Sábado, 20.06.09

Jean Genet, por Enrique Vila-Matas

El niño criminal
 
Enrique Vila-Matas
 
1 - Se nace así. De un padre que jamás verás. Y de una joven puta que te abandonará a los siete meses. Después, ni una sola fotografía a la que agarrarse. Ni un rostro de la madre. Sólo una investigación que acaba diciéndote que se llamaba Gabrielle Genet. Y nada más. Jean Genet creyó verla algunas veces a lo largo de su vida. En Diario de un ladrón evoca a una mendiga anciana, de rostro exangüe y redondo como la luna, que le pide dinero en Barcelona. Una ladrona, piensa, y de inmediato la asocia con la santa puta joven, la madre no vista. "¿Y si fuera ella? me dije mientras me alejaba de la pordiosera. Si lo fuese, iría a cubrirla de flores y de besos. Lloraría de ternura sobre sus ojos de pez luna, sobre su cara obtusa y boba", escribe Genet.
 
Se nace y se vive así. Y ya no es que el único misterio del universo sea que exista un misterio del universo, sino que no sabes ni tan siquiera de dónde puedes haber salido y qué haces aquí y si hay más mendigas y misterios. La muerte termina por ser una certeza más grande que su oscuro agujero. Y el mundo es grande, aunque no ha sido hecho para ti. Te adoptan unos señores, que te quieren mucho y son de un lugar adorable llamado Alligny-en-Morvan. 
 
Allí, cuando seas más mayor, serás del coro de la iglesia, ya verás. Eso te dicen, pero a los 10 años les robas, y te vas. Serás chapero, presidiario, mendigo y gran escritor. Y viajarás. Por toda clase de reformatorios, siempre pensando en la madre de la cara obtusa y boba, y tan buena. La madre que, de encontrarla, cubrirías de flores. Esa madre que a veces es una sombra, un fantasma que fornica al fondo de un tugurio del Paralelo de Barcelona.
 
2 - El niño criminal (publicado por Errata Naturae, otra nueva editorial independiente con un catálogo más que atractivo) presenta dos textos breves de Genet, uno de 1948, el que da título al volumen, y otro de 1954, Fragmentos, unas prosas que iban destinadas a un proyecto de libro tan extraordinariamente ambicioso que terminó siendo imposible llevarlo a cabo, como aquel libro que idealizara Mallarmé.
 
Una reciente iniciativa acaba de incluir en la lista de "los libros menos vendidos" del momento El niño criminal, lo que le ha permitido a este volumen de Genet pasar con gran orgullo a ser uno de los worstsellers de la temporada y obtener así, frente a los halcones que promocionan Falcones, su inesperado primer gran no-éxito entre nosotros. A Genet le gustaría mucho este fracaso español.
 
El niño criminal nos da pistas sobre la entrada y salida de la profunda crisis que padeció el escritor entre 1947 y 1954 -"me habéis convertido en una estatua", les espetó a Sartre y Cocteau-, la gran crisis que le alcanzó cuando se sintió irremediablemente extraviado, dislocado, asimilado por la cultura que le había sacado de la cárcel y había tratado de domesticarlo. Los dos textos seleccionados por Irene Antón - virtuosa especialista en Genet - señalan los límites de esa crisis. En ellos vemos a este santo autor entregarse, de manera más explícita y depurada que nunca - es decir, sin distraerse con la trama argumental de una novela y sin la necesidad de crear personajes ficticios -, a la comprensión de los dos temas que mayor peso tuvieron siempre en su obra: el crimen y la homosexualidad.
 
El niño criminal, primero de los dos textos, nos muestra el mundo de las colonias penitenciarias para menores. Genet, niño abandonado, ladrón, desertor del ejército, vagabundo y homosexual que ejerció la prostitución, se presenta ante el lector para exigirle la dureza de castigo que merecen todos sus crímenes; los suyos propios, pero sobre todo los de sus admirados niños criminales.
 
En los Fragmentos de 1954 se lamenta de que los intelectuales le hayan convertido en otro, en la llamada bomba Genet. "Ese otro tiene que encontrar algo que decir", comenta. Y comienza a ser el escritor que buscará - y al buscar saldrá de la crisis- los auténticos caminos para él. Caminos que le llevarán en la vida cotidiana, pero también en su escritura, a ser alguien en constante primera línea de fuego. Cuando la masacre - hoy todavía impune - de los campos de refugiados de Chabra y Chatila, Genet será uno de los primeros occidentales que entren allí y se enfrenten con el pavoroso espectáculo del crimen masivo, sobre el que escribiría más tarde un texto imprescindible, Cuatro horas en Chatila.
 
Genet, santo y mártir, hoy extraño worstseller de nuestras listas de menos vendidos. Como decía aquel personaje de José María Pemán, "España y Genet somos así, señora".
 
 
Retrato de Jean Genet - Pintura em óleo sobre tela, de Alberto Giacometti
publicado por ardotempo às 14:33 | Comentar | Adicionar

50 louras

Um lorde no noticiário policial

 

Ivan Lessa
 
 
A vida vai ficando cada vez mais difícil em Londres. É o que me dizem alguns habitantes desta cidade algo desiludidos. Preparam-se para dar o famoso salto duplo mortal britânico: ir morar no estrangeiro.
 
O estrangeiro é muito mais estrangeiro - e estranho - para um cidadão britânico do que para o resto do mundo. Coisa de ilhéu, li em algum lugar. Ilhéu é uma raça diferente. Cheia de nove horas. E noves fora, nada.
 
Penso em Ilhéus, na Bahia. Não fiquei lá mais que três dias. Para onde eu olhava, lá estava um ilhéu. Simpático, fraternal, hospitaleiro. Todos dispostos a cantarolar, debaixo dos coqueiros, velhos sambas de Dorival Caymmi e as mais recentes de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Eram ilhéus e nada tinham de diferente, no sentido de nove horas, ou qualquer empombação.
 
Já os ingleses, além de sofrerem de uma grande ausência de palmeiras, coqueiros, compositores e cantores populares (peguem, se tem coragem, o Elvis Costello. Pode ser pior, mais chato? Destituído de talento?), ganharam merecidamente a fama de ilhéus e, por isso mesmo, sempre à beira de uma bizarria. Principalmente nesta época do ano, o verão, que, em inglês, convencionou chamarem, justamente, de silly season, ou seja, estação de bobeiras.
 
A polícia, por exemplo. Qualquer parágrafo começando com essas quatro palavras, em qualquer idioma, é para se tomar o maior cuidado possível. Nesta época e nestas ilhas, nestes dias, nada mais verdadeiro. Volta e meia está a polícia no noticiário. Policial, evidente. Pelas razões mais erradas possíveis.
 
Ainda agora, na semana que passou, Lorde Carlile, watchdog (é, isso mesmo, cão de guarda) das leis dedicadas ao terrorismo, acusou a polícia de estar parando na rua, para uma revista geral, gente branca, só para manter um equilíbrio nas estatísticas.
 
Nosso bom Lorde Au-Au (que me perdoe a falta de respeito, mas eu não sou ilhéu) aprofundou sua ponderação adiantando que pessoas sem o menor motivo para serem revistadas passaram a ser mera estatística para demonstrar que, entre os supostos defensores da lei, não há qualquer preconceito. Pessoas, disse ele, em alto e razoável som, brancas. Brancos, por assim dizer - e por que não assim dizer?
 
Os brancos, pois, estão sendo discriminados. Viraram fiel na balança de malfeitores ou suspeitos de terrorismo. Lorde Carlile, e me penitencio com desculpas abjetas pelo Au-Au anterior, foi direto ao cerne da questão: segundo ele, trata-se de uma tática sem qualquer mérito, além de constituir desperdício de tempo e dinheiro.
 
Também praticamente garantiu ser um caso nítido de violação dos direitos humanos. Para a imprensa, Lorde Carlile assegurou haver um bom número de casos autenticando suas afirmações.
 
Lorde Carlile, entrevistado pela BBC, deu um exemplo concreto e bem ilhéu, no sentido de sua suave bizarria, do que estava havendo no país.
 
Disse ele: "Se, por exemplo, a polícia parar para interrogar e revistar 50 louras, que, evidentemente, em nada correspondem ao perfil de terroristas, temos aí um caso nítido de violação indevida das liberdades civis dessas 50 louras". 
 
 
50 louras. Não foi em Ilhéus, na Bahia, a última vez em que vi 50 louras. Nem todas juntas, nem cada uma de per si. A bem da verdade, acho que nunca vi, juntas e me olhando feio, 50 louras.
 
Houve uma vez, em Ipanema, anos 60, no velho Jangadeiros, em que uma loura, numa mesa perto de mim, me olhou bem e... Mas isso não vem ao caso. O que eu quero saber é o porquê de "50 louras" e não "50 louros" ou "50 ruivas" ou "50 ruivos".
 
Mais: e o lordífero cão de guarda em questão não considerou a possibilidade de cabelos tingidos ou pintados? Ou mesmo perucas?
 
 
Ivan Lessa - Publicado no blog BBC Brasil
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publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

Relógios desenhados

Quando se é novo é para toda a vida
 
António Lobo Antunes
 
Não sei a idade dele. Tem o cabelo branco, o bigode branco, rugas em parênteses sucessivos dos lados da boca, um dos olhos morto, sepultado no caixão das pálpebras, as mãos tremem um bocadinho à procura das coisas e dá-me a impressão que as coisas o ajudam aproximando-se, misericordiosas
 
- Agora podes
 
da dificuldade dos dedos. Quando estão viradas para esse lado as coisas são simpáticas, quando não estão escapam-se da gente, rolam, escorregam, caem no soalho, partem-se: é preciso tratá-las com bons modos ou apanhá-las distraídas, de costas para a gente, saltar-lhes para cima
 
- Já cá cantas 
 
e as coisas, que remédio, aceitam. Então convém segurá-las pelo pescoço, de preferência com os dentes, e esmagar-lhes as vértebras num movimento rápido, como os leopardos fazem aos antílopes. Esmagar-lhes as vértebras talvez não seja boa ideia porque as coisas amolecem e deixam de servir. O melhor é seduzi-las devagarinho, sorrir-lhes, soprar piropos, adulá-las, pedir
 
- Anda cá copo, anda cá garfo
 
e pegar-lhes numa firmeza doce, a murmurar ternuras. Ao poisá-las, logo que vier a pergunta aflita
 
- Deixas-me assim?
 
responder
 
- Eu já volto
 
ou
 
- Depois telefono
 
e se as coisas estranharem
 
- Nem sequer tens o meu telemóvel
 
fingir que se toma nota no nosso, visto que vamos precisar delas de novo e convém manter uma relação de pré-namoro implícita. Quantas jarras não se quebram por falta de ternura, quantas tesouras desaparecem das gavetas, desiludidas connosco, quantas lâmpadas não se fundem na sequência de falta de carinho? E quando as casas deixam de gostar de nós e nos começam a enxotar para a rua? Quando as camisas perdem um botão de punho de propósito, sentindo-se abandonadas? E as nódoas que arranjam para se vingar da gente? A empregada lavou-as, engomou-as e elas
 
pumba
 
uma nódoa ressentida. Quem quiser ter paz não pode provocar as coisas, entristecê-las, tirar-lhes a esperança de um futuro em comum, senão a vida torna-se impossível: um pneu em baixo, a chave que a fechadura recusa, a caneta que perde a tinta a meio de uma frase, os iogurtes que levaram sumiço do frigorífico e ainda ontem lá estavam. Aproveitaram o outono para emigrar, como os patos bravos e as turistas suecas, e corre-se o risco de, ao entrar em casa, quase nem um móvel e um alicate, na poltrona, a magoar-nos a nádega. Apanhamos o alicate, exigimos explicações
 
- Como é que vieste aqui parar?
 
e explicação alguma, uma mudez feroz, ultrajada. Voltando ao início não sei a idade dele.
 
Tem o cabelo branco
(não se esqueçam das coisas)
o bigode branco
(tive de mudar de esferográfica, aí têm a prova do que disse)
rugas em parênteses sucessivos dos lados da boca, um dos olhos morto, sepultado no caixão das pálpebras, as mãos tremem um bocadinho, ao expirar o bigode horizontal, ao inspirar mete-se-lhe na boca, a perna esquerda, mais complicada que a direita, de joelho acima ou abaixo do outro, arrasta-se num ímpeto tracejado
 
(o professor do liceu para mim
 
- A tracejado, burro, não a cheio
 
diabético e cruel, cheirando a rosas podres, e eu com medo que a tinta da china do tira-linhas pingasse
- Vê lá se pingas isso tudo, palerma)
 
o fato conheceu melhores dias, o nó da gravata desaparece num dos lados do colarinho
(oxalá esta esferográfica aguente, não fui amável com ela)
e, no entanto, não sei quê nele com dezoito anos, o sorriso, um meneio, uma aura de inocência, um apetite de caramelos e comboios de lata que não sou capaz de definir e lhe flutua em torno. Espera comigo na loja do cidadão a fitar tudo num espanto de primeira vez, encantado, deve apaixonar-se por lagartixas, bolos de creme, anéis de feira, palhaços, ser uma desgraça no tracejado, como eu. Há muito tempo que não via tanta infância em ninguém.
 
 
Tira um relógio da algibeira
(um relógio de brinquedo, aposto, de ponteiros impressos no mostrador)
verifica as suas dez horas e dez horas perpétuas, volta a guardá-lo, satisfeito. Quantas vezes não desenhei relógios no pulso, com um pincel? Enquanto ele guarda o relógio aproveito para espreitar o meu e, a gouache encarnado, dez horas também, está certo. O único problema dos relógios desenhados é que se desbotam num instante, é preciso reforçar as dez horas dia sim dia não. Disse-lhe a exibir os meu ponteiros
 
- Nenhum de nós se atrasa
 
e ele, do fundo do bigode, a piscar-me o olhinho que sobra
 
- Sempre fomos pontuais não é?
 
isto afirmado não com a boca, com o único dente
(o que aconteceu às esferográficas que pifam umas atrás das outras?)
por sinal escuro, por sinal grande, se tivesse à mão uma lagartixa dava-lha, um comboio de lata, caramelos, encontram-se compinchas por todo o lado, quando o seu relógio de brinquedo e o meu relógio feito a pincel marcarem dez e meia
(dez e meia não, as aulas acabam ao meio-dia e meia)
fazemos uma corrida a ver quem chega mais depressa ao coreto do largo, perto do homem que vende castanhas no inverno e gelados no verão, podemos fumar um cigarro às escondidas, podemos tentar apanhar um pombo
(nunca consegui apanhar nenhum)
podemos comparar a profissão dos nossos pais e perceber qual é o mais importante, podemos fazer braço de ferro
(como sou canhoto com a esquerda ganho sempre)
podemos esquecer-nos um do outro que não faz mal porque arranjámos um amigo, vou-me à caixa do algodão da minha mãe, tiro um bocado, enrolo-o, aplico-o contra o intervalo entre o nariz e a boca e fico com um bigode muito maior que o dele.
 
© António Lobo Antunes

 Fotografia de Eric Tenin

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publicado por ardotempo às 14:07 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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