Terça-feira, 21.07.09

Anunciar o céu com as asas

Cri cri cri foguete
 
António Lobo Antunes
 
Chegam caixotes de livros pelo correio, chegam revistas literárias estrangeiras e eu pasmado: parece que não há quem não escreva neste mundo, romances sobre romances sobre romances, poesia, ensaio, biografia, contos, memória, o raio que o parta. E depois estudam-se uns aos outros, têm ideias, opinam, dissertam acerca de influências, presenças, ausências, ritmos, estruturas, aproximam nomes, afastam-nos, cagam postas, falam, compreendem, etiquetam, classificam, arrumam e tudo isto me dá um enjoo só comparável ao enjoo que me dão os jornais, não há quem não reflicta, não ache, não julgue, não decida, azedos, simpáticos, pretensiosos, analíticos, cultos, afirmativos, jocosos, o que tem esta tralha a ver com a vida, o que tem esta tralha a ver comigo, não me interessa, passem muito bem, adeuzinho e lá ficam eles a resmungar, a gesticular, a sussurrar, a medir. Não era assim que eu imaginava quando comecei, não me interessa, não quero. Interessam-me os meus amigos
 
            (tão poucos)
 
            interessa-me que haja sol, gosto de estar vivo embora, tão frequentemente, não saiba o que fazer com a vida, não pretendo passar mais tempo debaixo de tanta lombada e ensurdecido por tanta berraria, interessa-me o silêncio, o ventinho nas árvores, a Serra da Estrela, as pobres coisas que à noite não existiam e amanhecem nos passeios, até frigoríficos, até poltronas, a senhora internada no Hospital Miguel Bombarda que em lugar de
 
            - Bom dia
 
            me cumprimentava com a frase
 
            - Cri cri cri foguete
 
            cumprimentava o mundo inteiro com a frase
 
            - Cri cri cri foguete
 
            e trancava-se a seguir numa atitude feroz, deve ter morrido há que tempos e suponho que insiste
 
            - Cri cri cri foguete
 
            num cemitério qualquer a espantar os restantes defuntos, eles indecisos
 
            - O que significará cri cri cri foguete?
 
            e é simples, cri cri cri foguete significa cri cri cri foguete, nunca encontrei cri cri cri foguete em nenhum livro, em nenhuma revista, não consta, e no entanto que importante cri cri cri foguete, que decisivo. O que eu aprendi no Hospital Miguel Bombarda meu Deus, cri cri cri foguete abarca tudo. Lembro-me de mencionar ao meu falecido pai o cri cri cri foguete, do cachimbo dele se tornar mais rápido, de comentar passados tempos
 
            - Cri cri cri foguete é extraordinário
 
            continuando a ruminar nisso, no caso de se ter mantido cá em cima ainda ruminaria consoante eu rumino, na papeleta dela a profissão costureira de chapéus, um trabalho que me põe a sonhar, calculo já não existirem costureiras de chapéus, pessoas úteis, de longe em longe uma irmã visitava-a e ficavam de mão dada, caladinhas, só o
 
            - Cri cri cri foguete
 
            quando a irmã chegava, acabada a hora da visita ia-se embora muda, sob os plátanos, a sombra dos plátanos quase horizontal, comprida, a sombra dos plátanos compridíssima, começavam a servir o jantar em carrinhos de alumínio que tremiam, tremiam, longos corredores melancólicos, a noite, gatos e gatos em torno da cozinha, o mistério das plantas invisíveis nos canteiros soprando sem voz o nosso nome
 
            - Toma conta de mim
 
            pediam elas
 
            - Toma conta de mim
 
            porque não há maior desamparo que o das flores no escuro. Os pombos no telhado da garagem, de cabeça sob a asa conforme os motociclistas guardam o capacete sob o braço, a ambulância velha a que faltava uma roda, em cujos bancos não me importava de dormir se não dormissem ratos, lixo, bicharada. Devia tê-la roubado e trazido para o meu quarto, ratos incluídos, com autorização para comerem a biblioteca, os lençóis, o tapete, a roupa dos armários, facturas, manuscritos, cartas de tradutores com dúvidas
 
            (se lhes falasse das minhas...)
 
            retratos, condecorações, diplomas, prémios, as loiças de Rafael Bordalo Pinheiro, a televisão apagada. Um cabeleireiro aqui perto tem escrito na montra um resumo dos seus serviços, que inclui unhas de gel, drenagem linfática e banho de lua. Banho de lua é quase tão notável como cri cri cri foguete. Fui perguntar: consiste em pôr a pessoa toda loira, do cocuruto aos pés, só não compreendo lá muito bem o que tem isso a ver com banho e com lua. Se um dia destes cruzarem um sujeito amarelo-maçaneta sou eu. Não voltei ao hospital e se voltasse quem me conhecia? Corredores, corredores. Um internado a perseguir um enfermeiro coxo. O médico que trazia o molho de piripiri na algibeira para condimentar o almoço do refeitório. Gente a pedir cigarros. O Dinis Machado, se lhe pediam cigarros:
 
            - Não posso, só tenho dezoito.
 
            Escrevíamos cada um na sua ponta da mesa e o texto dele chamava-se Fado Alexandrino: ficava óptimo no meu, deu-mo. Havia alguma coisa que o Dinis não desse tirando os cigarros, difíceis de dar porque não os tinha nem os fumava: fumava uma espécie de charutitos, vestia-se como um gangster da Lei Seca, as patilhas, o penteado. Ao sorrir os olhos pareciam as ranhuras das caixas das esmolas e eu
 
            - Deixa-me enfiar uma moeda no teu sorriso.
 
            Com o Dinis falava de livros, tínhamos a mesma linguagem, a avó dele explorava uma casa de raparigas e o Dinis, em criança, almoçava com as meninas, aprendeu segredos, aos cinco ou seis anos, que demorei tanto tempo a encontrar, quando, em adolescente, uma rapariga se despiu para mim tive vontade de ajoelhar, escutei as palavras com que Deus advertiu Moisés
 
            - Descalça-te que o chão que pisas é sagrado
 
            e comovi-me até às lágrimas dado que um corpo feminino é um milagre que nenhum homem merece. E agora, de repente, apareceu-me a imagem da minha mãe a dar de mamar a um dos meus irmãos, de pálpebras descidas, com uma fralda a cobrir-lhe quase todo o peito. E envergonha-me que nós, que não nascemos mulheres, sejamos capazes de sujar tudo. Anunciar à rapariga das tocas o céu com as asas.
 
 
 
 
© António Lobo Antunes
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publicado por ardotempo às 04:28 | Comentar | Adicionar

Corpos antigos de Hasselblad pesam em demasia

 A Lua 

 
Dizem e escrevem que homem chegou à Lua há quarenta anos atrás. Em trinta anos de descoberto, por volta do ano de 1530, o Brasil tinha umas vilas aqui e ali, nuns portos improvisados em algumas baías e em certas embocaduras mansas de rios tropicais. Eram umas aglomerações de casarios precários e Portugal já começara a saga de sua colonização. Sempre foi muito arriscado cruzar o vasto oceano (e ainda hoje existem perigos inesperados a tornar a travessia dificil e incerta). Mas o ciclo da História fazia-se incontornável e aos primeiros seguiram-se outros e depois, muitos. É assim na vida e tudo tem seu curso, em evolução cumulativa. Nada fica igual em trinta anos. Mas o cenário imaginado por Stanley Kubrick em 2001, surpreendentemente, não aconteceu. Ao contrário, não aconteceu absolutamente nada na Lua.
 
Fala-se em  ausência de interesse comercial, das dificuldades de exploração mineral e das impossibilidades de viabilização econômica. Com toda a certeza esse deve ser esse o motivo, de fato. Mas quem nasceu de 1979 em diante, tem todo o direito de não acreditar que alguém chegou à Lua, se ninguém jamais lá voltou ou sequer pôde imaginar voltar. À propósito, não seria tudo bem mais fácil hoje, com a ajuda dos sofisticadissimos computadores e da leveza da miniaturização de todos os componentes necessários para uma nova façanha daquelas? Como foi possível em 1969 e agora já não é mais possível?
 
O que me intriga é ver o notável esforço do foguete Saturn a empurrar, para  vencer a atmosfera e gravidade terrestre (um foguete que mais parecia um arranha-céu em toneladas de combustível potente) e levar penosamente o pequeno módulo e a cápsula dos astronautas para sua órbita, comparado-se com a extrema facilidade com que decolou alguns dias o frágil artefato, o módulo de pernas de inseto, com pouco combustivel e nenhum teste prévio, a alçar-se em vôo de helicóptero e escapulir suavemente da tênue gravidade lunar. E de lá partiram gloriosamente os astronautas hermeticamente mascarados  em seus capacetes de visor negro, depois de emitir suas frases solenes, deixando alguns corpos de máquinas fotográficas Hasselblad cujo peso interferiria dramaticamente no eventual sucesso da decolagem faceira. Quedaram-se olvidados ao lado da bandeira que, curiosamente, balançava ao sabor do vento lunar, nos vídeos gravados do evento. Esses vestigios lá restaram para serem reencontrados no futuro pelos descendentes dos nascidos depois de 1979.
 
Veja o vídeo da chegada do homem na Lua.
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publicado por ardotempo às 03:46 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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