Domingo, 12.07.09

Chapéus

Crónica de amor
 
António Lobo Antunes
 
 
 
 
Os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos? O portão é tão fácil de abrir, as janelas nem grades têm, qualquer pessoa entra aqui com um empurrãozinho e depois os cães não fazem mal a ninguém, só servem para sujar tudo e estragar os canteiros, estou para saber porque carga de água os comprámos sem falar na despesa com o veterinário e a comida, na porta do alpendre toda estragada em baixo, no cocó espalhado na garagem que nos obriga a fazer uma gincana até chegarmos ao carro. E o cheiro, meu Deus, mesmo os miúdos tresandam a cão, respondes-me que todos os miúdos tresandam a cão a começar pelos que não têm cão, faz parte da natureza deles, depois crescem.
 
O problema é que demoram eternidades a crescer e enquanto crescem e não crescem vão escavacando tudo, pés no sofá, tampos riscados, o chichi fora da retrete, molho sempre o rabo quando me sento no aro. E se a gente desse os miúdos de mistura com os cães ou os deixasse na rua na esperança que a camioneta da Câmara os leve? Ficava um de nós lá fora, a tomar conta por causa dos ladrões, metade da noite eu, metade da noite tu, escondidos num buxo, prontos a morder, peço ao dentista que me aguce os pivôs e de pivôs aguçados corta-se madeira com eles, quanto mais um braço, uma perninha. Não me espreites assim que não te faço mal nem estou maluca, os cães dão-me cabo dos nervos e uma pessoa exagera, diz coisas que não pensa, arrepende-se. Bichos e crianças são mais ou menos a mesma coisa sobretudo aos fins de semana, eu o tempo inteiro com eles e tu no interior do jornal a tapares as orelhas com notícias, a leres os suplementos, a encheres o universo de papel, há páginas que caem e avançam tapete fora e depois o jornal é gordo e eu nem um olhar mereço, já nem falo num sorriso, um olharzito de cacaracá, uma frase de tempos a tempos, um elogio.
 
Cortei o cabelo, reparaste? Conheces estes brincos? O bâton rosado? Pensas que os homens não se interessam por mim? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, não interessa quem, podes perguntar que não respondo. Estás a ler o jornal ou a dormir? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, palavra, e tu há uma semana sem me tocares, trinta e seis anos, compreendes, repara nesta cintura, neste peito, o pescoço lisinho, as pernas sem uma variz, celulite e estrias viste-as, se me apanhassem nua os trinta e seis baixavam para dezanove ou vinte, com um perfume que eu cá sei para dezoito até, nem uma jeitosa de dezoito anos te fala à alma pois não, dezoito anos, palpita, e não palpitas, se um ladrão me levar não dás conta, pensas que tens alguma graça, tu, quase careca, essa barriga, pensas que dizes coisas que se aproveitem, às vezes, ao falares, ficas com esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, não existe pior friagem para uma mulher que esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, só de lembrar isso enjoa-me, nem sei como aguento, o que terei visto em ti, daqui a nada arranco-te o jornal das mãozinhas e para quê arrancá-lo se arrancando-te o jornal dou contigo e com as esponjazinhas, com os pêlos do nariz que bem podias cortar, quando tentei cortar-tos começaste logo a torcer-te
 
- Estás a fazer-me cócegas
 
e não estava a fazer cócegas nenhumas, estava a  por-te decente, aposto que na empresa se metem contigo e te chamam gorila, pêlos no nariz, pêlos nas costas, onde é que tu não tens pêlos e a parva da minha irmã a achar-te viril, se ela soubesse do que a loja gasta, como posso ter ciúmes de ti se nem para este peditório dás, há pastilhas na farmácia que ajudam, se te estenderes com uma amiguinha ela
 
- Então?
 
e tu, como fazes comigo
 
- Isto é como um avião, custa a descolar mas depois voa muito alto
 
e voa muito alto o tanas, mal deixa de sentir a pista aterra, lá vem a desculpa do costume
 
- Preocupações no emprego
 
tento ajudar na descolagem e népia, por mais que me esforce, e só falta dar pinos, o avião poisado, se me perguntassem
 
- Como é que engravidou duas vezes?
 
a única resposta verdadeira seria
 
- Como Nossa Senhora
 
e juntando-nos às duas, a ela e a mim, o Espírito Santo fez obra e graça três vezes, nada mal para um pombo, não estendas o garfo para o cinzeiro que em vez de me acertares com ele vais partir a cristaleira e os cálices de rebordo doirado são meus, vai na volta os miúdos, daqui a uns anos, ainda saem a ti nesse aspecto visto que fisicamente, em lugar de se parecerem com o Espírito Santo, que era a obrigação deles, se parecem contigo, deixa o cinzeiro em paz, deixa o anjinho de mármore em sossego, deixa o atiçador da lareira no sítio que não sou frango de espeto, sou mulher, repara neste peito, nesta cintura, neste pescoço lisinho, nestes tornozelos estreitos, deixa cá ver como está o avião, não me empurres, fechadinho no hangar coitado, eu já desconfiava e de chocolate ainda por cima porque amoleceu com o calor, os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos, se um gatuno me levasse era feliz garanto-te, quarenta e cinco anos e dão-me trinta e seis, o médico a preencher a ficha
 
- quarenta e cinco não acredito
 
e ao tirar a blusa para a auscultação ainda acreditou menos e isto sem estéticas, sem postiços, tudo meu, tudo firme, não preciso de ginásios, não preciso de dietas, o médico para mim
 
- Almoço sozinho já viu a minha tristeza?
 
e eu com pena da tristeza dele, com pena do metro e oitenta, com pena dos olhos verdes, realmente há pessoas infelizes, a cabeça cada vez mais perto do estetoscópio, a respiração dele na minha espinha, a impressão que o queixo me roçou uma ou duas vezes no ombro, não afirmo que roçou, afirmo que a impressão, a enfermeira ao trazer-lhe uns papéis
 
- Algum problema senhor doutor?
 
e eu aflita com o nervoso do homem, olhos verdes com pestanas compridas, um after-shave mais caro que o teu que para os after-shaves tenho olfacto, só não tive olfacto ao ir na tua cantiga, cuidado com o atiçador que te magoas, até parece que queres jogar à espada comigo, acaba com as fitas, senta-te no sofá, agarra no jornal que para isso ainda serves, agarra no jornalzinho, não me apertes o braço, não me puxes o cabelo, não faças boca de Drácula, pensa nas esponjas de cuspo e aguenta-te, não me obrigues a correr à volta a mesa que com os saltos não consigo, dá cá o atiçador, pronto, deixa-te de palermices, prometo que peço ao médico a marca do after-shave, aproveitas para comprar na farmácia lentes de contacto que tornam os olhos verdes, ajudo-te as pestanas com o meu rímel, só nos fica por tratar o problema do avião, se calhar lingerie preta ajuda à descolagem, se largares o atiçador faço-te voar alto, juro, se largares o atiçador
 
 
© António Lobo Antunes
Imagem: Gilberto Perin - Chapéu - Fotografia (Taormina, Sicília - Itália), 2009
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publicado por ardotempo às 18:14 | Comentar | Adicionar

Família de espírito

Leituras para o Verão

 
José Saramago
 
 
 
 
Com os primeiros calores, já se sabe, é fatal como o destino, jornais e revistas, e uma vez por outra alguma televisão de gostos excêntricos, vêm perguntar ao autor destas linhas que livros recomendaria ele para ler no Verão. Tenho-me furtado sempre a responder, porquanto considero a leitura actividade suficientemente importante para dever ocupar-nos durante todo o ano, este em que estamos e todos os que vierem.
 
Um dia, perante a insistência de um jornalista teimoso que não me largava a porta, resolvi ladear a questão de uma vez por todas, definindo o que então chamei a minha “família de espírito”, na qual, escusado será dizer, faria figura de último dos primos. Não foi uma simples lista de nomes, cada um deles levava a sua pequena justificação para que melhor se entendesse a escolha dos parentes. Incluí nos Cadernos de Lanzarote a imagem final da “árvore genealógica” que me tinha atrevido a esboçar e repito-a aqui para ilustração dos curiosos.
 
Em primeiro lugar vinha Camões porque, como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar. Seguiam-se depois o Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta, Cervantes, porque sem o autor do Quixote a Península Ibérica seria uma casa sem telhado, Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era, Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu ao desgosto, Raul Brandão, porque não é necessário ser um génio para escrever um livro genial, o Húmus, Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal (já tínhamos Camões, mas ainda nos faltava um Pessoa), Kafka, porque demonstrou que o homem é um coleóptero, Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses, Jorge Luis Borges, porque inventou a literatura virtual, e, finalmente, Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.
 
Que tal? Permitam-me agora os leitores uma sugestão. Organizem também a sua lista, definam a “família de espírito” literária a que mais se sentem ligados. Será uma boa ocupação para uma tarde na praia ou no campo. Ou em casa, se o dinheiro não deu para férias este ano. 
 
José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago
Imagem: Gilberto Perin - Livros Sagrados - Fotografia (Kairouan - Tunísia), 2009
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publicado por ardotempo às 15:18 | Comentar | Adicionar

Transcendência

Resmungo teológico
 
Ferreira Gullar
 
Embora defira do biólogo Richard Dawkins que, nesta semana, na Flip, alardeou seu ateísmo, eu, em meio aos meus costumeiros resmungos, pus em dúvida aqui a existência da alma, chegando mesmo a lembrar que, em certa época remota, os gregos a designavam pela palavra "pneuma", que significa ar, sopro, ou seja, a respiração de quem está vivo. Nada mais que isso. Fiz essa afirmação, meses atrás, a propósito da excomunhão dos médicos que praticaram aborto numa menina, estuprada pelo padrasto. Como, para a Igreja Católica, a alma já está no momento da fecundação, praticar o aborto é matar um ser humano, dono de uma alma divina.
 
Afirmei, por isso, que, para ela, o que importa não é a vida e, sim, a alma, razão por que, durante a Inquisição, condenou à morte, na fogueira, milhares de pessoas, para salvar-lhes a alma.
 
Tem lógica mas, relendo o meu próprio artigo, perguntei-me: o que se ganha em negar a existência da alma? Pergunta essa que, feita por mim, pode surpreender o leitor.
 
É que me lembrei de que não foi a Igreja Católica quem inventou a alma. Os gregos, muito antes de Sócrates e talvez mesmo de Pitágoras, já a tinham inventado, sem falar nos egípcios, que acreditavam numa vida post mortem, mas com o corpo também e, por isso, faziam-se embalsamar. Os cultos órficos da Grécia pré-helênica fundavam-se na crença da transmigração das almas que, no além, poderiam ser premiadas ou punidas pelo que fizeram aqui em baixo. Inscrições descobertas em sepulturas daquela época contêm ensinamentos de como a alma do morto deveria se comportar para merecer a salvação.
 
Num desses textos, lê-se o seguinte: "Tu acharás, à esquerda da casa de Hades, uma fonte e, a seu lado, um cipreste branco. Dessa fonte, não te aproximarás, mas te depararás com uma outra, perto do lago da Memória. Diz: "eu sou filho da terra e do céu estrelado'". É que para eles, o corpo vinha da terra e a alma, do céu.
 
 
Essa visão do homem como ente, ao mesmo tempo, terrestre e celeste, irá ganhar consistência teórica na filosofia de Sócrates e, sobretudo, na de Platão. Pode-se supor que a admirável bravura e despreendimento daquele em face da morte, deve-se, de fato, à sua convicção de que, depois dela, havia outra vida e melhor.
 
Se Platão herda de Sócrates essa convicção, em sua teoria a existência da alma está essencialmente ligada à possibilidade do verdadeiro conhecimento. Para ele, o corpo era um fator que impedia de se conhecer a verdade, não facultada aos sentidos. Pelo contrário, na sua concepção, os sentidos nos iludem, induzindo-nos a uma visão imperfeita da realidade. Donde a conclusão de que, só depois que nos livramos do corpo, podemos apreender a verdadeira realidade da existência, a que apenas a nossa alma teria acesso.
 
Essa concepção platônica da alma influiu na visão do cristianismo e, consequentemente, na teologia da Igreja Católica.
 
Mas, até onde me é dado perceber, elas não são idênticas em todos os pontos, especialmente em um: enquanto na teoria platônica o que há de reprovável no corpo é sua incapacidade de apreender o verdadeiro conhecimento, na teologia católica, essa incapacidade se converte em pecado, isto é, o corpo, sujeito a desejos condenáveis, contamina a alma de pecados, que podem levá-la à perdição eterna. Nisto, a concepção católica parece mais próxima do orfismo que do platonismo, mais filosófico do que teológico.
 
Mas meu propósito aqui não é discutir essas questões e, sim, afirmar que, na dúvida de que a alma exista ou não, melhor será acreditar em sua existência do que negá-la, já que não há como provar uma coisa nem outra.
 
Negamos a alma porque somos herdeiros do progresso econômico e científico, que nos revelou a lógica material da natureza e da vida, e que é irretorquível. Não obstante, a própria ciência diz que não é capaz de responder a questões como esta: por que existe algo em vez de nada? Assim, o enigma da existência continua sem resposta.
 
Não fui eu mesmo quem disse que o homem inventou Deus para que este o criasse? Ele o inventou porque não quer ser igual a um simples animal, nascido da natureza, condenado a acabar para sempre. Se sou filho de Deus, tenho uma alma divina que me torna imortal. E é isso, essa capacidade de inventar-se, que nos distingue dos outros animais. Filho de Deus mesmo ou inventado por si mesmo, a verdade é que o homem necessita da transcendência e aspira à eternidade. Por isso, precisa da alma, uma vez que o corpo, após a morte, virá pó.
 
Pessoal, este papo está brabo demais! Vamos mudar de assunto?
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

Imagem: Gilberto Perin -  Fotografia  (Cefalu, Sicília - Itália), 2009

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publicado por ardotempo às 14:36 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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