Domingo, 26.04.09

Arte fina

Fotografia

 

 

 

Mauro Holanda - Fotografia - Tomates (São Paulo SP Brasil)

publicado por ardotempo às 23:23 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

A dor não-imaginária e permanente

A sociedade sem traumas
 
Ferreira Gullar
 
Minha crônica "Uma lei errada", publicada anteriormente aqui (no UOL / Folha de S. Paulo), deu oportunidade a que muitos leitores, ora concordando, ora discordando, manifestassem sua opinião sobre o tema da internação psiquiátrica. Quem leu essas cartas percebeu certamente que a maioria dos que comigo concordam são pessoas que têm experimentado na carne as consequências de uma lei que, embora bem intencionada, em vez de ajudá-las, agrava-lhes o sofrimento.
 
Dentre as cartas dos leitores, algumas assinalaram a qualidade do atendimento médico nos serviços comunitários de saúde mental, fato que registro com prazer. Minha crítica à lei 10.216/2001, que estabeleceu a nova política psiquiátrica, limitou-se a seu objetivo fundamental, que resulta em condenar e inviabilizar a internação dos pacientes.
 
Tampouco acredito que a internação por si só resolva os problemas, mas é inegável que, em casos de surto psicótico agudo, essa providência é imprescindível. Ninguém, em sã consciência, acredita que, nesse estado, o paciente possa ser atendido no hospital-dia. Não é difícil prever o que ocorre, em tais circunstâncias, quando a família do paciente não consegue interná-lo. Manter em casa uma pessoa em estado delirante é praticamente impossível. Por isso, as famílias que têm recursos recorrem às caríssimas clínicas particulares. E as que não têm?
 
Não obstante, a nova psiquiatria intitula-se "psiquiatria democrática". Por acaso, alguém ouviu falar em cardiologia democrática ou urologia democrática? Por que, então, essa adjetivação ideológica dada à psiquiatria? É que, com isso, se pretende afirmar que o procedimento médico que admite internação é antidemocrático e, para acentuar isso, os defensores dessa tese dizem integrar um tal "movimento antimanicomial", ou seja, contra o manicômio, que não existe há muitas décadas já. Mas é preciso satanizar o hospital psiquiátrico - que existe - para mais facilmente extingui-lo.
 
Cabe, no entanto, indagar por que esse horror à hospitalização do doente mental, quando isso sucede naturalmente com qualquer outro tipo de enfermo, se se faz necessário. A quem ocorreria chamar de antidemocrática a internação de um paciente que contraiu malária ou pneumonia? Se a doença, porém, for esquizofrenia, a coisa muda de figura: para a "psiquiatria democrática", interná-lo é atentar contra a sua liberdade. É que, na verdade, para os antimanicomiais, a esquizofrenia não é uma doença, como o é, por exemplo, a tuberculose ou a diabetes. Para eles, trata-se apenas de um "transtorno" psicológico, cujas causas estão fora do indivíduo: estão na família e na sociedade. Família e sociedade que, para ocultar sua culpa, o internam.
 
Tanto é assim que a referida lei estabelece o prazo de 72 horas para que a internação seja comunicada ao Ministério Público pela direção do hospital, bem como sua alta. É como se o paciente tivesse sido detido pela polícia. Alguém pensaria em adotar tais providências, ao internar uma pessoa num hospital por outra qualquer doença? Em outro artigo, essa mesma lei exige que "a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada, quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes". Sim, porque os familiares do doente mental, como afirmou o autor dessa lei, só pensam em se livrar dele.
 
Enfim, a tese é essa: o que se chama de doença mental não passa de "transtornos", que serão superados na medida em que ao paciente seja dado conviver com pessoas que o tratem como igual e respeitem sua individualidade. A lei não fala em doença mental. Superados os traumas do desajuste que lhe foi imposto pela família e pela sociedade, será reintegrado na vida normal. Mas em qual família e em qual sociedade? Aí está o problema, já que o tratamento teria que se estender à família e à sociedade. Como se vê, por teimarem em ignorar as verdadeiras causas da doença mental, os antimanicomiais defrontam-se com uma tarefa descomunal: criar a sociedade sem traumas!
 
Não tenho nada contra, mas sou obrigado a admitir que demorará muito e talvez nem seja possível. Enquanto isso, o que faremos com os doentes em estado delirante que, se internados, seriam tratados e protegidos? Hoje, as clínicas psiquiátricas particulares são lugares tranquilos, onde o paciente, ao mesmo tempo que se trata, dispõe de vários tipos de lazer e ocupação terapêutica. Certo seria que o Estado brasileiro oferecesse o mesmo aos doentes sem recursos e sem atendimento hospitalar.
 
 
Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
Obra de Arthur Bispo do Rosário - O Manto da Apresentação
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publicado por ardotempo às 21:22 | Comentar | Adicionar

O poder muda (mas não muda)?

Gordos e magros
 
Luis Fernando Verissimo
 
O filme Spartacus, sobre a revolta de escravos que ameaçou o império romano, foi dirigido por Stanley Kubrick, mas o projeto não era dele. Kubrick foi chamado quando as filmagens já tinham começado, sob direção do Anthony Mann, que desistiu. Assim, embora não o envergonhasse, Spartacus não era um filme kubrickiano. Cabem a Howard Fast, autor do livro em que se baseou o roteiro, e a "Sam Jackson", autor do roteiro, as palmas pelo maior mérito de Spartacus, que é o de ser um dos melhores filmes políticos de todos os tempos. "Sam Jackson" era o pseudônimo de Dalton Trumbo, uma das vítimas do macartismo que não podia trabalhar sob o seu próprio nome. Além de ser uma epopéia libertária, o Spartacus de Fast e Trumbo é também uma sutil reflexão sobre o poder na Roma antiga, e o poder desde então.
 
As duas forças em confronto no coração do império são representadas no filme pelo aristocrata Crassius, ou Lawrence Olivier, e o populista Gracchus, Charles Laughton, que só têm em comum o fato de serem membros do mesmo patriciado. É a gente como Gracchus e Crassius que o Julio César do Shakespeare se refere quando diz que prefere estar rodeado por homens gordos que dormem bem a magros que pensam demais. O Crassius de Lawrence Olivier é a personificação da auto-proclamada virtude cívica da sua casta, destinada desde o berço a impedir que sua Roma idealizada seja conspurcada pela ralé. Para Crassius, a maior ameaça da revolta dos escravos é o seu exemplo. Se a idéia de insubordinação for contagiosa, nada salva o poder da sua classe. Crassius também é a personificação dos magros dissimulados temidos pelo Julio César de Shakespeare. Já na barriga e na cara do Charles Laughton está toda a decadência de Roma, mas sua corrupção o humaniza e sua oposição a tudo que Crassius representa o enobrece. No fim, é a ajuda do devasso Gracchus que salva a mulher e o filho de Spartacus da morte. Gracchus se suicida, Crassius vence o confronto e sua classe mantém o poder. E Spartacus é crucificado, mas o exemplo não morre com ele.
 
 
Através da história os magros e os gordos têm se enfrentado com diferentes disfarces, Gracchus e Crassius com outras caras. Os "magros" nem sempre são magros e os "gordos" nem sempre são gordos, mas as oposições se repetem. Autoritarismo contra transigência, moralismo contra deixa-pra-láismo e a questão antiga como Roma: a corrupção pode ser um mal menor, comparada com as más intenções que a virtude muitas vezes esconde?
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 21:13 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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