No, no puede ser!
Tradutor de Mario Benedetti, o escritor Aldyr Garcia Schlee se despede emocionado do seu velho e querido amigo uruguaio
Morreu domingo, enquanto dormia, um dos últimos viúvos de Margaret Sullavan. A notícia de sua morte esperada, ainda assim, despedaça-nos, rasga-nos por dentro como a própria morte de Margareth Sullavan terá feito com ele.
Era um pequenino homem de bigode branco, ronronando sua asma brônquica entre um pigarro e outro, sempre discreto, austero e calado em seu canto, com os olhinhos úmidos e muito sugestivamente brilhantes. Quando eu nasci, ele tinha já 14 anos e estava deixando os estudos para trabalhar; só fui conhecê-lo pessoalmente quando principiava a ser admirado, reconhecido e venerado em seu país, onde fora vítima da intolerância, da injustiça, da censura e da perseguição política impostas pela ditadura militar que infelicitara o Uruguai a partir de 1973.
Mario Benedetti contava que em janeiro de 1960, estando com a esposa em Nova York e pretendendo ver num teatro do Village a peça Nossa Cidade, de Thornton Wilder, soube do porteiro que os ingressos estavam esgotados. “A esta hora o senhor pretende ingressos? Em que mundo vive?”, ¬ perguntou-lhe o porteiro. Mario, com seu bigode e sua modéstia, sentiu-se como o provinciano que era realmente, incapaz de enfrentar então ao menos uma escada rolante... Foi quando tilintou o telefone, ali no saguão do teatro. O porteiro atendeu em silêncio, logo se transfigurou; e disse quase soluçando: não! não pode ser, não pode ser!
Mario Benedetti, solidário sempre e em todas as circunstâncias, aproximou-se, tocou-lhe brevemente o braço, perguntou-lhe o que acontecia, se havia recebido alguma má notícia, se podia ajudar... Então o rapaz se voltou para ele e disse como se despertasse de um pesadelo:
- Morreu Margaret Sullavan!
- No, no puede ser - disse Benedetti para si mesmo e para ninguém mais, com o assombro e a tristeza de quem tomava consciência de que naquele instante desaparecia o último vestígio de sua já distante adolescência. E ele percebia que pela primeira vez em sua vida havia perdido um ente querido.
Ao justificar sua paixão por Margaret Sullavan, Benedetti reconhecia com a simplicidade de quem está trilhando o óbvio, que uma atriz de cinema não é exatamente uma mulher, é antes uma imagem. Como muitos de nós, reconhecia ele que havia se apaixonado pela imagem de Margaret Sullavan na adolescência, quando uma paixão dessas se torna definitiva. Fora a imagem daquela atriz que pela primeira vez habitara a sua e a nossa insônia e nos cortara a respiração, significando nosso primeiro ensaio de emoção, nosso primeiro arremedo de amor.
Quando procurei Mario Benedetti pela primeira vez, e precisava encontrá-lo para que me permitisse traduzir seu conto Sábado de Glória, ele estava na Espanha. Depois, quando finalmente nos encontramos, fiquei tão perturbado diante daquele homenzinho e de sua descomunal estatura moral, cívica e literária, que esqueci o nome do conto, o título do livro correspondente, tudo, e só me lembrei de Margaret Sullavan - a inesquecível atriz de cinema que me encantara, que encantara o escritor e que encantava ainda e também o infeliz narrador da tragédia familiar contada por Benedetti - que minha mulher lera chorando e que eu, chorando, traduzira para o português.
Em torno de Margareth Sullavan estivemos uma vez sentados numa mesa de La Popponita, onde se falava de cinema e quando não me animei a confessar-lhe que 20 anos antes costumava ler e tentara colecionar suas crônicas publicadas em La Mañana. Benedetti não dizia nada, não precisava dizer nada, admitindo e aprovando divertidamente com seu sorriso ladeado nosso entusiasmo com o cinema e nossas lembranças de filmes, atores e atrizes. A partir de Margareth Sullavan, nós nos perguntávamos sobre Gene Tierney, Ava Gardner e Rita Hayworth, sobre os melhores anos de nossas vidas, sobre tempos modernos, sobre a bela e a besta... De repente, eu me dei conta de que - posta a câmara em Mario Benedetti, como numa tomada cinematográfica - tudo o mais era acessório, era dispersão. E me calei. Não havia mais o que dizer.
Benedetti havia dosado com a emoção e o amor despertados pela imagem de Margaret Sullavan todo o conteúdo poético de sua prosa ficcional, feita da retomada e da recuperação dos grandes dramas e das pequenas tragédias do cotidiano urbano uruguaio. Embora fosse, por isso mesmo, um poeta, seus versos duros, reiterativos e panfletários, pouco deixavam transparecer a poesia, submetidos geralmente à clara proposição política e ideológica que os fazia inseparáveis das lutas sociais em que ele esteve envolvido.
Uma vez estivemos juntos numa mesa de debates, na Biblioteca Nacional; outra, na Intendência Municipal de Montevidéu. Em ambas as ocasiões, senti-me oprimido e deprimido, vendo que Mario Benedetti não estava à vontade: ele como que já não tinha o que dizer, já estava cansado; estava cansado de repetir o que esperavam que dissesse, já estava cansado de ouvir o que sempre diziam dele.
Fora um combatente das letras. Fora o primeiro e era o último sobrevivente da geração crítica de 1945 - que tivera a coragem de denunciar o pedantismo, a frivolidade, a hipocrisia e o conformismo dos cultores da “belas letras” no Uruguai desde o propalado reconhecimento do país como “a Suíça americana”. Ele voltara para Montevidéu os olhos do leitor uruguaio - habituado até então à nostalgia campeira de uma literatura “criolla” - e reconstruíra a partir da capital a sua urbanidade, ajudando a recompor e reafirmar a identidade uruguaia como a de um país montevideano.
Fora mais do que um combatente das letras. Fora um militante da justiça social e da dignidade humana, um defensor da vida e da alegria. Enfrentara a ditadura como um dos fundadores do Movimento 26 de Março, braço legal do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros. Precisara exilar-se na Argentina para não sucumbir à fúria militar em seu próprio país; precisara fugir para o Peru a fim de escapar com vida da AAA, a Ação Anticomunista Argentina...
Fora o intérprete dos anseios, das contradições e das perplexidades dos escritores latino-americanos; fora galardoado com prêmios, títulos, insígnias internacionais, antes que lhe reconhecessem os méritos no próprio Uruguai - onde só em 2005 lhe deram o título de Doutor Honoris Causa da Universidade da República.
Certamente estava cansado de tudo isso.
Sempre fora um homem pequeno e modesto, com seu eterno bigode (e até cultivara um certo topete na testa cada vez mais ampla e alta). Sempre vivera dos sonhos e das emoções que alimentaram sua escritura da mesma forma como a confiança e a esperança que tinha em um mundo melhor, mais justo e mais feliz.
Era casado com uma extraordinária mulher chamada Luz Alegre, cujo nome bastava para justificar o quanto dela ele dependia como companheira e orientadora. E tinha ele mesmo um paradoxal e estranho nome quilométrico, só comparável à variedade e à quantidade de sua imorredoura obra literária: Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti Forugia.
A morte é definitivamente o fim. Mas, como se fora o começo de tudo, Mario Benedetti terminou velado na Sala dos Passos Perdidos do Palácio Legislativo Uruguaio; e enterrado no Panteão Nacional do Cemitério Central de Montevidéu.
Agora, o que adianta?
Fica o eco de nosso desconsolo e de nossa incredulidade ante a notícia de sua morte.
¡No, no puede ser!
© Aldyr Garcia Schlee - Escritor e tradutor