Herança em livros
Andrei Netto
Ela tem 28 anos, é miúda de corpo e carrega no nome - Sylvia Beach Whitman - e nos ombros a herança do que muitos consideram o santuário da literatura de língua inglesa na França: a livraria Shakespeare and Company. Aberta em Paris em 1919 pela americana Sylvia Beach e fechada em 1941, o título Shakespeare & Co. voltou à fachada de uma loja, em 1962, depois que, em testamento, sua fundadora legou ao amigo George Whitman, pai da outra Sylvia - que assim a batizou em homenagem à livreira, usando inclusive o sobrenome famoso -, a grife de seu negócio pequeno, mas revolucionário: foi com o selo da Shakespeare & Co. que chegou aos leitores a primeira edição de Ulysses (1922), de James Joyce. Pudera: Joyce se tornara amigo de Sylvia Beach e não teve dúvida em levar-lhe os originais de seu romance avassalador depois que Virginia Woolf se recusara a publicá-lo na sua Hogarth Press (há quem diga que ficou desconcertada com o que leu).
Pelos corredores do estabelecimento passavam, com frequência, autores como Ernest Hemingway, T. S. Eliot e André Gide. A jovem Simone de Beauvoir era habitué e o músico George Gershwin também andou por lá. Em seu endereço atual - 37, rue de la Bucherie (originalmente ficava na Dupuytren e em 1921 se mudou para a Odéon) -, onde se ergue uma construção que abrigou, no século 16, um monastério, George Whitman, hoje com 95 anos, hospedou escritores, estudantes e aficionados por literatura em geral (deixando sempre disponíveis seis camas estreitas). Em seu modo de entender, para além de uma livraria, de uma editora, de um lugar, enfim, dedicado às letras, a Shakespeare & Co. deveria ser um espaço dedicado ao cultivo da convivência, do encontro entre pessoas.
É essa cultura que torna a Shakespeare & Co. ainda hoje - contra todas as celebrações das megastores - uma referência literária na cidade, seja para quem é do ramo, seja para clientes eventuais. Entre as prateleiras da loja continuam a circular jovens escritores (ou candidatos a) - que, como sempre, conseguem passar um período hospedados no estabelecimento.
O acervo, de 40 mil títulos, que ocupam os dois primeiros andares da Shakespeare & Co., é, de fato, extraordinário. Não bastasse a variedade e a qualidade dos livros, ainda se pode topar, a qualquer instante, com obras raras como a primeira edição de Lady Chatterley's Lover (1928), de D. H. Lawrence - evidentemente, invendável -, mas pode-se namorá-la à vontade. I
Nada disso, contudo, asseguraria à Shakespeare & Co. o posto que ocupa se, por trás da excelência de seu acervo e do glamour que envolve o estabelecimento não houvesse as figuras lendárias que a conduziram até recentemente - e Sylvia Beach Whitman tem a grave incumbência de substituir. É verdade que em dias e horários aleatórios, quando se sente mais forte, George Whitman desce as escadas - ele vive recolhido e quase inalcançável no terceiro andar da loja- e se mistura aos clientes, no que se transforma imediatamente num acontecimento. Reza a lenda que, vez ou outra, ainda se pode encontrar no meio de algum exemplar da livraria notas de 100 ou 500 francos com as quais Whitman costumava marcar a página em que parara sua leitura. Encontrá-las não é sorte grande nem traz, claro, nenhuma fortuna, já que o franco hoje só circula no imaginário dos mais saudosos. Achar uma dessas cédulas não atesta apenas a inclemência do tempo, que corrói até moedas fortes, mas também a longevidade de Shakespeare & Co. - para não falar do desapego material de seu proprietário.
A história do norte-americano Whitman, nascido em Salem, Massachusetts, em 1913, é contada com recortes de verdade comprovada e lendas que se perpetuam. Sua vida só mudou de rumo aos 33 anos, quando estava em Paris para trabalhar com órfãos de guerra e acabou se matriculando na Sorbonne para estudar civilização francesa. Nunca mais foi voltou para os Estados Unidos. Sobrinho-neto do poeta americano Walt Whitman, ele abriu em 1946 sua primeira livraria, a Le Mistral, que acabaria herdando o nome da Shakespeare & Co. A peregrinação diária de escritores, pretensos escritores, poetas beats e leitores à loja de George Whitman, que os acolhia com generosidade - em troca da hospitalidade, só exigia duas horas de trabalho no caixa e a leitura de um livro por dia, política que segue em vigor - chamou a atenção de Sylvia Beach. Em pouco tempo, ela já visitava Whitman com regularidade. O resto já se sabe.
À primeira vista, as duas Sylvias parecem muito diferentes. Antes de mais nada, a filha de Whitman demonstra indisfarçáveis preocupações com a beleza. Ao deparar com o repórter do Estado, ela pede dois minutos "para resolver uns problemas". Volta penteada e com os lábios vermelhos. "Ainda não penso em lançar novos autores. Neste momento, estou mais preocupada em reparar e preservar a loja, modernizá-la no que é possível - gestão de estoque, página de internet, festival literário", conta. "Aí, pouco a pouco, me sentirei mais confortável para editar" , diz a jovem, formada em história e teatro em Londres, sua cidade natal.
Não por acaso, em uma das paredes do estabelecimento se lê: "Be not inhospitable to strangers/ Lest they be angels in disguise" (em tradução livre: Seja hospitaleiro com os estranhos. Podem ser anjos disfarçados). Sylvia Beach Whitman, que não mora no ex-mosteiro, guarda, neste sentido, um saudável conservadorismo: "Sou sensível em minha preocupação de não alterar o equilíbrio e o estilo desta loja", diz a britânica. "Para mim, é a casa de alguém que vive em outra época."
Andrei Netto - Publicado em O Estado de São Paulo - Indicação do blog Verdes Trigos