Lo-li-ta:
a ponta da língua
faz uma viragem
de três espaços
pelo céu da boca abaixo e,
no terceiro,
bate nos dentes.
Lo. Li. Ta.
Vladimir Nabokov, Lolita
Nabokov trata, em Lolita (1955), um dos temas mais sensíveis do mundo moderno. A relação física, pedofilíaca, quase incestuosa, entre uma criança de 12 anos e o seu tutor. Qualquer outro autor, ao escrever um livro como Lolita estaria a arranjar lenha para violentamente queimar a sua carreira. Nabokov, pelo contrário, tem neste livro (estampado com o adjectivo obsceno em muitos países durante muito tempo) a sua maior obra.
Humbert Humbert, pseudónimo, escreve a sua história a partir da prisão. Suíço, emigrante nos Estados Unidos, especialista em Literatura Francesa. Talvez pela seu próprio desenvolvimento sexual prematuro, é fascinado por meninas pré-pubescentes. Não todas, “tinha o máximo respeito pelas crianças normais, com a sua pureza e a sua vulnerabilidade”.
O que Humbert desejava eram as ninfitas, raparigas que, na sua visão, eram de outro sexo “que seri[a] classificad[o] de feminin[o] por qualquer anatomista”. Numa das suas viagens pelo país, Humbert pára em Ramsdale, uma pequena cidade, onde se hospeda em casa de Charlotte Haze. Humbert preparava já uma desculpa para não ficar quando vê a filha de Charlotte, Dolores, sem dúvida uma ninfita – “Tenho muita dificuldade em exprimir com a força adequada aquele clarão, aquele arrepio, o impacte do reconhecimento apaixonado”. É o início da sua louca paixão com Lolita, como a chamava.
Infelizmente para o suíço, é a Haze errada que se apaixona por ele. Em carta, Charlotte confessa que o ama. Humbert vê uma oportunidade para se manter próximo de Lolita e continuar a sua fantasia, decide casar com Charlotte. A criança não estava em casa no casamento – tinha passado o verão num campo de férias – nem estava quando, algum tempo mais tarde, a mãe morre atropelada. O destino lançou-a nas mãos de Humbert que, ao ir buscá-la ao acampamento, vê a sua fantasia realizar-se. Começa assim a relação proibida entre uma criança e um adulto.
Humbert é um personagem definitivamente intrigante. Percebe-se, a certo ponto, o terrível conflito moral que impera em si. Convivem dentro dele, ao mesmo tempo, um monstro e um apaixonado. A relação que mantém com Lolita começa como um jogo perverso mas evolui para uma emoção verdadeira: “Amava-te. Era um monstro pentápode, mas amava-te”. Lolita, pelo seu lado, não é uma inocente criança, mais manipuladora e fria do que muitos adultos. Percebe-se, no entanto, que foi o abuso inicial de Humbert que completou a transformação da pequena ninfita: “Calou-se, à procura das palavras adequadas, e eu murmurei-as mentalmente: “Ele despedaçou-me o coração. Tu apenas me arruinaste a vida”” .
O ritmo das palavras de Humbert Humbert é quase hipnótico. É-se obrigado a julgar o homem pelo discurso e não pela história. Periodicamente, Humbert relembra mesmo o leitor dessa função: “Nobres damas do júri, tende paciência comigo!”.
A narrativa, escrita em inglês, de Nabokov, russo, espanta pela surpreendente capacidade de aproveitamento linguístico do autor. Muita dessa riqueza vive do jogo de palavras que é, infelizmente, intraduzível, mas passível de ser adivinhado por um leitor com conhecimentos da língua inglesa e da cultura anglo-americana.
Lolita nunca será um livro consensual, o seu tema central incomodará os leitores para sempre. O corolário deste teorema é que também não será esquecido por ninguém: será marcado pela História da Literatura como um dos grandes romances do século vinte. Honra que é, sobremaneira, merecida.