Sexta-feira, 20.03.09

Soburdinadas

Orações soburdinadas
 
António Lobo Antunes
 
 
Curioso como as pessoas que conheci de toda a vida não mudam nem por fora nem por dentro: para quê perguntar-te a idade se a sei perfeitamente, dez anos, onze no máximo
 
        - António
 
        e volto à infância. A minha prima Ana Maria, de braços abertos na rua
 
        - faço anos hoje não me perguntes quantos
 
        e não te pergunto quantos, foste tão importante para mim em pequeno. Eras mais velha que eu, levavas-me a correr de mão dada. O avô sentava-se numa cadeira de lona à entrada do jardim, fechava os olhos e tu coçavas-lhe a cabeça. Isto ao fim da tarde, ele de casaco de linho, depois do escritório. Tantos insectos naquele tempo, tantos canteiros, tantas flores. O teu irmão Quim Zé passeava-me na Vespa por baixo da janela de uma menina de oito anos por quem eu estava apaixonado. Tinha paciência para mim e foi morrer na guerra em Angola. Lembro--me da chegada do caixão à Estrela, com a bandeira por cima. Gostava do Quim Zé e da Ana e gostava do pai deles também, que tocava guitarra de Coimbra. Dava-se bem com o meu pai, eram casados com duas primas direitas. Falei à Ana na chegada do caixão do Quim Zé à Estrela, vai ela
 
        - Dizem que o teu pai era distante mas não era
 
        e pôs-se a contar que o meu pai abraçou o pai dela e depois lhe pegou na mão, a encostou à sua bochecha e lhe deu um beijo. Fiquei a olhá-la de cara à banda, nunca vi o meu pai ter manifestações dessas.
 
        - Juro-te que é verdade
 
        e eu parvo. Deve ser, a Ana Maria nunca me mentiu. O meu pai nasceu daqui a oito dias, este é um mês amargo: demasiadas dores. Eu cá me entendo.
 
        Curioso como as pessoas que conheci de toda a vida não mudam por fora nem por dentro: para quê perguntar-te a idade se a sei perfeitamente, dez anos, onze no máximo. Maravilhado a ver-te tocar piano eu que sempre tive dedos piores que salsichas, gordos, inúteis. O corpo magro e os dedos gordos: das duas uma, ou o corpo ou os dedos são postiços. Ou então é tudo postiço e sou outro que não sei onde pára. No caso de ser outro que corpo tem o outro, que dedos? Sinto-me bem nesta casa: livros, quadros, pouco mais. Devo ter herdado esta nudez do meu pai, este desinteresse pelas coisas, morar entre objectos imediatamente úteis. E preciso que o mundo esteja ordenado porque a minha cabeça é um cafarnaum, um sótão cheio de tralha inútil. Com essa tralha inútil faço os livros, vou alinhando o que os outros não querem páginas fora. Na época em que me levavas a correr de mão dada, Ana Maria, não escrevia ainda. Ficava a pensar na morte da bezerra. Mesmo hoje, nos intervalos dos livros, penso na morte da bezerra ou seja não penso em nada, espero. A Vespa do Quim Zé despenteava-me e eu com medo que a menina ficasse mal impressionada comigo. Nunca a vi na janela. O Quim Zé
 
        - Queres que pare?
 
        e não valia a pena parar porque não reparava em mim. O que lhe terá acontecido?
 
Casou? Teve filhos? Ou continua no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma? Deve continuar no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma, porque carga de água havia de me ligar? Ligava o professor
 
        - Escreve aí no quadro uma oração subordinada
 
        e deu-me um estalo porque escrevi soburdinada. Até hoje acho soburdinada mais bonito.
 
O professor era uma besta de violência, distribuía chapadas pela aula e eu queria ficar grande num instante para lhe aplicar uma sova. Quando fiquei grande procurei-o na lista telefónica para lhe devolver os estalos: nunca o encontrei e ninguém sabia dele. Nos intervalos de bater tirava pêlos do nariz ou mandava-nos comprar-lhe cigarros. Oxalá tenha tido uma morte macaca. O apagador de giz voava, direitinho à gente, chamava-se senhor André e o cão dele, um infeliz como nós, Pirata. O cão não escrevia no quadro orações subordinadas mas, tal como nós, comia pela medida grande, pontapés atirados com alma. Uma tarde o pai de um aluno foi à escola e enfiou um murro no senhor André, não tenho presente agora se no nariz de onde ele tirava os pêlos. Era careca e com patilhas, disso recordo-me. Recordo-me igualmente do ar sofrido da mulher. A escola ficava ao pé de um caneiro de que saíam vapores nauseabundos e, no inverno, ratos a trotarem lá em baixo, nas pedras, enormes.
 
        - Estás a pensar na morte da bezerra, tu?
 
        - Não, senhor André
 
        - Então vem aqui ao quadro escrever uma oração subordinada.
 
        Tudo isto me regressou, num vómito instantâneo de imagens, mal a minha prima Ana Maria
 
        - António
 
        de braços abertos na rua, mais baixa que eu, que esquisito. Os olhos dela iguaizinhos, redondos, uma festa que me soube tão bem na cara. Depois acenámos adeus e fui-me embora. Entrei no carro, vim para aqui fazer isto. Acabei o livro, estou vazio. No meio da prosa chegam traduções minhas em grego que a agência mandou por esses correios especiais em que a gente tem de assinar um papel. Assino sempre na linha errada e o empregado diz sempre
 
        - Não faz mal.
 
        Desta foi em grego, da última em macedónio ou polaco. E aparece logo o senhor André a anunciar aos gregos, aos macedónios, aos polacos
 
        - Escreve soburdinada, o camelo
 
        num desprezo sem fim, e os gregos, os macedónios e os polacos a concordarem, escandalizados. Devem achar os estalos merecidos:
 
        - Soburdinada, que horror, anda a gente a publicar este artolas
 
e o artolas, distraído deles, a pensar na morte da bezerra. Não: o artolas, distraído deles, a respirar o vapor do caneiro, espantado com os ratos. Não: o artolas a hesitar como se acaba esta crónica. Não a acabes, artolas: fica assim. 
 
 
 
© António Lobo Antunes

 

publicado por ardotempo às 20:56 | Comentar | Adicionar

Blog do Noblat - 5º Aniversário

E assim se passaram cinco anos...
 
Ricardo Noblat 
 
É o início 
 
Bem-vindos ao meu blog.
---------------------------
Foi com a nota acima que este blog entrou no ar há exatos cinco anos, hospedado no portal do IG.
 
Até então eu nunca havia acessado um blog. Ouvia falar que blog era diário de adolescente.
O meu foi o primeiro blog de notícias políticas do país atualizado várias vezes ao dia.
No princípio serviu como espaço para despejo de notas apuradas no início da semana que envelheceiam antes do domingo, dia de uma coluna sobre política nacional que publicava no jornal carioca O Dia.
 
Quando a coluna acabou em maio daquele ano, pensei que o blog deveria acabar também. Eu o via como um subproduto dela.
 
Cheguei a me despedir dos leitores do blog. Mas a pedido de alguns deles, mantive o blog à espera de  algum emprego em jornal, rádio ou televisão.
O emprego não apareceu.
 
Produzi de graça conteúdo para o IG até março do ano seguinte. Aí descolei uma grana para seguir fazendo o blog.
 
Em janeiro de 2006, o blog transferiu-se para o portal do jornal O Estado de S. Paulo. E dali a um ano para o portal do jornal O Globo.
 
Agradeço a todos que contribuíram para sua consolidação. Mas agradeço principalmente a vocês, leitores e aos comentaristas. É sério: eu me divirto e aprendo muito mais com vocês do que vocês comigo.
 
Considerem-se todos abraçados.
 
Ricardo Noblat - Publicado no Blog do Noblat
 
Blog do Noblat - O mais importante Blog de Política no Brasil
Sem diletantismo, sem amadorismo.
Números impressionantes.
(ARdoTempo)
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publicado por ardotempo às 20:22 | Comentar | Adicionar

Yann Arthus-Bertrand

A Terra vista do céu
 
Foi num fim de tarde do Verão de 2000, em Paris, que vi pela primeira vez as fotos de Yann Arthus-Bertrand. Era uma exposição no Jardim do Luxemburgo, ao ar livre, enormes fotos coloridas de manchas às vezes quase abstractas, penduradas no gradeamento, para serem vistas do lado de fora.
 
Os transeuntes deslizavam numa marcha silenciosa pelo passeio, hipnotizados pelas imagens, crianças puxavam os pais para lhes mostrar o que tinham visto mais adiante, grupos de pessoas paravam à frente de uma fotografia interrompendo o tráfego, envoltos num fascínio que a chuva miúda do fim do dia só conseguia ampliar.
 
 
 
 
 
As fotos da exposição pertenciam ao projecto "A Terra vista do céu", que tinha saído em livro há uns meses e que conheceria um êxito extraordinário em todo o mundo. Eram fotografias tiradas do ar mas muitas delas a baixa altitude, a partir de helicópteros e balões. E mostravam um planeta que, não sendo completamente desconhecido, se revelava dilacerantemente belo e tocantemente frágil, onde a perspectiva tornava surpreendentes as coisas mais familiares, com a terra e as plantas e a água e as casas a desenhar um mosaico de uma variedade e um colorido inesperado. Não eram apenas as grandes paisagens mas também as catástrofes naturais, os sinais da actividade humana, os campos e os jardins e os bairros mostrados de cima mas a uma escala humana, às vezes as próprias pessoas, acenando, uma caravana de dromedários lançando as suas sombras alongadas no pôr-do-sol, pessoas no meio de uma lixeira, tanques a enferrujar ao sol do Iraque.
 
O enorme livro, que o Scientific American dizia parecer mais uma coffee table que um coffee-table book, conseguiu o efeito que Arthus-Bertrand pretendia, um efeito semelhante àquela fotografia da Terra tirada do espaço na véspera de Natal de 1968, que nos mostrou sozinhos no espaço e que evidenciava tão claramente a nossa fragilidade e como as nossas disputas eram insensatas e mesquinhas.
 
Publicado no blog Arte Photographica 
publicado por ardotempo às 14:49 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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