Sexta-feira, 10.04.09

Romaria

O milagre
 
António Lobo Antunes
 
'respondi modestamente que era actor de novelas na televisão, em voz baixa, implorando segredo dado que me incomodava ser reconhecido. Pediu um autógrafo também e tornei-me instantâneamente uma celebridade no bairro'
 
Durante anos tive um sítio para escrever na Rua Afonso III, um segundo andar pequenino a cavalo no rio: um quarto, uma salita, uma cozinha dentro de um armário, o rio em frente e no outro lado do rio as chaminés na margem sul, as paredes cobertas de fotografias de jogadores de futebol e anúncios de astrólogos que amarravam e desamarravam pessoas, davam sorte aos negócios e tratavam a impotência, tudo ao mesmo tempo.
 
Por alguns meses não foi apenas sítio de escrever, foi sítio de morar, sem livros e quase sem móveis, trastes comprados no lugar mais barato que encontrei, uma cama, uma cómoda, três cadeiras, a mesa de tampo de mármore partido em que trabalhava. A porteira chamava-se dona Generosa, o edifício era tão feio que se tornava lindo, abastecia-me num supermercadozito a cem metros.
 
Uma ocasião estava na bicha do pagamento e a rapariga antes de mim pediu-me um autógrafo. Ao chegar a minha altura a senhora da caixa, proprietária e única empregada, que ouvira a história do autógrafo, perguntou-me
 
- Desculpe, o senhor é famoso em quê?
 
e respondi modestamente que era actor de novelas na televisão, em voz baixa, implorando segredo dado que me incomodava ser reconhecido. Pediu um autógrafo também e tornei-me instantâneamente uma celebridade no bairro. Até o barbeiro se interessou
 
- Há muitos maricas no teatro, não há?
 
e tirei o braço da toalha num gesto vago que lhe confirmou as suspeitas. Notei no espelho que me observava avaliando a minha masculinidade e tocando-me o menos possível no receio que a mariquice fosse contagiosa: há os que são e não parecem de modo que convém ter cautela. Na tasca onde almoçava o dono informou-me, com abertura de espírito
 
- Não tenho nada contra os homossexuais, sabia?
 
e de um grupo de operários que ouviu esta declaração de princípios veio o acrescento tolerante
 
- Cada um come do que gosta
 
seguido de cotoveladas e risinhos. A dona Generosa, que simpatizava comigo, preocupou-se
 
- Dizem por aí que o senhor é esquisito, veja lá
 
enquanto eu metia a publicidade da minha caixa do correio nas caixas do correio dos vizinhos e a dona Generosa, cúmplice
 
- Expliquei logo às pessoas que por mim nunca notei nada
 
afastando à cautela o filho com a palma estendida, e depois disto, ao apresentar o cesto de arame na caixa, a proprietária do supermercado, numa mistura de estranheza e dó, sugeria
 
- Temos aí um cremezinho para a cara francês
 
ou
 
- Recebi agora um verniz de unhas transparente
 
surpreendida por me contentar com iogurtes e bolachas ou antes não surpreendida visto que
 
- A manter a linha, não é?
 
num murmúrio tolerante. A minha reputação ia-se adensando, principiavam a aceitar-me, a advogada dois andares acima consultou-me acerca da roupa
 
- Fala-se que vocês têm mais gosto que os outros, o que acha deste azul?
 
o azul do soutien, não da blusa, o soutien reduzido e eu achei que o azul estupendo, avaliei-o entre dois dedos, isto no elevador, como o soutien cheirava bem pesquisei
 
- É perfumado isso?
 
a advogada parou os olhos em mim, admirativa primeiro, interessada a seguir
 
- Onde é que se compram soutiens perfumados?
 
repeti o gesto vago que clarificou o barbeiro
 
- Por aí
 
o soutien chegou-se mais, comigo sempre a avaliar o tecido
 
- Numa loja da Baixa, uma transversal que quase ninguém conhece, se me acompanhar lá em cima faço-lhe o desenho
 
julguei que tinha sorte, não tive sorte porque um soslaio ao relógio
 
- Estou atrasadíssima para um julgamento, amanhã procuro-o
 
mirou-me das escadas no que se me afigurou uma espécie de dúvida se calhar nascida de um deslize dos meus dedos, observei os dedos que me pareceram sossegados, tranquilizei a dona Generosa que esperava da porta
 
- Sou louco por azuis
 
a dona Generosa
 
- Se eu fosse sua mãe tinha pena
 
a dona Generosa
 
- Com um palminho de cara como o seu que desperdício
 
se calhar por culpa dos dedos a advogada não veio, tocaram à campainha mas era para conferirem o contador do gás, nenhum perfume, um sujeito gordo, nenhum soutien, um fio das grilhetas dos forçados das galés ao pescoço, com uma cruz em tamanho quase natural que lhe alcançava o umbigo, a advogada moita, morena, com franja, um anel no polegar
 
- Como se chama a advogada, dona Generosa?
 
a dona Generosa, terapêutica
 
- Julga que o ajudava a perder os vícios?
 
tornei-me melancólico
 
- Deus queira
 
e recebi na volta
 
- Florbela tudo pegado
 
e o esclarecimento indispensável visto que dentro da dona Generosa morava, insuspeitada, uma professora primária
 
- Não é Florbela Tudo Pegado, é Florbela com as letras juntinhas, a minha cunhada é Florbela
 
a cunhada que a visitava aos domingos, sem franja nem anel no polegar e de certeza que um soutien cor de carne, pus-me a pesar os elementos que tinha
 
- Morena advogada Florbela: serve a dona Generosa, a dissipar dúvidas
 
- Isso que se murmura por aí acerca de você é verdade?
 
soltei com melancolia
 
- Murmura-se tanta coisa
 
e já esquecera a Florbela quando no fim do mês, um domingo à tarde, a campainha de novo e não era por causa do contador, era o soutien no capacho, era a franja, era o anel
 
- Posso?
 
um soutien não azul, preto, uma saia rodada facílima de desabotoar, só com um botão atrás, eram sapatos que se descalçavam num instante, era
 
- O que é isto?
 
E o perfume no pescoço, nos braços, era um piercing no umbigo, era o
 
- O que é isto?
 
substituído por
 
- Aí tenho cócegas
 
era o
 
- Aí tenho cócegas
 
substituído por
 
- Afinal não tenho
 
substituído por
 
- Estou toda a tremer
 
era o
 
- Estou toda a tremer
 
substituído por
 
- Fofinho
 
era o
 
- Garantiram-me que eras esquisito
 
e eu
 
- Graças a Deus curei-me, a treze de maio vamos a Fátima agradecer
 
dado que um dos meus irmãos me jurou que em Fátima havia umas hospedarias de se lhe tirar o chapéu, à volta do santuário, e é normal gemer-se em consequência dos cilícios dos penitentes.
 
 
 
© António Lobo Antunes

 

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publicado por ardotempo às 19:56 | Comentar | Adicionar

Barroco

Ler

 

José Saramago

 

Isto a que chamam o meu estilo assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada em Portugal nos séculos XVI e XVII.

 

Abrimos os Sermões do Padre António Vieira e verificamos que há em tudo o que escreveu uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco. Nós não sabemos ao certo como se falava na época, mas sabemos como se escrevia. A língua então era um fluxo ininterrupto.

 

Admitindo que possamos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.

 

Chegam dias de férias, uma boa ocasião para entrar nesta água, nesta língua escrita pelo Padre Vieira. Não aconselho nada a ninguém, mas digo que vou mergulhar na melhor prosa e vou desaparecer estes dias. Alguém quer acompanhar-me?

 

 

José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago

publicado por ardotempo às 19:47 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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