Segunda-feira, 09.03.09

Devoção

A Virgem dos Matadores
 
Eduardo Pitta
 
Quem tenha lido La Virgen de los Sicarios (1993), de Fernando Vallejo, ou, não o tendo feito, tenha visto o filme que Barbet Schroeder fez a partir da obra, não esqueceu Medellín, a cidade de Botero, antigo feudo do cartel de Pablo Escobar, importante centro industrial e cultural da Colômbia, país do qual se pode dizer que vive em conflito aberto: as lutas independentistas começaram em 1810; a guerra dos mil dias (1899-1903) opôs para sempre liberais e conservadores; as FARC mantêm o terror em extensas zonas territoriais na zona de fronteira com o Equador; o número de “desaparecidos” excede a imaginação mais vertiginosa. A tudo isso, o romance de Vallejo e o filme de Schroeder acrescentaram um halo de perversão em cenário pouco menos que apocalíptico, com vista para os Andes.
 
Foi portanto com surpresa e alguma apreensão que, faz agora um ano, recebi o convite para participar no Festival Internacional de Poesia de Medellín, feito por Fernando Rendón, director da revista Prometeo, responsável pelo evento. Inimigo jurado da direita colombiana, Fernando Rendón é uma lenda no milieu da “literatura de causas”, alguém capaz de tirar do sério gente conspícua como Harold Alvarado Tenorio e Eduardo Escobar, dois poetas não convidados que acusaram a organização do festival, em artigos publicados nos jornais de Bogotá, de manter conluio com a izquierda asesina, sabendo ambos (e deplorando) que o festival recebe apoio do governo, e que Álvaro Uribe, o presidente, com o ser um homem da direita tradicional, faz parte da oligarquia dominante.
 
Mas a poesia tem razões que a razão desconhece e, em Julho, parti para a Colômbia, onde me juntei a outros 73 poetas, sendo colombianos 14. A chegada ao aeroporto internacional (existe outro para voos domésticos) provoca ansiedade no europeu habituado ao Espaço Schengen: um polícia armado a cada 10 metros, um cão por cada dois polícias, retratos de terroristas nas paredes, etc. Deveras inquietante. Mas a logística do festival apanha-nos ao fim de vinte passos fora do avião. A partir dali andamos literalmente ao colo. Tendo em conta que esta décima oitava edição reuniu 74 poetas oriundos de 54 países, expressando-se em 28 idiomas diferentes, contando cada poeta com uma equipa de recepção própria, e dispondo os de expressão não-castelhana, que eram 40, de tradutor particular (o meu foi John Viana, um actor que trabalha actualmente numa dramaturgia do Livro do Desassossego, inexcedível de zelo e afabilidade), é fácil avaliar a dimensão da empresa.
 
O Festival de Medellín é considerado, até pela New Yorker, o mais importante em todo o mundo. Ao longo dos oito dias que dura, promove para cima de cem sessões. Em 2008 realizaram-se 96 em Medellín e 14 noutras cidades de Antioquia. Houve ainda um seminário de poesia. Verdade que existem mais festivais de poesia com idêntico prestígio, casos de Roterdão, Berlim e, para não sair da Europa, o da União Latina, este com carácter bienal e itinerante (o de 2007 foi em Roma). Mas quem os conheça sabe que estamos a falar de coisas diferentes. Numa capital europeia, como provavelmente nas grandes cidades americanas, uma leitura de poesia mobiliza, quando mobiliza, 60 a 80 pessoas (não estou a falar de Auden ou Neruda no pico das carreiras respectivas). Em Medellín, os espectadores são às centenas em cada uma das 12 ou 14 sessões que se realizam em simultâneo, chegando aos milhares nas colectivas de abertura e fecho. Sim, custa a acreditar. O holandês Bas Kwakman, o especialista em Fernando Pessoa que dirige o Festival de Roterdão, convidado como observador, ficou boquiaberto.
 
À margem do festival, fui espreitar a mítica Catedral Metropolitana, templo dedicado a Nossa Senhora dos Sicários, ou seja, à virgem dos matadores. Cheguei lá depois de atravessar a Passaje Junín, coração do centro histórico da cidade, espécie de Calcutá dos trópicos, que estabelece um violento contraste com a modernidade e limpeza da rede de metro, servindo com eficiência uma área com perto de seis milhões de habitantes.
 

Eduardo Pitta - Publicado no blog Da Literatura

Vênus - Fernando Botero - Escultura em mármore de Carrara (Medellin - Colômbia) 

publicado por ardotempo às 17:20 | Comentar | Adicionar

O começo e o fim

As balizas: Machado de Assis e Daniel Galera
 
Quando se fala da renovação do português escrito no Brasil, a linha de fronteira é 1922, o ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo. À época, a enfática oposição de Mário de Andrade à matriz clássica da linguagem, patente no prefácio de Paulicéia desvairada, trazia consigo o propósito de sabotagem do português solene por interposta transgressão sintáctica. Nada disto é novidade, mas talvez ajude a explicar a progressiva evolução do português literário do outro lado do Atlântico, tendo por balizas Machado de Assis e Daniel Galera, com, de permeio, as peculiares declinações de Érico Verissimo, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Hilda Hilst, Valêncio Xavier, Bernardo Carvalho e outros. Vale o intróito porque Mãos de Cavalo, de Daniel Galera (n. 1979), pode suscitar resistência por parte do leitor menos afeito às mil possibilidades da língua.
 
 
Daniel Galera ainda não tem 30 anos. Nasceu em São Paulo, vive em Santa Catarina, mas passou grande parte da vida em Porto Alegre; foi na capital do Estado do Rio Grande do Sul que fundou a editora Livros do Mal; entretanto, publicou três romances e uma colectânea de contos (alguns destes livros estão traduzidos na Argentina e em Itália); traduziu autores tão diferentes como Irvine Welsh ou Michael Coleman; antes e em simultâneo colaborou com regularidade no COL, o fanzine electrónico, melhor dito, o Mailzine, «sem imagens, sem formatação, sem html: texto puro». Chegou agora a Portugal o penúltimo livro, precisamente Mãos de Cavalo, romance de iniciação, aprendizagem e busca de identidade, com acção centrada em Porto Alegre e momentos deveras conseguidos: «Cada vez que levava um golpe no rosto, simulava o impacto jogando a cabeça com força para o lado, e o sangue espirrava sobre a porta do banheiro ou o vidro do box. [...] A porta estava coberta de respingos vermelhos. Tinta vermelha diluída escorria por seu pescoço e tórax. A pia estava toda vermelha. O chão estava vermelho.» Hermano ficou sozinho com a lembrança de Bonobo, o estojo de lápis Caran d’Ache e o medo, com eles roteirizando a briga falhada. Sem iludir o facto, é da impossibilidade que o autor trata. Por exemplo, querer amar e não ser capaz. O blasé urbano é uma máscara como outra qualquer.
 
Mãos de Cavalo foi escrito a dois tempos: o tempo do rapaz, e o do homem. No lapso de um dia, o cirurgião alpinista escava o passado: tinha 15 anos, a Esplanada estava longe de ser um bairro, Hermano mantinha intacto «um resquício de excitação esperançosa, marcada por superstições e resoluções». Agora é um profissional bem sucedido, com tédio da família: a mulher cita Ballard, ele faz abdominais. No entretanto, conjectura com o Cerro Bonete boliviano (existe outro na Argentina), mítica montanha intocada, ou quase, sem «estrada, cidade, porra nenhuma. O desgraçado fica na borda de uma cratera vulcânica com uns seis ou sete quilômetros de diâmetro.» A fala é de Renan, subir aos picos é a cara dele, mas Hermano assume o transfert.
 
Como quem não quer a coisa, porque a prosa dúctil e pouco adjectivada subtrai ênfase ao discurso, Galera faz um mix perfeito entre memorialismo (na acepção clássica do termo) e deriva pós-modernista. Impressiona o domínio da linguagem, aguentando o tom sem falha rítmica, mesmo nos períodos longos, nos quais disseca a trama com precisão de relojoeiro: da bicicleta Caloi Cross aro 20 às coordenadas do Google Earth nada surge fora de contexto, o que inclui provas de downhill (ciclismo de montanha), cenas de sexo e preocupações ambientais, porque a mulher, artista plástica, fez uma instalação a partir do transplante de uma figueira, coisa que ninguém faz sem um exaustivo protocolo prévio. A todas essas a escrita não derrapa, adequando-se a cenografia a cada nova situação: «Levou ela até o Lami, estacionou sobre a areia num recanto secreto [...] e passaram o resto da madrugada avançando limites na história pessoal e no corpo do outro [...] como se isso pudesse fazer desmoronar aquele estado de felicidade quase eufórica que vibrava no interior do carro e parecia depender de um delicado equilíbrio de fatores.»
 
Após o triunfo da desconstrução e das alegorias dos anos 1980 e 90, as gerações novíssimas (o primeiro livro de Daniel Galera é de 2001) regressam à divisa de Forster: «the novel tells a story». Digamos, sem favor, que o autor de Mãos de Cavalo o faz com brio.
 
Publicado no blog Da Literatura 
publicado por ardotempo às 12:29 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Diamba

Quando dois mais dois são cinco
 
Ferreira Gullar
 
Costumo dizer que, como não tenho memória, não posso ser um homem culto. Restam coisas que, a troco mais de refletir que lembrar, tenho-as como certezas ou suposições. Por exemplo, acho que muitas das opções que fazemos têm causa em nossa constituição genética, e a cada dia vejo isso confirmado pelos cientistas.
 
Agora mesmo, leio no jornal que a tendência a encarar os problemas com otimismo está na combinação de determinados genes. Li, faz alguns anos, sobre uma experiência científica feita com cem pessoas para saber como reagiriam em face da ordem de matar alguém.
 
Dessas, 94 se negaram a aceitar a ordem e as seis que a aceitaram tinham determinada área do cérebro - onde as decisões são tomadas - menor.
 
Sei que não é simples assim, pois outros fatores também atuam, mas é impossível ignorar tais constatações, mesmo porque os fatos com frequência as confirmam. Por exemplo, como explicar que uma pessoa rica se empenhe em roubar? Se, por necessidade não é, só pode ser por vocação: nasceu ladrão.
 
Posso estar simplificando, mas essas observações não são de todo descabidas. Não é, porém, precisamente disso que quero falar, mas da legalização da maconha, questão que de vez em quando volta à baila.
 
Fui levado a essas reflexões por um fato que se deu comigo. Aos 13 anos, viciado em bilhar, fui levado a experimentar a diamba, nome da maconha no Maranhão. Comigo estavam Esmagado e Maninho, pivetes como eu. Ao puxar a fumaça, senti um gosto horrível de mato velho e cuspi; Esmagado tampouco gostou; já Maninho ficou puxando fumo com os outros, gostou, viciou-se, passou para a cocaína e terminou internado num hospital psiquiátrico, onde morreria prematuramente. Já contei essa história aqui e alguém me escreveu alegando que o caso de Maninho era uma exceção.
 
Cito outros. Muitos jovens da geração dos anos 60 e 70 entregaram-se à maconha, depois à cocaína e ao LSD. Foi uma onda, que se apoiou no charme dos Beatles e dos Rolling Stones. Muitos se deixaram levar por ela, mas a maioria saltou fora em seguida. Alguns, não. É que, no caso destes, as drogas atendiam a uma necessidade psicológica, que as tornavam imprescindíveis. Herança genética, talvez.
 
Hoje, como naquela época, há os que se drogam por necessidade e os que o fazem para entrar na onda, sendo estes - o público consumidor flutuante - possivelmente a maioria. A verdade é que, juntos, por motivações diferentes, mantêm o mercado das drogas funcionando. E esse mercado, por ilegal que é, tem como regra básica a violência armada e como sentença frequente a pena de morte. Quem mais sofre as consequências da guerra entre traficantes são os moradores das favelas e dos bairros pobres.
 
Essa talvez seja a principal razão que leva muita gente a defender as legalização das drogas, na expectativa de que, com isso, terminaria o tráfico e a consequente violência. Tenho minhas dúvidas. Não imagino os Fernandinhos Beira-Mar pagando ICMS, ISS e imposto de renda sobre o ganho anual de milhões de reais, que o mercado clandestino lhes possibilita. Outra questão: se o comércio de cigarros e pedras preciosas é legal, por que então há tráfico de cigarros e pedras preciosas no Brasil? Enfim, duvido que a legalização das drogas vá por termo ao tráfico que hoje tem amplitude mundial, envolvendo o comércio ilegal de armas e a estrutura operacional de um verdadeiro Estado paralelo.
 
Há quem defenda a discriminação apenas da maconha, considerada droga leve. Mas com que propósito, se for verdade que a legalização não acabará com o tráfico? Faz sentido se for para preservar de punição os dependentes patológicos que, de fato, têm que ter tratamento médico. E os outros, que entram nisso por simples prazer, muitos deles arrastando os próprios filhos menores que, às vezes, são seduzidos pela marginalidade? Não faz um mês, a polícia carioca prendeu um jovem de classe média alta, morador de uma cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas, que se tornara traficante de drogas e armas. Ele confessou que, desde garoto, fumava maconha com os pais, em casa, numa boa.
 
Sua alma, sua palma. Não pretendo dar conselhos a marmanjos que já escolheram o seu lado na sociedade. Maconha, como se sabe, não faz bem a ninguém. Fora os graves problemas que pode causar, mantém a pessoa entorpecida, apática, pouco apta ao trabalho. O certo seria dar assistência aos dependentes e tentar, na medida do possível, manter as novas gerações a salvo das drogas. 
 
 
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
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publicado por ardotempo às 12:22 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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