As Cidades Invisíveis

As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino
 
Enzo Potel
 
Imagine um rei, dono de uma das maiores extensões de terra no planeta, que ia do Irã até a Coréia do Norte, pegando Rússia e Vietnã, atravessando toda a China. Pode imaginar esse rei nos dias de hoje se quiser. Agora imagine um homem que conhece tudo isso, e que começa a contar ao rei o que existe intimamente na vastidão daquilo tudo que o rei acha que possui. Abra um atlas de sonho com As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Calvino inventa cinqüenta e cinco cidades que estão sendo descritas pelo viajante Marco Pólo ao imperador da antiga Tartária, Kublai Khan, em meados do século XII. E como ele nunca conhecerá as cidades, porque Marco não colocaria uma pitada de invenção nessas narrações?
 
 
Para isso, Calvino resgata genialmente a técnica de filósofos medievais que usavam cidades para estudar o ser humano; só que em As Cidades Invisíveis elas são absurdas, metafóricas e amáveis: feitas para entrarem no peito de Kublai. Somente com a ilógica da cidade é que Calvino toca na lógica do humano.
 
A cidade de Sofrônia, por exemplo, é metade circo, metade normal; mas chega uma época do ano em que meia cidade terá de ir embora. “Assim, todos os anos chega o dia em que os pedreiros destacam os frontões de mármore, desmoronam os muros de pedra, os pilares de cimento, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, carregam os guinchos para seguir de praça em praça o itinerário de todos os anos.
 
Permanece a meia Sofrônia dos tiros-ao-alvo e dos carrosséis, com o grito suspenso do trenzinho da montanha-russa de ponta-cabeça, e começa-se a contar quantos meses, quantos dias se deverão esperar até que a caravana retorne e a vida inteira recomece”.
 
Embora o livro seja uma compilação de textos, o que afasta muitos leitores tradicionais, todas as narrativas mantêm um padrão de qualidade altíssimo, sucinto e lírico. As cidades estão subdivididas em capítulos, e entre os capítulos Calvino nos mostra como eram contadas e que tipo de experiência Pólo estava criando para um homem incapaz de viver experiências além da prisão de seu palácio.
 
 
Sabe-se que realmente Marco Pólo morou dezesseis anos na Tartária como emissário de Kublai, e que trazia a ele notícias dos confins. Só a viagem da casa de Marco (em Gênova, Itália) até o palácio de Kublai (em Ulaanbaatar, Mongólia) demorava dois anos a cavalo. E tudo isso está registrado pelo próprio Marco em O Livro das Maravilhas, que sem sombra de dúvida inspirou Calvino. O livro-documentário de Pólo perde lugar no espaço com o nascimento de As Cidades Invisíveis, mas conseguiu chamar a atenção do mundo há quase dez séculos com seus povos realmente fantásticos onde, por exemplo, numa pequena vila do oriente cada mulher que tinha uma relação sexual ganhava uma pedra arroxeada, e com elas montava seu colar. A mulher com mais pedras no colar era a mais disputada para casamento.
 
Ou quem sabe a caverna no Sri Lanka onde os moradores jogavam pedaços de carne no abismo, e os abutres que faziam ninho no lugar desciam para buscar, trazendo os bifes de volta à luz, repletos de diamantes.
 
O humanismo e a carga poética de As Cidades Invisíveis marcam qualquer leitor com propensão à universos fantásticos. Uma obra digna de cinema e uma audácia da literatura: fusão de conto, crônica, poesia, carta e diário. Insuperável.
 
Texto de © Enzo Potel - Publicado no Blog Orgia Literária
publicado por ardotempo às 15:28 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar