Sobre O Mago, Fernando Morais revela os segredos
Fernando Morais passou quatro anos a mergulhar no passado de Paulo Coelho, a segui-lo como uma sombra, a ir no seu encalço, a falar com os amigos e inimigos e a escrever a biografia do famoso escritor brasileiro. Quando o primeiro exemplar impresso de “O Mago” foi parar às suas mãos, tal como havia prometido, o jornalista brasileiro enviou-o em correio urgente para Paulo Coelho. Tinham pré-acordado que o autor de “O Alquimista” não teria acesso ao manuscrito da sua biografia.
Deixou passar cinco dias, uma semana, duas semanas e nada. Silêncio tumular. Começou então a telefonar para o escritor e a chamada caía no atendedor de chamadas. Com o telemóvel acontecia a mesma coisa. Aos “emails” não obtinha resposta. Passou um mês, mês e meio. Fernando Morais começou a ficar preocupado. Meteu-se num avião, foi a Paris e bateu à porta de Paulo Coelho. Ele atendeu.
“– Senhor, que passa? Que está acontecendo?”, disse Fernando Morais quando Paulo Coelho lhe abriu a porta. “ – Entra para cá, rapaz”, respondeu o escritor.
Ficaram os dois em pé. “Ele não me mandou sentar”, conta Fernando Morais, num restaurante de Lisboa onde esteve a semana passada a promover o seu livro. Paulo Coelho explicou ao biógrafo o seu silêncio – que era ainda mais estranho porque na última fase da escrita da biografia falavam várias vezes por dia – dizendo que teve que ler “O Mago” duas vezes. Teve uma enorme dificuldade em se identificar com aquele personagem e descobriu que o seu passado lhe dava “um medo muito grande”. Contou ainda que “O Mago” o tinha obrigado a fazer psicanálise, uma coisa que ao longo de 60 anos sempre tinha recusado. Sentiu-se como se tivesse colocado um dedo na garganta e deitado para fora, tudo o que tinha de feio do lado de dentro.
E fez uma queixa. Paulo Coelho disse a Fernando Morais que o facto de ele ser ateu, de ser materialista, o impediu de ver o lado espiritual dele. “Não concordo com essa crítica”, afirma agora Fernando Morais que tem uma explicação para essa crítica. “De cada vez que o Paulo [Coelho] contava, no meio de um depoimento, que um dia estava no seu carro em França e se apercebeu que tinha um anjo ao seu lado eu perguntava-lhe: ‘Anjo como? De carne e osso? Anjo homem ou anjo mulher? Falava? Francês, português, espanhol?’ Ele se irritava com aquilo. Dizia-me que eu não tinha capacidade de absorver a transcendência. Toda a vez que ele falava de experiências paranormais, eu insistia. Não estou me defendendo mas acho que para o leitor do livro foi melhor ter um biógrafo ateu do que um biógrafo crente. Muitas das perguntas que fiz para ele, muitos dos apertos que eu dei nele são curiosidades que o leitor tem.”
Mas entre os dois – biografado e biógrafo – “não ficou nenhuma sequela” e Paulo Coelho “cresceu como ser humano” aos olhos de Fernando Morais quando deixou que tudo isso, o que é revelado em “O Mago”, fosse publicado.
Quando Fernando Morais se mudou da editora Companhia das Letras para a Planeta, esta editora só lhe pediu que se escrevesse uma biografia não fosse sobre uma personagem estritamente brasileira. Como sempre tinha tido uma grande curiosidade sobre Paulo Coelho – que não conhecia nem nunca tinha visto –, lembrou-se dele depois de Hugo Chavez ter recusado. Só tinha lido os seus dois primeiros livros – “Diário de um Mago” e “O Alquimista” –, e não se tinha convertido num “coelhista”. Numa entrevista de Umberto Eco descobriu que Paulo Coelho escreve para quem tem fé, para quem acredita. “Não é o meu caso, sou agnóstico, sou ateu, não sou baptizado”, explica.
Tinha muita curiosidade “não sobre o fenómeno Paulo Coelho, o ‘popstar’ das letras, a Madonna, o Mick Jagger da literatura mas tinha curiosidade sobre o ser humano”. Queria saber “quem é o cara que vive debaixo da pele do fenómeno Paulo Coelho”. Mas disse à editora Planeta que achava que ele não ia aceitar sobretudo porque teria que ser obrigatoriamente uma biografia não autorizada: ele não leria os originais.
Paulo Coelho respondeu por “email” quando lhe fizeram o pedido: “Já recusei mais de 30 propostas idênticas feitas por autores norte-americanos e europeus mas sendo o Fernando Morais a minha resposta é sim”. O jornalista marcou então um encontro com o escritor no aeroporto de Lyon porque ele vive numa localidade no sul da França. Foi a sua primeira surpresa. “Imaginava que ele fosse chegar numa limusina, com batedores, com guarda-costas, com puxa saco, com secretária, com o cara que vai fazer o ‘check in’ para ele, o cara que atende o celular…” Morais que raramente usa gravata até foi de gravata e de repente, viu parar um táxi e de lá de dentro descer “um cara” que parecia “um padre de interior, um cura de província”. Estava de “jeans”, “camiseta”, bota de lona e puxava uma “malinha vagabunda”. “Era um tipo como qualquer outro.”
Nesse encontro Fernando Morais disse-lhe que havia uma condição: ele não teria acesso ao manuscrito. Para sua surpresa, Paulo Coelho respondeu que não havia problema. Morais começou a ficar preocupado, a achar que não devia ser uma boa história. “Se ele está me dando com tanto desprendimento isso deve ser uma história água com açúcar.” Achou que tinha entrado “numa roubada” mas foi descobrindo que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, ou do que se pode julgar pela leitura das suas obras, a vida de Paulo Coelho é uma sucessão de tragédias. “Desde o começo, desde a infância mais remota, a vida do Paulo é uma sucessão de tragédias familiares, religiosas, sexuais. Ele é internado em hospício, abandona o cristianismo fundamentalista dos jesuítas onde tinha sido educado e na pré-adolescência dá uma guinada de 180º e mete-se com Satanismo, sacrifício de animais domésticos, Anjo da Morte.”
Paulo Coelho é uma “sucessão de surpresas”. Jornalista há mais de 50 anos, Morais nunca tinha visto nada parecido com o que acontece com o escritor brasileiro. “Ele não é só um fenómeno literário. Quando está junto do público as pessoas não se satisfazem só de receber um autógrafo. Querem tocar nele e muitas vezes quando começa a falar, as pessoas choram.”
Depois de acompanhar o escritor pelo mundo, foi para um hotel perto da casa dele em França onde esteve hospedado. Acordava uma hora mais cedo do que o seu biografado, ia para casa dele e só o abandonava quando se ia deitar. “Fui a sombra dele. Não só gravando mas vendo como ele se comportava com a mulher, com o barbeiro, com o vizinho, com o padeiro. Queria fotografar o miolo dele.”
Regressou então ao Brasil para ouvir as pessoas referidas nesse longo depoimento. Quase todas estavam vivas, menos a mãe que já morreu, bem como Raul Seixas (para quem Coelho fazia letras das canções). Ficou oito meses no Rio e entrevistou 100 pessoas. Regressou a França para reconfirmar informações que Paulo não lhe tinha contado. Ao voltar ao Brasil começou a escrever. Já tinha 200 páginas escritas quando “bateu o olho” no testamento que o escritor renova anualmente. “Ali tinha uma coisa mais importante do que o dinheiro. Numa linha perdida lá no meio dizia: ‘Na minha casa no Rio de Janeiro, no fundo de uma dispensa de guardar bagulhos velhos, tem um baú fechado com dois cadeados. As chaves estão no banco x de Copacabana e esse baú deve ser incinerado com todo o conteúdo, sem ter sido aberto imediatamente depois da minha morte.’”
Quando Fernando Morais lê isto e telefona imediatamente a Paulo Coelho a pedir as chaves do baú. O escritor diz-lhe que lá não há nada que lhe interesse (“são só desenhos, coisas da primeira infância”) Morais responde-lhe que não é “bobo” – se fosse algo tão pouco importante ele não ia mandar queimar. Nada feito. Mas um dia Paulo acorda Fernando com um telefonema de madrugada e desafia-o: “Se você descobrir quem foi o militar que me torturou em Agosto de 1969 no interior do Paraná na cidade de Ponta Grossa eu te dou as chaves. Não o quero processar, só tenho muita curiosidade, quero saber quem é esse cara e onde está.” O escritor só se lembrava que o homem era major na época porque tinha patente no ombro e que uma parte de um dos seus dentes da frente era de ouro.
O jornalista começou a sua investigação, foi ver quantos majores estavam naquela época naquele sítio, quantos tinham morrido, foi reduzindo a lista e ficaram três ou quatro hipóteses. Foi então consultar o livro “Tortura Nunca Mais” – uma relação com todos os torturadores da ditadura identificados pelo nome. “Cruzei os meus dados e Bingo! Estava lá. Estava vivo, retirado, um senhor já velhinho, que não vive mais na mesma cidade. Fui até lá e na hora em que comecei a falar, ele me botou para fora de casa. Começou a gritar que era ‘um absurdo’, ‘só me faltava essa de ser difamado pelo mundo fora como o torturador de Paulo Coelho! Eu nem sabia de Paulo Coelho, nem me lembro dessa época, eu nunca torturei ninguém’. E eu fiz uma foto dele com o celular porque precisava que o Paulo visse para me poder dar as chaves. Foi a única entrevista que o Paulo leu e a única foto que ele viu antes de ver o livro pronto. Falei é esse o cara? Ele disse: ‘É’. Então eu quero as chaves.”
Quando foi à casa de Paulo Coelho em Copacabana Fernando Morais pensava que ia encontrar um baú daqueles em que as avós guardam botões e agulhas. Afinal era um baú dos que se levam nas grandes viagens de barco. Uma arca coberta de poeira, com uma televisão a preto e branco em cima e lá dentro tinha “ouro puro”. Eram 170 cadernos e uma data de cassetes áudio onde Paulo Coelho registou os seus diários dos 10 aos 50 anos. Fernando Morais começou a ler e “arrepiou os cabelos”. Percebeu que tinha que começar o livro de novo.
Digitalizou todos aqueles documentos, contratou um especialista japonês para criar um banco de dados e um programa de pesquisa. “Joguei fora as páginas escritas e recomecei o livro do quilómetro zero. Isto atrasou o livro um ano.” Obrigou-o a uma nova viagem à Europa para falar com Paulo Coelho “por causa das centenas de episódios e de pessoas a que ele nunca tinha feito referência ou por omissão de memória ou por autodefesa. Nunca o soube e pouco importa.”
Todas aquelas revelações íntimas do diário de Paulo Coelho acabaram por trazer a Fernando Morais um problema que não tinha tido nos seus livros anteriores: um conflito ético. “Cada vez que eu descobria uma coisa feia para os nossos valores, uma coisa que depõe contra ele, eu pensava: Será que tenho o direito de tornar pública uma informação como essa sobre alguém que está sendo tão generoso comigo, que está abrindo a sua casa, o seu coração, a sua alma? E isso me perturbava muito. A minha mulher percebeu e me disse: ‘Você está ameaçando submeter o seu leitor a uma censura que o Paulo não te pediu. Ele não impôs nada.’”
Se Fernando Morais tivesse um baú como o de Paulo Coelho, não o daria para ninguém. E se o leitor, fechar os olhos e pensar um minuto se entregaria o seu baú, qual seria a sua resposta? Certamente, não daria. Paulo Coelho deu e depois da leitura desta biografia ninguém olhará para o escritor com os olhos de antigamente.
Publicado por Isabel Coutinho, no blog Ciberescritas - reproduzido de Ípsilon (Lisboa - Portugal)