Terça-feira, 24.02.09

Carta, de Saramago

Diz-se que o Carnaval é uma festa destinada a desaparecer. O que se vê , na realidade, é que o povo, sempre que se regojiza, faz carnaval. De modo que o carnavalesco, que é o especificamente popular de toda a festa, não mostra indícios de que vá se acabar. E desde o ponto de vista mais aristocrático, tampouco o Carnaval desaparece. Porque o essencial carnavalesco não é o de mascarar-se, e sim o de abolir-se a face. E não há ninguém tão bem resolvido com a sua própria face que não deseje estrear uma outra, num certo momento.” - Antonio Machado

 
Carta a Antonio Machado
 
José Saramago
 
Antonio Machado morreu hoje há setenta anos. No cemitério de Collioure, onde os seus restos repousam, um marco de correio recebe todos os dias cartas que lhe são escritas por pessoas dotadas de um infatigável amor que se negam a aceitar que o poeta de “Campos de Castilla” esteja morto. Têm razão, poucos estão tão vivos. Com o texto que se segue, escrito por ocasião do 50º aniversário da morte de Machado, e para o Congresso Internacional que teve lugar em Turim, organizado por Pablo Luis Ávila e Giancalo Depretis, tomo o meu modesto lugar na fila.
 
Uma carta mais para Antonio Machado.
 
Lembro-me, tão nitidamente como se fosse hoje, de um homem que se chamou Antonio Machado. Nesse tempo eu tinha catorze anos e ia à escola para aprender um ofício que de pouco me viria a servir. Havia guerra em Espanha. Aos combatentes de um lado deram-lhes o nome de vermelhos, ao passo que os do outro lado, pelas bondades que deles ouvia contar, deviam ter uma cor assim como do céu quando faz bom tempo.
 
O ditador do meu país gostava tanto desse exército azul que deu ordem aos jornais para publicarem as notícias de modo que fizessem crer aos ingénuos que os combates sempre terminavam com vitórias dos seus amigos. Eu tinha um mapa onde espetava bandeirinhas feitas com alfinetes e papel de seda. Era a linha da frente. Este facto prova que conhecia mesmo Antonio Machado, embora sem o ter lido, o que é desculpável se levarmos em conta a minha pouca idade. Um dia, ao perceber que andava a ser ludibriado pelos oficiais do exército português que tinham a seu cargo a censura à imprensa, atirei fora o mapa e as bandeiras. Deixei-me levar por uma atitude irreflectida, de impaciência juvenil, que Antonio Machado não merecia e de que hoje me arrependo.
 
Os anos foram passando. Em certa altura, não me lembro quando nem como, descobri que o tal homem era poeta, e tão feliz me senti que, sem nenhuns propósitos de vanglória futura, me pus a ler tudo quanto escreveu. Por essa mesma ocasião, soube que já tinha morrido, e, naturalmente, fui colocar uma bandeira em Collioure. É tempo, se não me engano, de espetar essa bandeira no coração de Espanha. Os ossos podem ficar onde estão.
 
© José Saramago - Publicado no Blog O Caderno de Saramago
publicado por ardotempo às 23:36 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

No ateliê de Siron Franco

Siron Franco e o lobo-guará

 

 

 

Fotografia de Pierre Yves Refalo

publicado por ardotempo às 13:31 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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