, o que a imprensa tem feito é divulgar informações, que podem ser desmentidas, no caso em que não sejam corretas ou verdadeiras. Mas espanta que Lula faça tais afirmações quando, de fato, ninguém acusou tanto seus adversários políticos como, durante 20 anos, o fizeram ele e seu partido. Lembro-me de sua cara na TV, com olhar furioso, exigindo o impedimento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, a propósito de acusações que a Justiça considerou falsas contra um auxiliar do gabinete presidencial.
 
Lula sabe muito bem de tudo isso, porque bronco ele não é. Sabe e diz o que diz, porque confundir a opinião pública é uma velha tática sua. Na verdade, ele é um presidente midiático, aliás, mais midiático que presidente, já que passa 90% de seu tempo a discursar em comícios e a fazer pronunciamentos. O que menos faz é governar, uma vez que quase nunca está em Brasília e, quando se reúne com seus ministros, é para discutir questões políticas ou providências que preservem sua boa imagem e a de seu governo. Discursar é preciso, governar não é preciso...
 
 
E agora, quando se aproxima o ano eleitoral de 2010, novas iniciativas estão sendo tomadas para incrementar ainda mais a sua presença em todos os cantos e recantos do país. Além dos programas de televisão e rádio, em que se autopromove diariamente, terá agora uma coluna assinada em centenas de jornais pelo país afora.
 
Como não pode impedir que a imprensa noticie e opine sobre os atos de seu governo, vai tentar abafar-lhe a voz, escrevendo (?) e falando sem parar, todo o tempo e em todos os lugares, na esperança de que só sua voz seja ouvida. De qualquer maneira, melhor isso do que fechar os jornais e as redes de televisão, como continua fazendo seu amigo Hugo Chávez.
 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL  

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Sábado, 22.08.09

Novo elogio da loucura

Os títulos dos livros são diversos do original em espanhol:

 

Nuevo elogio de la locura

 

Alberto Manguel

 

No Brasil: À mesa com o Chapeleiro Maluco

              Ensaios sobre corvos e escrivaninhas

 

Em Portugal: No Bosque do Espelho

                  Uma viagem fantástica ao mundo dos livros

 

 

 

 
Foi em 1996, com Uma História da Leitura, que Alberto Manguel (n. 1948) chamou a atenção de toda a gente. Nessa época já ele era um autor canadiano. Na vasta bibliografia, só o livro inaugural foi escrito na língua materna: Dicionário de Lugares Imaginários (1980), obra de que é co-autor com Gianni Guadalupi. A partir daí escreveu sempre em inglês. Manguel nasceu em Buenos Aires, mas passou a infância e parte da adolescência em Israel, onde o pai era embaixador. Voltou à Argentina para completar o ensino secundário, tornou-se íntimo de Jorge Luís Borges, viajou por todo o mundo antes de fixar-se no Canadá nos anos 1980, mas, não obstante a cidadania canadiana, vive actualmente em França. Manguel goza de uma fama notoriamente excessiva (a lista de prémios internacionais é impressionante). Embora tenha escrito romances e contos, alguns de natureza gay, e organizado antologias de diversa índole, é como ensaísta que se destaca. Os anos em que lia para Borges, já então cego, foram um bom tirocínio.
 
No Bosque do Espelho (À mesa com o Chapeleiro Maluco - Companhia das Letras / Brasil - AT) toma como ponto de partida a obra-prima de Lewis Carroll, adoptando como divisa o mot de Heraclito: "Nunca mergulhas no mesmo livro duas vezes". Trata-se de uma colectânea de ensaios de muito diversa proveniência: artigos encomendados, textos para cursos de jornalismo das artes, conferências, recensões críticas, antologias gay, introduções e posfácios. Manguel estabece um fio condutor entre textos de Borges, Cortázar, Chesterton, Melville, Cynthia Ozick, Santo Agostinho e outros. Do ponto de vista da erudição e do ofício, tem a perfeição do amanuense culto. Mas raramente nos surpreende com um golpe de asa.
 
Uma das excepções é a sanha com que “desmonta” Bret Easton Ellis a partir de Psicopata Americano (1991). A parte do anedotário é conhecida: depois de ter pago um adiantamento avultado a Ellis, e ter o livro impresso, a Simon & Schuster desistiu de o pôr à venda por causa da violência do conteúdo; saiu, como é sabido, sob chancela da Vintage Contemporaries da Random House. Mas Manguel aproveita para aliviar o fígado: «A primeira linha do livro é o lema de Dante para as portas do Inferno [...] De facto, tudo está montado de modo a levar o leitor a crer que a história que se segue é, de facto, de natureza literária: contemporâneo e irónico [...] moderno [...] sério e filosófico. As 128 páginas que se seguem (a primeira cena brutal começa na página 129) são agonizantes para qualquer pessoa que não esteja habituada a ler publicidade de moda. [...] Não é escrita; é um desfile de palavras com o propósito de fazer um catálogo.» E não poupa nos adjectivos: os relatos são «grotescos», a prosa «desajeitada», o estilo «débil» e o vocabulário «magro». Tudo por contraponto com Ovídio, Dante, Novalis, Sade, Kafka e Dostoievsky. Convenhamos na desproporção.
 
O ensaio dedicado a Cynthia Ozick é dos mais estimulantes. A partir das leituras que Ozick fez de Primo Levi, Manguel reflecte sobre a condição judaica, ameaçada pela «galáxia canibal da cultura cristã». Faz isso com argúcia e desenvoltura, sobretudo quando contrapõe os conceitos de raiva e misericórdia que, na perspectiva de Ozick, Levi relacionava com autodestruição.
 
A afirmação de que, «até à década de 1960, o Canadá mal reconhecia a existência da literatura canadiana» é completamente inesperada. Creditando esse reconhecimento à teimosia e perseverança de alguns editores, bem como à projecção da obra de Margaret Atwood — que classifica com paternalismo —, Manguel reserva os elogios para Richard Outram (1930-2005), «um dos melhores poetas em língua inglesa».
 
Tudo visto, parece-me fútil, para não lhe chamar pedante, ter alinhado os textos sob o enigmático patrocíno de Alice no País das Maravilhas. Mesmo nos ensaios sobre Borges, porventura aqueles em que está mais à-vontade, Carroll é uma fasquia muito alta para este argentino déraciné.
 
Eduardo Pitta - Publicado no Blog Da Literatura

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Segunda-feira, 17.08.09

Giorgio Morandi - Natureza Morta

Pintura

 

 

 

 

Giorgio Morandi - Natureza Morta - Pintura - Óleo sobre tela (Bologna - Itália)

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Domingo, 16.08.09

Preferia não fazê-lo

Bartleby ou O eclipse da palavra
 
João Ventura
 
"Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro (...é a barbárie. AT) ", afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, repetiu até à própria laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: "Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só".
 
Caídos neste torvelinho de terrível impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hanna Arendt chamou a «banalidade do mal», escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de ter proferido palavras de um modo que anunciava a promessa de novas palavras, como um rio que de repente tivesse secado deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do nunca mais dito. Como se escrever, acrescentar mais alguma semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.
 
Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos seus Diários. Borges cita o poeta argentino Enrique Banchs, de quem diz: "Na cidade de Buenos Aires, em 1911, Enrique Banchs publica La urna, o melhor dos seus livros, e um dos melhores da literatura argentina: depois, misteriosamente, emudece. Há vinte e cinco anos que emudeceu". Seriam, afinal, cinquenta e sete anos. E essa mesma experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século por escritores com medo de existir diante da anormalidade da escrita: Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Juan Rulfo, J. D. Salinger, Henri Roth… Tal como os seus antepassados Hölderlin, Joseph Joubert, Rimbaud. Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: "sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido" e, com uma singular precocidade, a escrever toda a sua obra até aos dezanove anos para depois partir para a aventura abissínia.
 
A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia [Assírio & Alvim, 2001 / Cosac&Naify - Brasil], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa "pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre". Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto homónimo de Herman Melville – que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente "Preferia não o fazer" - espécie formulação não exaltante na negatividade moderna -, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, «notas sem texto», como ele lhe chama, sobre o síndroma de Bartebly, esse "mal endémico das letras contemporâneas", uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude é a de avivar-nos a memória e o desejo de revisitar as paisagens literárias que vai povoando e seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth e tantos outros escritores que formam a nossa biblioteca obscur
 
Entretanto, se alguém quiser adentrar-se mais no significado desta renúncia bartlebyana deverá visitar os ensaios de Giorgio Agamben [Bartebly o della contigenza, Macerata, 1993] ou Gilles Deleuse ["Bartleby ou la formule", in Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1993].
 
 
 
 
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades 
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publicado por ardotempo às 20:28 | Comentar | Adicionar

A consciência de existir

Morrer não dói
 
Ferreira Gullar
 
Todo mundo respirou aliviado com a notícia de que Felipe Massa, ao contrário do que se temia, estava fora de perigo e, sobretudo, sem sequelas. Mal acreditei quando o vi na televisão, com o olho esquerdo ainda arroxeado, falando sobre o acidente. Bem, estou dizendo o óbvio. Não obstante, ao ouvir suas declarações, um detalhe me chamou a atenção, quando afirmou que não se lembrava de ter sido atingido por algo nem de nada do acidente. Ou seja, o baque que sofrera na cabeça, ao sofrer o impacto de uma mola, de quase um quilo de peso, voando a mais de 200 quilômetros por hora, não aconteceu. Para ele, Felipe Massa, não aconteceu.
 
Muito bem. Então, vamos agora admitir, por mera hipótese (bata na mesa), que ele tivesse morrido, que o capacete não fosse tão resistente e, mesmo, que a tal mola tivesse vindo alguns centímetros abaixo etc. etc. etc... Imaginou o que teria acontecido naquele domingo?
 
A expectativa que se criou logo após o acidente e que já foi suficiente para deixar todo mundo assustado, teria tido outro desfecho, como no caso de Ayrton Senna.
 
 
Assim que, na ambulância, os médicos constatassem o estrago que o impacto teria provocado na cabeça dele, imediatamente, pela reserva mesma que certamente adotariam, a apreensão ganharia peso e sem muita demora a notícia terrível se espalharia pelo mundo. Felizmente, não aconteceu, mas, se tivesse acontecido, em que pese o impacto brutal da notícia, ele, Felipe, como se sabe agora, não teria sabido de nada. Ou seja, ele teria vivido apenas até uma fração de segundo antes de apagar-se para sempre, de deixar de existir.
 
Espero que o leitor não fique chocado com o tipo de especulação que estou fazendo aqui. De qualquer modo, é impossível ignorar este fato: Felipe Massa não soube de nada que lhe aconteceu, mesmo tendo sofrido uma pancada de incalculável violência que poderia tê-lo matado.
 
Milhões de pessoas no mundo todo teriam sentido a sua morte, que tomaria conta do noticiário em todos os veículos de comunicação, mas, ele, o personagem central do drama, saíra de cena antes, uma fração de segundo antes.
 
É isso aí, a gente não morre a nossa morte; morre a dos outros.
 
No que se refere a nós, os que continuaram vivos, a morte do jovem piloto nos teria atingido de maneira brutal. Enquanto isso, lá na Hungria restaria apenas um corpo morto dentro de um macacão de piloto da Fórmula 1. Para ele, Felipe, nada tinha acontecido, nem o acidente nem nada antes. É que, ao morrer, ao apagar-se o que somos - a consciência de existir - apaga-se o presente, o passado, tudo. Quem morre é como se nunca houvesse existido, a não ser para os outros.
 
Desculpem se insisto nesta conversa aparentemente macabra. Mas lembrem do que aconteceu com os passageiros daquele avião da Continental Airlines, que se dirigia para Houston e, na altura das Antilhas, entrou numa zona de turbulência. Os sacolejos violentos jogaram gente para cima, para os lados, houve quem desse com a cabeça no teto do avião, outros quebraram o nariz, o braço, soltaram gritos aterradores. Mas não morreu ninguém. Uma passageira, falando mais tarde aos jornalistas, mal continha o pânico que ainda a tomava. "Foi um desespero, estava certa de que ia morrer!"
 
Veja bem: enquanto Felipe Massa, atingido na cabeça por um objeto que, por um triz, o teria matado, de nada se lembra, essa senhora, que não sofreu um arranhão durante a turbulência, fala dela como de um momento aterrador. Espera jamais passar por experiência semelhante.
 
Tendo a concluir que morrer não dói: o que dói é o medo de morrer, pois isso ainda é vida. Claro, só sofre quem vive, consciente, e daí concluímos que a morte é problema dos vivos. E o morto também. O que fazer com ele? Isso é ocupação dos que ficam, não dele, agora livre de tudo.
 
Na verdade, o pior da morte, como vimos, é temê-la. Por isso mesmo, desisti de andar de avião. Melhor é não pensar nela e, quando pensar, aceitá-la. Ruim mesmo é a doença que põe o sujeito cara a cara com ela por muito tempo.
 
Já se, por exemplo, o cidadão adormece e não acorda mais, ótimo. Isso, levando-se em conta que, cedo ou tarde, tanto os mais velhos quanto os mais jovens, irão todos dormir para sempre. Não há exceção, nem mesmo para os políticos, habituados a privilégios: terão de deixar a cena também, o que é certamente auspicioso para o futuro do país.
 
 
A candidatura de Marina Silva à Presidência da República, se confirmada, como espero que seja, pode assinalar o início da grande mudança, a que a nação brasileira aspira. 
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL 
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publicado por ardotempo às 20:27 | Comentar | Adicionar

Está livre?

Os que sabem
 
Luis Fernando Verissimo
 
 
 
 
Já se disse que o mundo está nesse estado porque as únicas pessoas que sabem o que deve ser feito, os barbeiros e os motoristas de táxi, estão trabalhando em barbearias e dirigindo táxis em vez de nos governar. Barbeiros e motoristas de táxis têm a solução para tudo e é lamentável que não estejam em posições de comando, onde suas análises e receitas teriam conseqüências práticas. No Brasil, barbeiros e motoristas de táxis deveriam substituir governantes e políticos e decidirem os rumos da nação de acordo com as acuradas exposições que nos fazem da realidade nacional, mesmo sem serem solicitadas.
 
É claro que a substituição de políticos por barbeiros e motoristas de táxis poderia trazer uma contrapartida assustadora: a substituição de barbeiros e motoristas de táxi por políticos desempregados. Imagine-se num táxi dirigido pelo Sarney, espremido no banco de trás com toda a família dele, ou numa cadeira de barbeiro, sem possibilidade de fuga, obrigado a ouvir o Mão Santa falando sem parar enquanto corta seu cabelo - ou vendo o Collor se aproximar com aquele seu olhar furioso e uma navalha. Imagine-se numa corrida longa com o Suplicy na direção, cantando. Imagine a confusão no transito com a indecisão dos motoristas entre direita e esquerda, muitas vezes passando de um lado para o outro sem qualquer sinalização. Políticos substituindo motoristas de táxi e barbeiros aumentariam os engarrafamentos e os acidentes, inclusive os de orelhas cortadas sem querer. E no fim da corrida em táxi dirigido por políticos ainda haveria a questão do pagamento: o preço seria o que aparece no taxímetro mais um adicional por stress, auxílio moradia, subsidio para alimentação, verba de representação, diária de viagem...
 
Apesar deste perigo, acho que vale a pena proporcionar aos barbeiros e motoristas de táxi a oportunidade de darem um jeito no Brasil e no mundo.
 
A teoria, e a certeza das suas convicções, eles já têm. E se a atual crise do sistema financeiro mundial nos ensinou alguma coisa é jamais confiar o que quer que seja nos profissionais da matéria. Os economistas falharam em tudo, das previsões às soluções. De agora em diante deve-se proibir os economistas de se meterem na economia. Deve-se dar vez aos amadores e aos palpiteiros. Que venham os leigos! Com os barbeiros e os motoristas de táxi à frente.
 
© Luis Fernando Verissimo
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publicado por ardotempo às 20:25 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Joaquim Torres-Garcia

Pintura

 

 


 

Joaquim Torres-Garcia - Pintura - Óleo sobre tela (Montevideo - Uruguay), 1932

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publicado por ardotempo às 20:05 | Comentar | Adicionar

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