Terça-feira, 31.03.09

Sólido

O Mundo Sólido
 
João Paulo Sousa
 
Ao fim de um dia cansativo no gabinete, em que toda a minha atenção se concentrara no projecto da nova biblioteca de Ravenna e me levara a passar parte da hora de almoço a compor sucessivos desenhos sobre guardanapos de papel, e após um lento regresso ao apartamento em que vivo com a Paola, em parte devido à certeza de não a encontrar à minha espera, em parte para libertar o pensamento dos esquissos e traçados que o haviam ocupado durante tanto tempo, encontrei, na caixa do correio, entre inúteis folhetos publicitários e dois sobrescritos de aparência institucional, uma carta do meu filho, que me apressei a abrir, onde ele me anunciava que não seria pai. O texto era breve e estava impresso numa folha branca, demasiado branca, sem uma única palavra escrita à mão, nem mesmo o nome no fim a assinar, permitindo pensar que outra pessoa o teria redigido, mas eu não quis admitir essa possibilidade, embora ela talvez me houvesse tranquilizado um pouco. Com a carta na mão esquerda, aberta sobre a restante correspondência, detive??me à saída do elevador, como se de repente tivesse esquecido o que fazia ali e as escadas à minha direita e a porta em frente não me fossem familiares, como se as paredes tivessem adquirido uma redobrada espessura para que não me restassem dúvidas sobre a sua opacidade, sobre a total impossibilidade de as transpor, como se o mundo quisesse excluir??me e anunciasse o seu propósito com uma violência silenciosa. Não me mexi quando a luz das escadas se apagou e fiquei rodeado por uma escuridão quase total, apenas contrariada pela clarabóia do telhado, que deixava passar suficientes vestígios de uma noite clara ou da iluminação pública para que o meu olhar forçasse o negrume e aos poucos recuperasse os contornos das formas que me cercavam. Só consegui libertar??me da imobilidade quando ouvi uma porta a abrir??se e, por não ter conseguido localizar a proveniência do som, receei que se tratasse da vizinha de cima e que ela pudesse descer pelas escadas e me encontrasse ali parado, à porta de casa, em completo silêncio, o que teria aproveitado de imediato para me acusar de estar a espiá??la, de andar a espiá??la há muito tempo, como já uma vez dissera. Falaria em voz muito alta, como então havia feito, para que os outros moradores do prédio ouvissem e aparecessem nos patamares, provocaria um escândalo para gritar mal de mim e da Paola, por isso abri depressa a porta do apartamento e meti??me lá dentro antes sequer de acender uma luz. Tacteei até à sala e atirei??me para cima de um sofá, onde, no intuito de me libertar da agitação nervosa e irracional que crescera dentro de mim nos últimos minutos, abandonei os papéis e as chaves que me ocupavam as mãos e massajei lentamente o rosto com as pontas dos dedos. Enquanto repetia o movimento devagar, para forçar a minha respiração a adaptar??se a esse ritmo e regressar à sua cadência habitual, pensava que não deveria ter aberto a carta sem a presença da Paola, não deveria sequer ter aberto a caixa do correio, nunca deveria ter feito nada tão potencialmente perigoso sem que a Paola estivesse por perto e pudesse intervir e acalmar??me se tal fosse necessário. Tentei imaginar o que ela me teria dito se estivesse comigo naquele momento, mas esse esforço, que me obrigou a rever mentalmente a carta pousada ao meu lado e a rememorar cada uma das palavras do meu filho, ao invés de permitir que eu recuperasse alguma serenidade, apenas serviu para agravar a ansiedade de que procurava libertar??me. Quase saltei do sofá em direcção à janela mais próxima, movido por uma intensa e inesperada sufocação, para abri??la de par em par e engolir o ar quente do exterior nocturno. O meu olhar derivou da rua estreita e pouco iluminada, por debaixo daquela janela, até aos clarões eléctricos da avenida perpendicular, onde se situava a entrada do prédio, para regressar ao ponto de partida e se deter sobre o toldo de um pequeno restaurante a que eu e a Paola costumávamos recorrer com alguma regularidade à hora de jantar, mas não conseguiu que o nome do meu filho Álvaro, em caracteres demasiado negros sobre uma superfície branca, como uma cortina hesitante entre a transparência e a opacidade, desistisse de me ocupar o pensamento. O ruído dos carros na avenida misturava??se à voz neutra do meu filho, tal como eu o imaginava a dizer??me as palavras que preferira escrever, tal como eu o imaginava a contar que a Maria caíra desamparada nas escadas do prédio e, ainda que tivesse sido logo socorrida por ele, que a levara de imediato ao serviço de urgência de um hospital central, perdera a criança que deveria nascer dali a três meses. A concluir a carta, o meu filho assegurava??me que a mulher estava bem, mas não deveria ser inquietada com telefonemas sobre o seu estado de saúde, para que a memória pudesse limpar??se, como ele dizia, numa expressão que me causou alguma repugnância, sem que eu compreendesse imediatamente porquê.
 
 
Extraído do livro O Mundo Sólido - João Paulo Sousa , 2009 Editora Deriva (Lisboa)
Fotografia de Gilberto Perin - Esculturas monumentais em bronze - Museu de Talin (Estônia)
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Bruno Helsens

Fotografia

 

 

 

 

Bruno Helsens - Trilhos - Fotografia (Paris, França), 2009

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Gilberto Perin

Fotografia

 

 

 

 

Gilberto Perin - Flores Antigas - Fotografia (Porto Alegre), 2009

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Andy Warhol

Lana Turner

 

 

Andy Warhol - Lana Turner - Pintura em acrílica com aplicação de processo serigráfico, sobre tela (Grand Palais, Paris 2009), 1985

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Segunda-feira, 30.03.09

Charlotte Marchand

Desenho

 

 

 

Sem título - Desenho aquarelado sobre cartão, de Charlotte Marchand (Paris), 2008

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Robert Longo

Desenho

 

 

 

Sem título - Desenho sobre cartão, de Robert Longo (Paris), 2008

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Louise Bourgeois

Desenho

 

 

 

Sem Título - Desenho sobre papel, de Louise Bourgeois  (Paris), 1947

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Domingo, 29.03.09

um.desenho.por.semana.15

09.março.semana - 04

 

 

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O corpo não importa, só a alma

A alma ou a vida
 
Ferreira Gullar
 
O Papa Bento 16, na viagem que fez recentemente à África, declarou que o uso de camisinha na relação sexual não resolve o problema da Aids, mas, pelo contrário, pode até agravá-lo. A solução estaria na abstinência sexual e na fidelidade matrimonial.
 
Essa declaração foi feita semanas depois que o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos responsáveis pelo aborto de gêmeos numa menina de nove anos, que fora estuprada e engravidada pelo padrasto. Os médicos tomaram aquela decisão, autorizados pela mãe da menina, após concluírem que seu corpo não tinha condições de levar adiante a gestação: havia risco de vida para ela e os fetos. Além disso, agiram dentro da lei brasileira que permite o aborto quando a gravidez decorre de estupro. Nada disso evitou que o arcebispo os condenasse, juntamente com a mãe da menina, às chamas eternas do Inferno.
 
Essa decisão do arcebispo pernambucano causou espanto e revolta em muita gente, que viu nela uma manifestação de atraso e intolerância. Não obstante, em um primeiro momento, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, bem como o Vaticano, apoiaram a decisão do arcebispo. Por que? Serão todos intolerantes e retrógrados?
 
A questão não é bem essa. Tanto o arcebispo quanto as entidades referidas não fizeram mais que obedecer a um dogma da Igreja Católica. O arcebispo alegou que o aborto é um pecado muito grave porque atenta contra a vida e um dos princípios da Igreja é o respeito à vida: "Não matarás". Foi mesmo por essa razão que ele excomungou os médicos e a mãe da menina? Não, não foi. É que o problema não é tão simples assim.
 
Já me referi, nesta coluna, a propósito da polêmica em torno das células embrionárias, à visão de Santo Agostinho acerca do pecado original que, segundo ele, só pode existir se, já no momento da fecundação, estiver ali a alma. Sim, porque o pecado é da alma, não do corpo. É essa visão que explica a atitude da Igreja quando, na Inquisição, mandou queimar vivos os pecadores, para salvar-lhes a alma. Noutras palavras, o que importa não é a vida do corpo mas a pureza da alma que, livre dele, iria talvez para o Paraíso ou o Purgatório.
 
Sei que estou me metendo em funduras e, se estiver equivocado, que me desculpem. Nada tenho contra a Igreja Católica, que desempenha inestimável papel na sociedade, dando amparo espiritual e material a milhões de pessoas. Mas isso não me impede de tentar compreender uma questão que interessa também a milhões de pessoas.
 
O arcebispo afirmou que excomungou os médicos porque eles eliminaram duas vidas humanas (as dos fetos), atentando assim contra um princípio básico da Igreja. Mas, se se trata, efetivamente, de respeitar a vida, porque não optar por salvar a da menina, posta em perigo por uma gestação anômala, inviável numa criança, cujo corpo não estava pronto para ela? Por que optar pela vida duvidosa de dois fetos que pouca possibilidade tinham de nascer?
 
A explicação não está em nenhum argumento razoável e, sim, no dogma. A mesma crença que faz a Igreja se opor ao uso científico das células embrionárias - porque no embrião está uma alma - coloca-a contra o aborto, em toda e qualquer circunstância. Trata-se de salvar a alma, não a vida. A alma que, a rigor, não se sabe se existe, e que, para os antigos gregos, "pneuma", ou seja, ar, sopro.
 
Essa mesma explicação nos ajuda a compreender por que o papa se opõe ao uso da camisinha nas relações sexuais, quando é evidente que esse uso evita a contaminação pelo vírus HIV, de consequências mortais. Que mal há em usar camisinha? Não pode haver, na Bíblia, nenhuma condenação explícita a seu uso, uma vez que ela é uma invenção do século 20.
 
Não obstante, essa condenação tem raízes nas Escrituras, na teoria do pecado original, dogma fundamental da Igreja. Esse pecado, praticado por Adão e Eva, foi tão grave que dividiu o mundo em duas "cidades": numa reinaria Deus e, na outra, Satã. Como, porém, sem a relação sexual, a humanidade se extinguiria, a Igreja teve que admiti-la, desde que dentro do matrimônio, por ela consagrado. Por isso mesmo, o sexo só pode ser praticado visando à procriação, não o prazer. Aliás, o prazer, que o ato sexual provoca nos que o praticam, mancha-lhes a alma. Ora, quem usa camisinha não está querendo procriar, mas apenas sentir prazer, o que a Igreja não permite, mesmo porque, quem assim age, incorre em grave pecado, entrega a alma ao Diabo. É, portanto, para salvar-lhe a alma que a Igreja proíbe a camisinha, embora sabendo que, com isso, o expõe ao vírus mortal da Aids. Ela quer salvar a alma (que é divina) não a vida (que é humana).
 
 
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL 
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Sábado, 28.03.09

Poetinha...lembraram de você

Poemas, Sonetos e Baladas  - Vinicius de Moraes
 
Paulo Rodrigues Ferreira 
 
Nascido em 1913, no Bairro da Gávea, Rio de Janeiro, poeta lírico notável pelos sonetos, músico, diplomata, jornalista, crítico de cinema, fumador inveterado, amante do whisky, Vinicius de Moraes, o «poetinha», leva uma vida recheada de muito trabalho e, principalmente, de muito prazer.
 
 
Formado em Direito, em 1938 recebe uma bolsa do Conselho Britânico para estudar literatura inglesa na Universidade de Oxford. A partir de 1945, começa a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores. Nos anos 50, com trabalhos diplomáticos em Paris e Roma, relaciona-se com Sérgio Buarque de Hollanda. Em 1954, publica uma colectânea de poemas que intitula de Antologia Poética e dá vida à peça de teatro Orfeu da Conceição.
 
Em 1956, começa a trabalhar com Tom Jobim para musicar a sua peça. Os dois viriam a compor canções como «Se todos fossem iguais a você», «Um nome de mulher», «Mulher sempre mulher», «Eu e você», «Felicidade», «Chega de saudade», «Eu sei que vou te amar» ou «Garota de Ipanema».
 
Conhecido como um dos fundadores da Bossa Nova, viria ainda a colaborar com Baden Powell, Carlinhos Lyra, Chico Buarque ou Toquinho. Vinicius recebia as suas visitas na banheira, onde gastava os dias. Dos seus (diferentes) amigos, destaque-se alguns nomes: Orson Welles, Tommy Dorsey, Louis Armstrong, Carmen Miranda, Sara Vaughn ou Pablo Neruda. Da banheira, chega-se às mulheres. Acreditando no casamento, o poetinha desposa nove mulheres: Tati, Regina, Lila, Lucinha, Nelita, Cristina, Gesse, Marta e Gilda.
 
Poemas, Sonetos e Baladas, também conhecido como Encontro do Cotidiano, seria originalmente publicado pela Editora Gaveta em 1946, com 22 desenhos de Carlos Leão. O que une os poemas presentes neste livro agora reeditado pelas Edições Quasi é o lirismo. E a ideia de morte, de fim.
 
A morte é a mais esperada, «os homens matam a/morte por medo/da vida» (p.8), a morte é cruel, «aparece e leva/o homem sozinho, sem/amores para o chorarem/apenas ele envolvido pelo vento/ “num qualquer/ponto de treva”» . Na «Balada do Cavalão», o poeta fala da morte de uma filha: «Levou o anjo o outro anjo/Da saudade de ser pai/Susana foi de avião/com quinze dias de idade/Batendo todos os recordes!». Em «Canção», volta-se à menina fenecida: «De que eu não queira comigo/A primogénita em mim/A fria, seca, encruada/Filha que a morte me deu» .
 
À ideia de morte física, junta-se a morte dos sentimentos, do amor. A paixão pode salvar um homem da ruína: «Na sua tarde em flor uma mulher/Me ama como a chama ama o silêncio/E o seu amor vitorioso vence/O desejo da morte que me quer». Mas o amor, com as mulheres e a vida, é efémero, apaga-se. O final é trágico, não há esperança. O homem finalmente derrotado vai de encontro ao mar, ao infinito, e despedaça-se dentro da treva: «Para o silêncio onde o Silêncio dorme» .
 
Na «Balada do Enterrado Vivo», poema magistral pela forma como é descrita a sensação de uma criatura que quer fugir de dentro do caixão, o enterrado chega à conclusão de que não poderá chegar à morte de outra maneira que não seja morrendo.
 
Em «Lápide de Sinhazinha Ferreira», «A paixão é pouso/Que a treva não nega/A morte carrega/E o sono dá gozo» . O amor leva a uma ruptura. Se é céu, não deixa de ser treva, se é doce, amarga, e no final é sempre o sabor amargo que fica na boca: «Consolai-me as mágoas/Que não passam mais/Minhas pobres mágoas/De quem não tem paz/Ter paz…tenho tudo/De bom e de bem…/Respondei-me, sinos…/A morte já vem?».  A mulher que ama perdida na noite pode ser a morte que chega. Repetidas são palavras como angústia, trevas, solidão, tristeza, noite ou caminho.
 
Mas nem só de negro se enche Poemas, Sonetos e Baladas. Do meio da morte e dos desgostos amorosos, surge o sexo a trazer de volta o optimismo e uma inocência quase infantil. Se «Marina» se inspira numa paixoneta de Vinicius por uma filha de pescadores da Ilha do Governador, local que habitou durante a adolescência, em «Rosário» se descreveria a perda da virgindade de um rapaz de quinze anos com uma rapariga de vinte: «Toquei-lhe a dura pevide/Entre o pêlo que a guardava/Beijando-lhe a coxa fria/Com gosto de cana-brava./Senti, à pressão do dedo/Desfazer-se desmanchada/Como um dedal de segredo/A pequenina castanha/Gulosa de ser tocada». Veja-se como, através da utilização de lexemas como «dura pevide» ou «pequenina castanha», se entra na cabeça de um simples menino que descreve uma vagina.
 
Mas mesmo na meninice se percebe que o encontro é sempre distância, que o que nasce morre e que o que se aproxima se afasta. Pegando no «Soneto de separação», «De repente, não mais do que/de repente/Fez-se triste/O que se fez amante/E de sozinho o que se fez contente».
 
Poder-se-ia dizer que, pela falta de hedonismo, de voluptuosidade ou de sentido de humor, Poemas, Sonetos e Baladas não é o livro que mais reflecte a biografia do seu autor.
 
Não parece que estes poemas lúgubres tenham sido escritos em ambiente de banheira com água morna e whisky. Escrita em anos sombrios (Segunda Guerra Mundial), esta obra melancólica e triste reflecte o estado de espírito de um Vinicius de Moraes ainda jovem e, por isso, abalado com questões existenciais, entristecido com a fatalidade que se abateu sobre o ser humano ao vir ao mundo sob a forma de animal que nasce, que come, que defeca e que morre.
 
Poemas, Sonetos e Baladas
Vinicius de Moraes
Edições Quasi
2009
 
 
Paulo Rodrigues Ferreira - Publicado no blog Orgia Literária 
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publicado por ardotempo às 12:27 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 27.03.09

ArtenaRua-17

A crise derrubada sobre o cotidiano das pessoas

 

 

 

 

Homem no lixo - Imagem em adesivo, colada sobre um muro em Paris (Paris, França) 2009

Fotógrafo: Eric Tenin 

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Quinta-feira, 26.03.09

Elegâncias

Três Corvos
 
The Raven, de Edgar Allan Poe, um dos mais célebres poemas em língua inglesa, começa com esta estrofe:
 
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore –
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
"’T is some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door –
Only this, and nothing more."
 
Um livrinho recentemente editado pela Relógio d’Água (O Corvo), já na onda do bicentenário de Poe, oferece-nos as traduções do poema feitas por dois dos maiores escritores de língua portuguesa dos últimos 150 anos: Fernando Pessoa e Machado de Assis. Cotejar as duas versões não deixa de ser interessante, no que cada uma delas revela (ou não) da estratégia literária dos respectivos tradutores.
 
Eis a primeira estrofe segundo Fernando Pessoa:
 
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
 
E agora a versão de Machado de Assis:
 
Em certo dia, à hora, à hora,
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há-de ser isso e nada mais."
 
Não resisto a juntar uma terceira versão: a de Margarida Vale de Gato, no livro que vai ser lançado esta tarde. Ei-la:
 
Era o meio da noite sombria, fraco e lasso eu reflectia
Sobre os tomos singulares dos saberes ancestrais;
E com sono, cabeceando, eis que ouvi algo raspando,
Seco som, ténue, tocando, tocando à porta de fora,
Visita decerto seria, batendo à porta lá fora,
Isso só e nada mais.
 
 
Publicado por José Mário Silva no Blog Bibliotecário de Babel
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Câmera Especular

Faíscas
 
Luis Fernando Verissimo
 
Num livro chamado “Maomé e Carlomagno", publicado em 1939, o historiador belga Henri Pirenne dizia que as primeiras conquistas do mundo árabe/islâmico, a partir do sétimo século, tinham acabado com a unidade da civilização mediterrânea dominada pela Roma Cristã e propiciado a ascensão dos nórdicos, dos germanos e da França carolíngia – ou seja, dos ex-bárbaros.
 
As cruzadas para a liberação da Terra Santa do domínio árabe não foram mais do que manobras na guerra pela hegemonia num pretendido estado imperial europeu entre papas, príncipes e reis, e tiveram mais efeito na história da Europa do que sobre os árabes. E a expulsão dos árabes da península ibérica foi por uma igreja mobilizada e mobilizadora que depois não parou mais: a reconquista da Espanha foi o preambulo da conquista da América.
 
Portanto a atual intervenção explosiva dos islâmicos na nossa história faz parte de uma constante, a dos árabes como catalizadores dos destinos do Ocidente. O “choque de civilizações” do Samuel Huntington não seria uma metáfora apropriada para atual relação entre o Islã e o que o Immanuel Wallerstein chama de “pan-Europa”, ou o Ocidente. Mais certo seria falar num continuado atrito de civilizações do qual vez por outra salta uma faísca detonadora. Deveríamos o nosso mundo e seus sobressaltos a estas faíscas.

Metafísica difusa
 
Quem primeiro usou a palavra "ideologia" no seu sentido moderno foi Napoleão Bonaparte. Referia-se aos críticos do seu despotismo e defensores da democracia e chamou a ideologia de "metafísica difusa" que procurava fundamentar o governo em causas abstratas em vez de adapta-las "a um conhecimento do coração humano e das lições da História". A ela, segundo Napoleão, se devia "todos os infortúnios da França".
 
Desde então os liberais acusam os ideólogos da esquerda de desconhecerem a realidade dos desejos humanos e defenderem causas abstratas. Mas hoje, com a Crise, a esquerda tem todo o ditreito de adotar o julgamento de Napoleão e chamar os liberais de metafísicos difusos, ao desprezarem os fatos que desmentem sua ideologia. Com o liberalismo neo-clássico sendo desmoralizado a cada nova má notícia da economia mundial, a persistência da sua ideologia só pode ser atribuída a uma impermeabilidade dogmática maior do que jamais foi atribuída à esquerda.
 
 
© Luis Fernando Verissimo

 

publicado por ardotempo às 23:14 | Comentar | Adicionar

Será que é Arte?

Uma exposição de carros pintados

 

A mostra está atualmente em Nova York, ocupando luxuosamente o espaço expositivo de um Museu. Como já esteve no MASP em São Paulo há uns 15 anos atrás, talvez indevidamente, e apresenta uns carros de uma marca  famosa alemã que foram pintados por alguns artistas de renome, há bastante tempo.

 

 

É mostra de Arte de verdade? Já naquela época a pergunta de fazia necessária e urgente.

 

Ou terá sido sempre apenas uma melancolia tristonha, um ardiloso movimento de marketing, mostrando artifícios decorativos e estéreis aplicados sobre um suporte de carrocerias de automóveis - hoje em dia já meio antigos - peças da indústria de consumo e da obsolescência veloz, já ultrapassadas, que nem mais rodam pelas ruas e estão mais para o antiquariato de placa preta do colecionismo do que para a expressão de uma modernidade que, datada, se fez ultrapassar e enterrar, inevitavelmente?

 

O tempo desmascara as intenções.

 

A arte (?) ali proposta se mostra fúnebre, domesticada e artificialmente morna. Mas desde o princípio, essa proposta respirou apenas por aparelhos, impulsionada pela mídia de aluguel.

 

O que está errado no que ali se expõe? Primeiramente, a improvisação evidenciada nos trabalhos dos artistas que aderiram ao projeto mediante o apelo monetário pela encomenda do patrocinador interessado comercialmente no conjunto da mostra - evidentemente não houve a menor necessidade interna e espiritual para se realizar aquilo.

 

Em segundo lugar, a proposta é meramente decorativa e nem nesse aspecto se sai muito bem, superada que é pelos especialistas anônimos nessa "estética" automobilística, que produz sempre alguma coisa que se mostra mais interessante a cada dia - basta olhar para as ruas e em algum momento se vê passando algo mais criativo, mais bizarro ou engraçado. Mesmo assim isso também não é Arte...

 

A terceira abordagem equivocada está no público que comparece à mostra, que não é o público dos museus e o da cultura como interesse primordial - é o público que iria em massa a um Salão de Automóveis ou  a uma loja de carros para bisbilhotar as novidades e ver as ofertas.  Que sairá frustrado do Museu  por ver, nos dias de hoje, apenas umas velharias que não o interessam mais - desse modo nem para formar um novo público para a Arte essa mostra serve, como anteriormente já acontecera no MASP de São Paulo. Esse público comparece por curiosidade pelas notícias veiculadas, pelo anúncio publicado pela fábrica, observa aqueles carros antigos, vai embora e não retorna nunca mais. Não vê as mostras que estão ao lado, nos outros andares, tampouco se interessa pelo acervo do Museu.

 

A propósito, por onde estarão aqueles aviões a jato, de viagens intercontinentais, concebidos por Calder há uns 30 anos atrás? Eram bonitos, eu os vi pousando algumas vezes no aeroporto de São Paulo... Quem os viu recentemente?  Foram colocados em algum museu? Ou simplesmente viraram sucatas, foram vendidos como ferro velho e sumiram da memória coletiva da Arte, como obras pensadas apenas para serem efêmeras?

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Quarta-feira, 25.03.09

Árvores

Desenhos 

 

 

César, desenho sobre papel (Marselha, França), 1977

 

 

 

Daniel Buren, desenho sobre papael (Paris, França), 1985

 

 

 

Keith Haring, desenho sobre papel (Nova York, Estados Unidos), 1986

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publicado por ardotempo às 11:37 | Comentar | Adicionar

Antídoto

Lá vem lobo!
 
José Saramago
 
A história, em geral contada pelo avô da família, era infalível nos serões da província, não como simples divertimento dos inocentes infantes, mas como peça fundamental de um bom sistema educativo, precursora, de alguma forma, do juramento com que as testemunhas se comprometem, ou comprometiam, a dizer a verdade, toda a verdade e só a verdade. A dúvida que aí deixo resulta apenas do facto de não ser frequentador de tribunais, a minha curiosidade sobre as diversas manifestações da natureza humana não me incitou nunca a meter o nariz na vida alheia, mesmo tratando-se do maior criminoso do século. Feitios.
 
Ora, o que na história do avô se contava era que um pequeno pastor de ovelhas, talvez para entreter as suas solitárias horas no monte, decidiu um dia gritar que vinha o lobo, que vinha o lobo, em modo tal que a gente da aldeia, armada de chuços, cachaporras e algum bacamarte da penúltima guerra, saiu em tromba para defender as ovelhas e, de caminho, o zagal que as guardava. Afinal, não havia lobo, tinha fugido com os gritos, disse o moço.
 
Não era verdade, mas, como mentira, parecia bastante convincente. Satisfeito com o resultado da mistificação, o nosso pastor resolveu repetir a graça e, uma vez mais, a aldeia acudiu em peso. Nada, de lobo nem cheiro. À terceira vez, porém, ninguém moveu um pé da sua casa, estava visto que o zagal mentia com quantos dentes tinha na boca, que grite, já se cansará.
 
O lobo levou as ovelhas que quis, enquanto o moço, empoleirado numa árvore, assistia impotente ao desastre. Embora o tema de hoje não seja esse, vem a pêlo recordar as vezes que muitos de nós também gritámos que vinha o lobo. Foram muitos mais os que negavam que o lobo viesse, mas afinal veio e trazia uma palavra na coleira: crise.
 
Vamos a ver o que se passará depois da recente notícia de que são muitos, muitíssimos, os portugueses que decidiram aprender espanhol e tomam muito a sério a decisão. Temo, porém, que os patrioteiros do costume comecem a gritar por aí que vem o lobo. De acordo que alguma coisa vem, e essa é necessidade de aproximação dos povos da península, este de cá e os outros de lá. A História, quando quer, empurra muito.
 
 
José Saramago - Publicado em O Caderno de Saramago

 

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Domingo, 22.03.09

Cliente ideal nunca fica doente

A saúde nos planos de saúde
 
Ferreira Gullar
 
Quando digo acreditar que o capitalismo não morre, estou na verdade repetindo Karl Marx, com uma diferença, porém: para ele, como o capitalismo sai de cada crise mais vigoroso ainda, a única força capaz de liquidá-lo é a classe operária, por ele apelidada de "coveiro do capitalismo". Como, a esta altura, a classe operária está noutra, fico só com a primeira parte da tese marxista: por si, o capitalismo não morrerá nunca.
 
Não estou afirmando que isso é bom ou ruim. Independentemente do que pensemos, a verdade é que o capitalismo, como planta daninha, vai se alastrando, tomando o terreno, trepando pelos troncos, sugando a seiva das árvores. Nada o detém, a não ser a sua própria voracidade, que o deixa, subitamente, sem chão e água. Aí, começa a murchar, a mixar, recuando até o ponto em que possa voltar a crescer. Como toda a sociedade depende dele, o próprio Estado lança mão de tudo para salvá-lo, com a aprovação de todos, particularmente dos trabalhadores que necessitam dele para ter emprego e salário. E começa tudo de novo.
 
O capitalismo não foi inventado por teóricos, nasceu espontaneamente do processo produtivo, movido pela iniciativa dos indivíduos que queriam melhorar de vida, produzir, vender, comprar, investir. Como as pessoas têm capacidades desiguais, nesse processo uns se deram melhor que outros, sendo que alguns poucos se deram muito melhor que a maioria. Por isso, o capitalismo expressa a desigualdade que caracteriza as pessoas e até mesmo as agrava. A ganância legitima toda e qualquer iniciativa, sem levar em conta que consequências terá na vida dos demais.
 
Enriquecer, concentrar riqueza em poucas mãos, é próprio do sistema que, em certas circunstâncias, beneficia muito a uns poucos, enquanto ignora a precária situação de muitos. O socialismo foi inventado para introduzir, no processo econômico, a justiça, a igualdade, eliminando o capitalismo. Não o conseguiu. O jeito, então, é tentar melhorá-lo, já que é impossível acabar com ele. Sonho com um milagre: que o desenvolvimento tecnológico, fazendo com que as máquinas produzam sozinhas numa escala ilimitada - já que não recebem salário, não dormem e não tiram férias - e com isso seria inevitável a distribuição gratuita do que foi produzido. A acumulação de bens chegaria a tal nível que as mercadorias perderiam o valor e o mercado deixaria de existir...
 
Mas, até lá, os planos de saúde continuarão a nos cobrar pela vida. Não o fazem por mal, como vimos, pois é o capital que governa o capitalista ("O Capital", vol. 2, ed. Civilização Brasileira). Seu propósito é lucrar, promover o crescimento da empresa, custe o que custar (aos outros) e, se se trata de vender seguro saúde, há que curar as pessoas, gastando o mínimo possível. A bolsa ou a vida, diria eu, exagerando mas não tanto.
 
Os planos de saúde estão se tornando um problema grave para quem deles depende. A má fama do SUS -que obriga os pacientes a filas intermináveis e esperas frustrantes- faz com que as pessoas todas, com algum recurso, procurem os planos de saúde. Como os planos melhores são caros, surgem planos baratos que são verdadeiras arapucas: você paga a mensalidade, mas, quando procura o médico, descobre que ele já não atende porque o plano não o pagou.
 
Só que os problemas não ficam nisso, pois mesmo os planos mais caros têm se mostrado incapazes de atender seus clientes. É que esses planos aceitam mais clientes do que têm capacidade de atender. Entre os numerosos casos de que tenho conhecimento, o mais recente é o de uma amiga que sofreu fratura no pé, foi para uma casa de saúde e lá ficou durante três horas num corredor, gemendo de dor, sem que fosse atendida. A explicação da funcionária do hospital foi que o traumatologista estava atendendo a outro paciente. Já imaginou se mais alguém torce o pé naquele dia?
 
A situação pior é a dos idosos. Como adoecem com frequência, têm que pagar mensalidades altíssimas. Sei do caso de um senhor que, em pouco mais de um ano, teve sua mensalidade aumentada de R$ 1.200 para R$ 1.800. Queixou-se ao corretor, que lhe disse: "Eles estão aumentando exageradamente a mensalidade dos idosos para expulsá-los do plano". Tem lógica: clientes que adoecem com frequência dão pouco lucro ou, pior, dão prejuízo, e os planos de saúde estão aí para obter lucros. O objetivo principal é ganhar dinheiro, claro. O cliente ideal é o que não adoece. O nome do troço é "plano de saúde", não "plano de doença". O capital governa o capitalista e o resto...
 
 
 
 
 
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL
Fotografia de Eric Tenin

 

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Sábado, 21.03.09

Uma casa de outra época

Herança em livros
 
Andrei Netto
 
Ela tem 28 anos, é miúda de corpo e carrega no nome - Sylvia Beach Whitman - e nos ombros a herança do que muitos consideram o santuário da literatura de língua inglesa na França: a livraria Shakespeare and Company. Aberta em Paris em 1919 pela americana Sylvia Beach e fechada em 1941, o título Shakespeare & Co. voltou à fachada de uma loja, em 1962, depois que, em testamento, sua fundadora legou ao amigo George Whitman, pai da outra Sylvia - que assim a batizou em homenagem à livreira, usando inclusive o sobrenome famoso -, a grife de seu negócio pequeno, mas revolucionário: foi com o selo da Shakespeare & Co. que chegou aos leitores a primeira edição de Ulysses (1922), de James Joyce. Pudera: Joyce se tornara amigo de Sylvia Beach e não teve dúvida em levar-lhe os originais de seu romance avassalador depois que Virginia Woolf se recusara a publicá-lo na sua Hogarth Press (há quem diga que ficou desconcertada com o que leu).
 
Pelos corredores do estabelecimento passavam, com frequência, autores como Ernest Hemingway, T. S. Eliot e André Gide. A jovem Simone de Beauvoir era habitué e o músico George Gershwin também andou por lá. Em seu endereço atual - 37, rue de la Bucherie (originalmente ficava na Dupuytren e em 1921 se mudou para a Odéon) -, onde se ergue uma construção que abrigou, no século 16, um monastério, George Whitman, hoje com 95 anos, hospedou escritores, estudantes e aficionados por literatura em geral (deixando sempre disponíveis seis camas estreitas). Em seu modo de entender, para além de uma livraria, de uma editora, de um lugar, enfim, dedicado às letras, a Shakespeare & Co. deveria ser um espaço dedicado ao cultivo da convivência, do encontro entre pessoas. 
 
 
É essa cultura que torna a Shakespeare & Co. ainda hoje - contra todas as celebrações das megastores - uma referência literária na cidade, seja para quem é do ramo, seja para clientes eventuais. Entre as prateleiras da loja continuam a circular jovens escritores (ou candidatos a) - que, como sempre, conseguem passar um período hospedados no estabelecimento. 
 
O acervo, de 40 mil títulos, que ocupam os dois primeiros andares da Shakespeare & Co., é, de fato, extraordinário. Não bastasse a variedade e a qualidade dos livros, ainda se pode topar, a qualquer instante, com obras raras como a primeira edição de Lady Chatterley's Lover (1928), de D. H. Lawrence - evidentemente, invendável -, mas pode-se namorá-la à vontade. I
 
Nada disso, contudo, asseguraria à Shakespeare & Co. o posto que ocupa se, por trás da excelência de seu acervo e do glamour que envolve o estabelecimento não houvesse as figuras lendárias que a conduziram até recentemente - e Sylvia Beach Whitman tem a grave incumbência de substituir. É verdade que em dias e horários aleatórios, quando se sente mais forte, George Whitman desce as escadas - ele vive recolhido e quase inalcançável no terceiro andar da loja- e se mistura aos clientes, no que se transforma imediatamente num acontecimento. Reza a lenda que, vez ou outra, ainda se pode encontrar no meio de algum exemplar da livraria notas de 100 ou 500 francos com as quais Whitman costumava marcar a página em que parara sua leitura. Encontrá-las não é sorte grande nem traz, claro, nenhuma fortuna, já que o franco hoje só circula no imaginário dos mais saudosos. Achar uma dessas cédulas não atesta apenas a inclemência do tempo, que corrói até moedas fortes, mas também a longevidade de Shakespeare & Co. - para não falar do desapego material de seu proprietário.
 
A história do norte-americano Whitman, nascido em Salem, Massachusetts, em 1913, é contada com recortes de verdade comprovada e lendas que se perpetuam. Sua vida só mudou de rumo aos 33 anos, quando estava em Paris para trabalhar com órfãos de guerra e acabou se matriculando na Sorbonne para estudar civilização francesa. Nunca mais foi voltou para os Estados Unidos. Sobrinho-neto do poeta americano Walt Whitman, ele abriu em 1946 sua primeira livraria, a Le Mistral, que acabaria herdando o nome da Shakespeare & Co. A peregrinação diária de escritores, pretensos escritores, poetas beats e leitores à loja de George Whitman, que os acolhia com generosidade - em troca da hospitalidade, só exigia duas horas de trabalho no caixa e a leitura de um livro por dia, política que segue em vigor - chamou a atenção de Sylvia Beach. Em pouco tempo, ela já visitava Whitman com regularidade. O resto já se sabe. 
 
À primeira vista, as duas Sylvias parecem muito diferentes. Antes de mais nada, a filha de Whitman demonstra indisfarçáveis preocupações com a beleza. Ao deparar com o repórter do Estado, ela pede dois minutos "para resolver uns problemas". Volta penteada e com os lábios vermelhos. "Ainda não penso em lançar novos autores. Neste momento, estou mais preocupada em reparar e preservar a loja, modernizá-la no que é possível - gestão de estoque, página de internet, festival literário", conta. "Aí, pouco a pouco, me sentirei mais confortável para editar" , diz a jovem, formada em história e teatro em Londres, sua cidade natal.
 
Não por acaso, em uma das paredes do estabelecimento se lê: "Be not inhospitable to strangers/ Lest they be angels in disguise" (em tradução livre: Seja hospitaleiro com os estranhos. Podem ser anjos disfarçados). Sylvia Beach Whitman, que não mora no ex-mosteiro, guarda, neste sentido, um saudável conservadorismo: "Sou sensível em minha preocupação de não alterar o equilíbrio e o estilo desta loja", diz a britânica. "Para mim, é a casa de alguém que vive em outra época."
 
Andrei Netto - Publicado em O Estado de São Paulo - Indicação do blog Verdes Trigos 
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08. Onde está o leitor? Onde está a leitora?

De livros e sua falta de leitura
 
Ivan Lessa
 
"Era uma manhã clara e fria de abril e os relógios soavam 13 horas".
 
Soavam, e não marcavam.
 
Alguém na distinta platéia reconhece este início de romance tido como um clássico moderno? Alguém no Reino Unido? Não. Pouquíssima gente.
 
Trata-se da primeira frase do romance 1984, de George Orwell. Isso. Aquele do "Big Brother". Todo mundo fala do livro, quase ninguém leu. Basta pensar nessa tolice inominável televisiva que varre o mundo: a casa do Big Brother.
 
Quem bolou foi um holandês. Dada a nacionalidade, daria para entender a falta de intimidade com o livro. O Big Brother de Orwell, afinal, é o representante de uma sociedade totalitária onde todos os cidadãos são observados 24 horas por dia. Para conferir que não estejam fazendo besteira. Caso estejam, prisão e tortura, para eles. Tortura ainda que psicológica. Pura "ditabranda", como está sendo dito por aí. Hoje em dia, Big Brother é adotado em "n" países e passou a ser conhecido por suas iniciais: BB5, BB9 e assim por diante.
 
Não era bem o que Orwell tinha em mente.
 
Quinta-feira, 5 de março, comemorou-se aqui no Reino Unido o que chamaram de "Dia Mundial do Livro". Os relógios também soaram 13 horas. Uma pesquisa foi encomendada com o objetivo de se saber quem lê e quanto lê. Mas lê mesmo. Afinal de contas, os britânicos, com seus mais de 200 mil títulos novos de livros publicados todos os anos, são tidos como um dos povos que mais lê no mundo. Duro acompanhar esse montão.
 
O questionário deixou claro que tem gente mentindo para valer. O que é um fenômeno mundial. Vamos dar uma espiada no que foi encontrado.
 
Perguntados se já haviam se gabado de terem lido um livro quando na verdade não tinham, 65% disseram que sim, que mentiram. Ao menos, com o anonimato garantido de uma pesquisa, não enganaram. 42% admitiram que, apesar de nunca terem sequer aberto o 1984 de Orwell, faltaram com a verdade com o intuito de impressionar alguém.
 
Na lista das inverdades literárias, segue-se o Guerra e Paz, de Leão Tolstói, com 31% na escala de mendacidade. 33% juraram de pés juntos que nunca passaram perto de uma falsidade livresca: leram tudo que disseram que leram.
 
Outros livros que se prestaram a uma enganação literária: Madame Bovary, de Flaubert. Os ímpios bateram ponto e bateram feio: a Bíblia não foi lida. Folheada, com boa vontade. Dom Quixote, lá fez sua triste figura. Os chamados populares Thomas Hardy, Dickens e Anthony Trollope? Hum. Sérias dúvidas no ar.
 
Deixando as hipocrisias para lá: o pessoal lê mesmo são os livros de Harry Potter e do John Grisham. Mais Sophie Kinsella e Jilly Cooper. A primeira, nunca ouvi falar. A segunda, conheço de vista. 99% de mim mesmo não está faltando com a verdade.
 
Façamos a ponte aérea e partamos para o Brasil, sempre uma viagem agradável. Mesmo tendo apenas umas 3000 livrarias em todo o país, menos do que em Lisboa, com suas 4000, incluindo os alfarrabistas (é sebo, gente), nós não lemos nada. Paulo Coelho, talvez. Jorge Amado, capaz, bem capaz. Os Sertões? Machado de Assis? Graciliano Ramos? Clarice Lispector? Tenho sérias dúvidas. Uns poucos são capazes de citar algumas linhas - sempre as mesmas - de Carlos Drummond e outras de Vinícius, principalmente se tiveram sido musicadas. Paremos por aqui.
 
Desconfio até mesmo da leitura de Paulo Coelho, que é mais lido na França, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e nos Emirados Árabes. Nossos quase que 200 milhões de leitores em potencial? Sei não, sei não.
 
 
É conhecida a história de que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões, e foi logo, tal como hoje em dia, chamado de "gênio da raça". Um ano após sua publicação, se esquecera de que era seu autor. Perguntado se lera Os Sertões, Euclides invariavelmente respondia, "Quê, Quem?".
 
Ivan Lessa - Publicado no blog BBC Brasil
publicado por ardotempo às 15:49 | Comentar | Adicionar

um.desenho.por.semana.14

09.março.semana - 03

 

 

 

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Navio quebra-gelo

Yann Arthus-Bertrand

 

 

Fotografia de Yann Arthus-Bertrand - Navio quebra-gelo em Nunavut (Canadá) 

 

© Yann Arthus-Bertrand

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Museu Imaginário

André Malraux

 

 

Fotografia - André Malraux e as fotografias para o Museu Imaginário - Fotografia de Maurice Jarnoux -  1947

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Fora de sintonia

Maioria dos portugueses são contra a reforma ortográfica
 
O acordo gerou vários movimentos contrários na sociedade portuguesa.
 
A maioria dos portugueses são contra a aplicação do acordo ortográfico e diz que não vai utilizar as novas normas, segundo sondagem realizada pela empresa Aximage, sob encomenda do jornal Correio da Manhã.
 
Segundo os dados da pesquisa, feita por telefone, 57,3% dos portugueses são contra as novas regras de ortografia e apenas 30,1% são a favor. O número dos que não são nem a favor nem contra chegou a 11% do total, enquanto 1,6% diz que não tem opinião a respeito. A reação maior é na utilização das novas normas, em que 66,3% afirmam que não vão utilizar as normas resultantes do acordo, enquanto 22,1% dizem que pretendem escrever da maneira prevista pelo acordo.
 
"É um processo. Ninguém será obrigado a escrever automaticamente dessa maneira. Haverá um período de adaptação", diz Rui Peças, assessor de imprensa do ministro da Cultura. Segundo ele, apesar da reação contrária, o processo vai continuar sem adiamento. Apenas 4,8% declararam não ter opinião a respeito dessa questão e 6,8% querem utilizar as normas do acordo só em alguns casos.
 
A maior percentagem dos que rejeitam o acordo está entre os jovens de 18 a 29 anos, faixa etária em que 65% não querem mudar a forma de escrever. Na faixa acima de 60 anos é a mais favorável, em que apenas 49,2% têm posição contrária ao acordo.
 
Os portugueses com formação superior têm maior aceitação do acordo, com 35% favoráveis às mudanças, enquanto no resto da população apenas 25,5% tem uma posição favorável. O anúncio de que o acordo seria aplicado gerou vários movimentos contrários na sociedade portuguesa.
 
Só na Internet, há três abaixo-assinados, um com 6.268 assinaturas, outro com 12.067 e o terceiro, encabeçado pelas figuras mais conhecidas do Movimento contra o Acordo reuniu até agora 101.784 assinaturas até 12 de março (data da última atualização).
 
O ministro da Cultura de Portugal, José Antônio Pinto de Lima, anunciou em fevereiro que pretende iniciar a aplicação do acordo ainda no primeiro semestre deste ano e que em 2010 já haverá instituições do Estado usando as novas normas.

 

Jair Rattner - Publicado no Blog BBC Brasil

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Sexta-feira, 20.03.09

Soburdinadas

Orações soburdinadas
 
António Lobo Antunes
 
 
Curioso como as pessoas que conheci de toda a vida não mudam nem por fora nem por dentro: para quê perguntar-te a idade se a sei perfeitamente, dez anos, onze no máximo
 
        - António
 
        e volto à infância. A minha prima Ana Maria, de braços abertos na rua
 
        - faço anos hoje não me perguntes quantos
 
        e não te pergunto quantos, foste tão importante para mim em pequeno. Eras mais velha que eu, levavas-me a correr de mão dada. O avô sentava-se numa cadeira de lona à entrada do jardim, fechava os olhos e tu coçavas-lhe a cabeça. Isto ao fim da tarde, ele de casaco de linho, depois do escritório. Tantos insectos naquele tempo, tantos canteiros, tantas flores. O teu irmão Quim Zé passeava-me na Vespa por baixo da janela de uma menina de oito anos por quem eu estava apaixonado. Tinha paciência para mim e foi morrer na guerra em Angola. Lembro--me da chegada do caixão à Estrela, com a bandeira por cima. Gostava do Quim Zé e da Ana e gostava do pai deles também, que tocava guitarra de Coimbra. Dava-se bem com o meu pai, eram casados com duas primas direitas. Falei à Ana na chegada do caixão do Quim Zé à Estrela, vai ela
 
        - Dizem que o teu pai era distante mas não era
 
        e pôs-se a contar que o meu pai abraçou o pai dela e depois lhe pegou na mão, a encostou à sua bochecha e lhe deu um beijo. Fiquei a olhá-la de cara à banda, nunca vi o meu pai ter manifestações dessas.
 
        - Juro-te que é verdade
 
        e eu parvo. Deve ser, a Ana Maria nunca me mentiu. O meu pai nasceu daqui a oito dias, este é um mês amargo: demasiadas dores. Eu cá me entendo.
 
        Curioso como as pessoas que conheci de toda a vida não mudam por fora nem por dentro: para quê perguntar-te a idade se a sei perfeitamente, dez anos, onze no máximo. Maravilhado a ver-te tocar piano eu que sempre tive dedos piores que salsichas, gordos, inúteis. O corpo magro e os dedos gordos: das duas uma, ou o corpo ou os dedos são postiços. Ou então é tudo postiço e sou outro que não sei onde pára. No caso de ser outro que corpo tem o outro, que dedos? Sinto-me bem nesta casa: livros, quadros, pouco mais. Devo ter herdado esta nudez do meu pai, este desinteresse pelas coisas, morar entre objectos imediatamente úteis. E preciso que o mundo esteja ordenado porque a minha cabeça é um cafarnaum, um sótão cheio de tralha inútil. Com essa tralha inútil faço os livros, vou alinhando o que os outros não querem páginas fora. Na época em que me levavas a correr de mão dada, Ana Maria, não escrevia ainda. Ficava a pensar na morte da bezerra. Mesmo hoje, nos intervalos dos livros, penso na morte da bezerra ou seja não penso em nada, espero. A Vespa do Quim Zé despenteava-me e eu com medo que a menina ficasse mal impressionada comigo. Nunca a vi na janela. O Quim Zé
 
        - Queres que pare?
 
        e não valia a pena parar porque não reparava em mim. O que lhe terá acontecido?
 
Casou? Teve filhos? Ou continua no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma? Deve continuar no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma, porque carga de água havia de me ligar? Ligava o professor
 
        - Escreve aí no quadro uma oração subordinada
 
        e deu-me um estalo porque escrevi soburdinada. Até hoje acho soburdinada mais bonito.
 
O professor era uma besta de violência, distribuía chapadas pela aula e eu queria ficar grande num instante para lhe aplicar uma sova. Quando fiquei grande procurei-o na lista telefónica para lhe devolver os estalos: nunca o encontrei e ninguém sabia dele. Nos intervalos de bater tirava pêlos do nariz ou mandava-nos comprar-lhe cigarros. Oxalá tenha tido uma morte macaca. O apagador de giz voava, direitinho à gente, chamava-se senhor André e o cão dele, um infeliz como nós, Pirata. O cão não escrevia no quadro orações subordinadas mas, tal como nós, comia pela medida grande, pontapés atirados com alma. Uma tarde o pai de um aluno foi à escola e enfiou um murro no senhor André, não tenho presente agora se no nariz de onde ele tirava os pêlos. Era careca e com patilhas, disso recordo-me. Recordo-me igualmente do ar sofrido da mulher. A escola ficava ao pé de um caneiro de que saíam vapores nauseabundos e, no inverno, ratos a trotarem lá em baixo, nas pedras, enormes.
 
        - Estás a pensar na morte da bezerra, tu?
 
        - Não, senhor André
 
        - Então vem aqui ao quadro escrever uma oração subordinada.
 
        Tudo isto me regressou, num vómito instantâneo de imagens, mal a minha prima Ana Maria
 
        - António
 
        de braços abertos na rua, mais baixa que eu, que esquisito. Os olhos dela iguaizinhos, redondos, uma festa que me soube tão bem na cara. Depois acenámos adeus e fui-me embora. Entrei no carro, vim para aqui fazer isto. Acabei o livro, estou vazio. No meio da prosa chegam traduções minhas em grego que a agência mandou por esses correios especiais em que a gente tem de assinar um papel. Assino sempre na linha errada e o empregado diz sempre
 
        - Não faz mal.
 
        Desta foi em grego, da última em macedónio ou polaco. E aparece logo o senhor André a anunciar aos gregos, aos macedónios, aos polacos
 
        - Escreve soburdinada, o camelo
 
        num desprezo sem fim, e os gregos, os macedónios e os polacos a concordarem, escandalizados. Devem achar os estalos merecidos:
 
        - Soburdinada, que horror, anda a gente a publicar este artolas
 
e o artolas, distraído deles, a pensar na morte da bezerra. Não: o artolas, distraído deles, a respirar o vapor do caneiro, espantado com os ratos. Não: o artolas a hesitar como se acaba esta crónica. Não a acabes, artolas: fica assim. 
 
 
 
© António Lobo Antunes

 

publicado por ardotempo às 20:56 | Comentar | Adicionar

Blog do Noblat - 5º Aniversário

E assim se passaram cinco anos...
 
Ricardo Noblat 
 
É o início 
 
Bem-vindos ao meu blog.
---------------------------
Foi com a nota acima que este blog entrou no ar há exatos cinco anos, hospedado no portal do IG.
 
Até então eu nunca havia acessado um blog. Ouvia falar que blog era diário de adolescente.
O meu foi o primeiro blog de notícias políticas do país atualizado várias vezes ao dia.
No princípio serviu como espaço para despejo de notas apuradas no início da semana que envelheceiam antes do domingo, dia de uma coluna sobre política nacional que publicava no jornal carioca O Dia.
 
Quando a coluna acabou em maio daquele ano, pensei que o blog deveria acabar também. Eu o via como um subproduto dela.
 
Cheguei a me despedir dos leitores do blog. Mas a pedido de alguns deles, mantive o blog à espera de  algum emprego em jornal, rádio ou televisão.
O emprego não apareceu.
 
Produzi de graça conteúdo para o IG até março do ano seguinte. Aí descolei uma grana para seguir fazendo o blog.
 
Em janeiro de 2006, o blog transferiu-se para o portal do jornal O Estado de S. Paulo. E dali a um ano para o portal do jornal O Globo.
 
Agradeço a todos que contribuíram para sua consolidação. Mas agradeço principalmente a vocês, leitores e aos comentaristas. É sério: eu me divirto e aprendo muito mais com vocês do que vocês comigo.
 
Considerem-se todos abraçados.
 
Ricardo Noblat - Publicado no Blog do Noblat
 
Blog do Noblat - O mais importante Blog de Política no Brasil
Sem diletantismo, sem amadorismo.
Números impressionantes.
(ARdoTempo)
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publicado por ardotempo às 20:22 | Comentar | Adicionar

Yann Arthus-Bertrand

A Terra vista do céu
 
Foi num fim de tarde do Verão de 2000, em Paris, que vi pela primeira vez as fotos de Yann Arthus-Bertrand. Era uma exposição no Jardim do Luxemburgo, ao ar livre, enormes fotos coloridas de manchas às vezes quase abstractas, penduradas no gradeamento, para serem vistas do lado de fora.
 
Os transeuntes deslizavam numa marcha silenciosa pelo passeio, hipnotizados pelas imagens, crianças puxavam os pais para lhes mostrar o que tinham visto mais adiante, grupos de pessoas paravam à frente de uma fotografia interrompendo o tráfego, envoltos num fascínio que a chuva miúda do fim do dia só conseguia ampliar.
 
 
 
 
 
As fotos da exposição pertenciam ao projecto "A Terra vista do céu", que tinha saído em livro há uns meses e que conheceria um êxito extraordinário em todo o mundo. Eram fotografias tiradas do ar mas muitas delas a baixa altitude, a partir de helicópteros e balões. E mostravam um planeta que, não sendo completamente desconhecido, se revelava dilacerantemente belo e tocantemente frágil, onde a perspectiva tornava surpreendentes as coisas mais familiares, com a terra e as plantas e a água e as casas a desenhar um mosaico de uma variedade e um colorido inesperado. Não eram apenas as grandes paisagens mas também as catástrofes naturais, os sinais da actividade humana, os campos e os jardins e os bairros mostrados de cima mas a uma escala humana, às vezes as próprias pessoas, acenando, uma caravana de dromedários lançando as suas sombras alongadas no pôr-do-sol, pessoas no meio de uma lixeira, tanques a enferrujar ao sol do Iraque.
 
O enorme livro, que o Scientific American dizia parecer mais uma coffee table que um coffee-table book, conseguiu o efeito que Arthus-Bertrand pretendia, um efeito semelhante àquela fotografia da Terra tirada do espaço na véspera de Natal de 1968, que nos mostrou sozinhos no espaço e que evidenciava tão claramente a nossa fragilidade e como as nossas disputas eram insensatas e mesquinhas.
 
Publicado no blog Arte Photographica 
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Quinta-feira, 19.03.09

Sentimento Moral

Resgatando Adam Smith
 
Luis Fernando Verissimo
 
Quando a nobreza parisiense perdeu a cabeça, literalmente, na Revolução Francesa as cabeleireiras da cidade ficaram sem emprego. Sua profissão, que incluía a montagem e manutenção de perucas, também fora guilhotinada. E foi a este contingente de desempregadas pela falta de cabeças que o barão Gaspard Riche de Prony recorreu quando inventou uma espécie de linha de montagem matemática para recalcular tabelas numéricas, já que a nova república adotara o sistema decimal. De Prony se inspirou em Adam Smith, que no seu "A riqueza das nações" descreve a divisão de trabalho numa fábrica de alfinetes.
 
As moças recrutadas pelo barão só precisavam saber somar e subtrair, a inteligência estava na organização do seu trabalho, que lhes permitia fabricar logaritmos como alfinetes. Quando o matemático inglês Charles Babbage visitou a "fábrica" de de Prony em Paris se deu conta que as cabeleireiras podiam ser substituídas pelos dentes de uma engrenagem, e uma máquina podia fazer o mesmo trabalho. E inventou o que chamou de "Difference Engine", o primeiro calculador mecânico bem sucedido (máquinas de calcular rudimentares tinham sido boladas, por Pascal e Leibniz entre outros, desde o século 17). Assim, nas origens do computador moderno - está o Terror.
 
Pode-se especular o que se originará da Crise que nos assola. Também teremos multidões de desempregados, mas com poucas chances de serem aproveitados em alguma nova tecnologia, como as cabeleireiras da França. Não haverá investimentos em novas tecnologias. É pouco provável que a Crise produza algum tipo de bonapartismo salvador como a revolução, mas é possível que o clima político que virá lembre o da restauração pós-Bonaparte, a nossa frustração com o fracasso do socialismo e agora com esse vexame do capitalismo imitando o desencanto com a promessa libertária esgotada da revolução.
 
Naquela época o espirito da Restauração também determinou uma mudança no pensamento econômico. Adam Smith, cuja obra antes de "A riqueza das nações" podia ser confundida com pregação reformista (ele era invocado até por Tom Paine, um dos teóricos da Revolução Americana) e incluía uma “Teoria do sentimento moral” passou a ser visto como profeta da economia como uma ciência moralmente neutra e um herói da reação, como é até hoje. Ou era até ontem. Talvez um dos efeitos da Crise seja o resgate do Adam Smith da primeira fase.
 
Nos discursos feitos hoje contra os desmandos do capital financeiro que deram na Crise não se ouve outra coisa a não ser repetidos apelos pela volta do sentimento moral.
 
© Luis Fernando Verissimo
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Paisagem com cordeiros

Fotografia

 

 

Mário Castello - Mont Saint-Michel com cordeiros (França)  - 2006 

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Quarta-feira, 18.03.09

Anônimo Noturno

Anônimo Noturno

 
 
 
 
As unhas rasparam a porta no meio da noite. Um som incomum, inesperado. 
 
RRRRRRR. RRRrrrrrrrrrrrrr. RRRRRRRR.
 
Flávio Aurélio esperou, no escuro, no outro lado da porta, no interior do apartamento, para ver, ou melhor, para ouvir se a coisa se repetiria. Coisa de filme de suspense, porque não soaram  a campainha? Bem, isso seria impossível, a campainha estava estragada mesmo ou nunca fôra ligada naquele apartamento. Não existindo essa possibilidade, tinha que ser assim, com batidas convencionais na porta ou esse surpreendente e novo rascar de unhas, no meio da madrugada.
 
O cara, Flávio, no escuro absoluto, esperou em silêncio até que o som se repetisse. 
 
RRRRRRRR. RRRrrrrrrrrrrr. RRRRRRRRR. 
 
Flávio girou a chave, na escuridão da noite e na loucura do seu espírito. O som das linguetas metálicas ressoou  com  ecos nos corredores do edificio, às escuras na madrugada. O interruptor temporizado da iluminação de segurança do andar não tinha sido acionado.
 
Ele entreabriu a porta na escuridão, sem acender a lâmpada da sala. A  silhueta, o calor do vulto, o perfume de bom gosto, sutil mas suficientemente insinuante, passaram por ele, roçando-lhe de leve a tangência da pele, entrando e dominando o espaço da sala. 
 
Flávio não tivera temor e sim uma excitação instantânea. Compreensível. O perfume da moça causara um efeito promissor e ele deixara-se levar.
 
Ele conseguiu distinguir no escuro acomodado de cinzas e negros de veludo, o contorno definido do corpo da mulher, aspirou com prazer seu perfume, percebeu o seu hálito rescendendo a hortelâ. Tentou mas não reconheceu no primeiro instante a figura da memória, a da moradora vizinha que vira várias vezes no imenso estacionamento do conjunro de prédios onde morava, manobrando o chamativo carro preto, com  quem ele nunca tinha conversado ou trocado qualquer frase mais longa, além de uns miseráveis cumprimentos rápidos e formais. Não a conhecia nem sabia seu nome. Nunca viria a sabê-lo.
 
Ela nada falou. Não precisava, qual seria a justificativa para entrar assim  no meio da madrugada, no apartamento de um cara desconhecido, que vinha observando a algum tempo, nas entradas e saídas do estacionamento, algumas vezes subindo juntos no elevador, cumprimentos superficiais, olhares nem tanto?  Ela sabia o nome dele, Flávio Aurélio, descobrira de algum jeito, com os porteiros, com a síndica, com algum outro vizinho, sabia alguma coisa dele, inclusive o que ele fazia. Mulheres são metódicas e costumam ir mais fundo nas suas investigações  e, principalmente, nos alvos de sua curiosidade.
 
Ele a enlaçou com firmeza, segurando pela cintura e beijou-a. Ela correspondeu prontamente e Flávio começou imediatamente a tirar-lhe a roupa, surpreendedo-a pela rapidez da segunda iniciativa, essa agora dele, enquanto giravam lentamente no meio da sala, beijando-se com os olhos fechados na escuridão, olhos que poderiam até estar abertos mas que nada veriam, valiam-se naquele instante da visão do tato, esparramando-se em queda lenda sobre o sofá e pelo chão, no tapete persa, de nós apertados.
 
Ele percebeu que ela bebera um tanto de algum álcool espirituoso, talvez um licor, pelo fundo de sua alma no momento do beijo, enquanto ele, a sua vez, estava completamente sóbrio.
 
Essa seria uma característica comum a todos os encontros futuros, não muitos, jamais marcados previamente mas de lembrança irremovível. Daí em frente, ele manteria uma garrafa de vinho tinto de boa marca sempre ao alcance do braço, uma garrafa de uísque escondida e um champagne prestes a mergulhar na geladeira. Ele não poderia saber nunca o momento em que ela arranharia a sua porta.
 
 
Extraído do conto Anônimo Noturno, de A Fenda (contos)
© Alfredo Aquino - A Fenda - Iluminuras, 2007

 

publicado por ardotempo às 11:54 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Natureza Viva

Fotografia

 

 

Fotografia de Piotr Fajfer (Polônia), 2009

Publicado no blog Arte Photographica

publicado por ardotempo às 03:27 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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