Vagabundos

Vagabundos
 
José Mário Silva
 
[Luar sobre os arrozais. Deitados numa pequena elevação, dois homens olham as constelações muito nítidas que se desenham no céu.]
 
- Quando ficas assim, parado, a olhar para cima, o que vês?
- O mesmo que tu.
- As estrelas?
- Não. 
- O espaço negro entre elas?
- Também não.
- Então o quê?
- A memória da nossa fome.
 
[Um dos homens está agora sentado, com um pano aberto sobre os joelhos, a cortar fatias muito finas de pão seco e tiras ainda mais finas de toucinho. O outro olha fixamente para o movimento da faca, enquanto aconchega o seu casaco em farrapos.]
 
- Queres um bocado?
- Sim.
- O que é que me dás em troca?
- Deixa-me pensar. [Vasculha os bolsos vazios.] 
- Sabes que tens que me dar qualquer coisa em troca.
- Sim, já calculava. Olha, posso dar-te uma história.
- Que história?
- A minha. Uma bela história. A minha história.
- É alegre?
- Não. Nada. Pelo contrário. É até muito triste.
- Então está bem. Podes começar. [Estende-lhe um naco de pão seco; o outro espreita o pouco que lhe coube, sem esconder o desalento.] Querias mais? Pois não protestes. Só levas o toucinho quando chegares ao fim.
 
[Passaram quarenta minutos. Os dois acabam de comer. Parecem saciados.]
 
- Muito boa, a tua história.
- Muito bom, o teu toucinho.
- Há muito tempo que não ouvia uma história tão trágica.
- Há muito tempo que não comia um toucinho tão bom.
- Mas como posso ter a certeza de que a história é mesmo verdadeira?
- Não podes, nem isso interessa. Eu também não sei se foste tu que mataste o porco.
 
[Um dos homens levanta-se, aproxima-se do canavial, colhe um lírio. O outro encolhe-se, com frio.]
 
- O que tens na mão? Um lírio?
- Não.
- Uma estrela?
- Não.
- O amor que perdeste há tantos anos?
- Não.
- A primeira palavra do teu último poema?
- Não.
- Um reflexo da manhã que se aproxima?
- Não.
- A própria ideia de brancura?
- Isso, amigo. A própria ideia de brancura.
 
[Os dois homens voltam a deitar-se na pequena elevação, bebendo saké de uma garrafa opaca. Olham as constelações lá no alto, agora difusas. Luar sobre os arrozais.]
 
 
José Mário Silva - Efeito Borboleta
Pintura de Vincent Van Gogh
publicado por ardotempo às 03:56 | Comentar | Adicionar