Domingo, 08.02.09

1+1+1+1=5

O outro
 
Luis Fernando Verissimo
 
"Quem é o terceiro que caminha sempre a seu lado?
Quando eu conto, há apenas você e eu juntos.
Mas quando olho adiante a estrada branca
Há sempre um outro caminhando ao seu lado
Envolto num manto marrom, encapuzado.
Não sei se homem ou mulher.
Mas quem é esse do seu outro lado?"
T.S. Eliot escreveu esta parte do seu poema "The waste land" baseado no relato de uma das primeiras expedições à Antártica, quando os exploradores no fim das suas forças tinham a constante ilusão de que havia uma pessoa a mais no grupo do que as que podiam ser contadas.
 
Quatro na mesa. Todos decididamente mais pra lá do que pra cá. Tinham combinado que pediriam a última rodada de chopes, porque o dono já ameaçava virar as cadeiras sem esperar que eles as desocupassem. Um deles chama o garçom e pede.
- Mais cinco. Para terminar.
 
O garçom vai buscar os chopes e os quatro ficam em silêncio. Até que um deles pergunta:
- Por que cinco?
- Um pra cada um, ora.
- Mas nós somos quatro.
- Como, quatro?
- Quatro. Um, dois, três, quatro.
- Você esqueceu de contar você mesmo.
- Esqueci não. Olhe só. Eu, um. Você, dois. Três e quatro.
- Assim não dá. Cada um grita um número. Eu sou um.
- Dois.
- Três.
- Dezessete.
- Mas o que é isso? Que dezessete?
- Não era para escolher um número?
- Sua besta. De um a quatro, ou cinco, para saber quantos nós somos.
- Mas isso é fácil. É só contar. Um, dois, três, quatro.
- Você contou você mesmo?
- Contei. Ou não contei? Não me lembro mais.
 
O garçom traz os cinco chopes.
 
- Tenho uma idéia - diz um deles. - Cada um toma o seu chope. Se sobrar um, é porque nós somos quatro.
Todos bebem. Um dos chopes permanece intocado. Os quatro ficam em silêncio, olhando o copo cheio.
 
Finalmente alguém diz:
- Viu? Nós somos quatro.
- Ou tem um quinto, mas ele não quer beber conosco...
Mais silêncio.
 
- Por que será?
 
Estão todos ainda olhando para o copo cheio, quietos e desconsolados, quando o dono vem virar as cadeiras.
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 20:01 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Museu Maillol - Paris - Avant-Garde Russa

Exposição

 

 

Mostra de desenhos, projetos, esboços, gravuras e pinturas da Avant-Garde Russa - Musée Maillol (Paris - França), 2009 

Fotografia: Eric Tenin

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publicado por ardotempo às 16:30 | Comentar | Adicionar

Mármore de Nelson Felix

Escultura

 

 

Vão - Nelson Felix - Escultura em mármore de Carrara,  tensores e cabos de aço, azeite no chão (São Paulo), 1996

publicado por ardotempo às 16:19 | Comentar | Adicionar

Jaguarão

Ir a Jaguarão e descobrir o resto do mundo.

 

Aldyr Garcia Schlee

 

Ir a Jaguarão não é fácil; mas compensa.
 
Antes, quando eu era um guri, ir a Jaguarão era voltar para casa: de trem, carro-motor, avião ou barco a vapor. Chegava-se (do Brasil ou do Uruguai) com o coração apertado pela magia do reencontro e o medo do desencontro, ao adivinhar os velhos telhados despontando entre campo e arvoredo; e logo logo, ao divisar o casario estendido igual dos dois lados do rio - a Ponte no meio -, com a esperança de que aqui e ali ainda estivessem bem resguardados todos os afetos recuperáveis a cada regresso.
 
Hoje não se vai nem se vem mais a Jaguarão num monomotor Focker, da Varig. O vapor “Cruzeiro” já não apita na curva do rio, trazendo-nos de Porto Alegre ou levando-nos a Pelotas. Os trilhos, aqui - ou sobre três quilômetros de ponte, Uruguai adentro -, enferrujam inúteis na falta dos trens Ganz-mávag que chegavam de Montevidéu duas vezes por dia; e na ausência do inesquecível carro-motor, que saía tlaquetlaqueando pelos campos planos, nos injustificáveis meandros de seu caminho de aço, rumo a Rio Grande.
 
Ir a Jaguarão tornou-se difícil? - perguntará o leitor.
 
Não! - respondo eu. Mas, como viagem, perdeu definitivamente o encanto. Vai-se e vem-se sem sobrevôo e sem aterrissagem, sem atracação e sem apitos, sem fiambres e sem vagão-restaurante, sem tlaquetlaques e sem bolos de coalhada.  Por isso, chega-se a Jaguarão sem nada, na forma a que uma equivocada política de transportes nos condenou: apenas por via rodoviária, o que implica geralmente em viajar de automóvel ou ônibus (são trezentos e tantos quilômetros de Porto Alegre; outros mesmos trezentos e tantos desde Montevidéu), por prolongados espaços despovoados, com algum gado aqui um pouco ali menos lá adiante; alguma granja de arroz; alguma soja; e quem sabe até inesperadas melancias e improváveis avestruzes. Enfim: chega-se a Jaguarão, no perder-de-vista da amplitude circular dos sempre distantes e inatingíveis horizontes do pampa; mas como vale a pena!
 
Jaguarão está ali, a meio caminho de Montevidéu e de Porto Alegre, entre dois pequenos cerros - o da Enfermaria e o do Cemitério - e o rio que lhe dá nome e que separa e une a cidade a Río Branco, do outro, no Uruguai. Divide (ou soma) com Río Branco a magia particular das luminosas e surpreendentes cidades da fronteira uruguaio-brasileira, de acentuada marca fronteiriça no traçado quadricular de suas ruas, na preservada unidade de sua arquitetura e na comunhão de costumes de seus habitantes. Distingue-se das outras, contudo, por causa do sortilégio paradoxal de sua ponte superlativa, que ao mesmo tempo liga e separa dois mundos iguais; e que desafia o visitante, ante sua espetacular monumentalidade de meia légua, a esgotar qualquer repertório de adjetivos.
 
Ir a Jaguarão e Río Branco é ir ao exterior sem sair do interior, é ir ao estrangeiro sem ser forasteiro, é sentir-se cosmopolita dentro de casa. De certa maneira, é descobrir o resto do mundo no próprio espelho, ante a conformidade das margens opostas e a repartição dos arcos da Ponte.
 
 
Sobre o cimento da belíssima Ponte Internacional Mauá, bem no meio do rio, havia um risco vermelho, separando Brasil e Uruguai: botava-se um pé aqui, outro lá, além do risco - e estava-se ao mesmo tempo nos dois países. Hoje, o risco foi apagado e substituído por uma placa; mas a cada ida e a cada volta, a cada troca de lado, a cada mágica travessia, opõem-se e complementam-se sobre a ponte o perto e o distante, o nosso e o deles, assumindo-se ante cada um de nós, em nós mesmos, o outro.
 
Ao entardecer, o sol aparecido no Brasil começa a desaparecer no Uruguai: do lado de cá, o leitor descerá até o cais de Jaguarão e poderá se deslumbrar com o espetáculo de cores e luzes de um inigualável pôr-do-sol varado sobre o rio, entre oito escurecentes e majestosos arcos da Ponte; do lado de lá, o leitor estará num banco da calle costaneira de Río Branco, e verá a Ponte toda dourando-se de sol e incendiando-se esplendorosa e repetida no espelho das águas.
 
O leitor terá chegado de manhã. Terá visto logo, nos arrabaldes, modestas casas com fachadas altas e telhados inclinados para trás, numa meia-água muito comum dos dois lados do rio - a que chamam “cachorro sentado”.  Terá chegado até à Praça, ao largo da Matriz, quem sabe ao Hotel; e terá se admirado da beleza dos casarões de altas portas e tantas e tantas sacadas - que constituem ali o mais admirável e bem conservado conjunto de arquitetura eclética do Rio Grande do Sul.
 
O leitor contará dez sacadas na fachada do Clube Harmonia; doze, na do Jaguarense. Mas precisará encontrar um guia, quem sabe no Instituto Histórico e Geográfico, quem sabe na Casa de Cultura, para poder visitar a cidade, chegar ao museu Carlos Barbosa, à Igreja da Mi-nervina (e saber coisas, que todos sabemos, os jaguarenses; e que contamos gostosamente, mas não escrevemos). O leitor conhecerá o Teatro, as ruínas da Enfermaria, portas e portas de descomunal escultura; e admirará quantas fachadas se lhe apresentarem (o medo que se tem, em Jaguarão, é que fiquemos sempre num turismo de fachada).
 
Depois o leitor irá a Río Branco. Atravessará a Ponte obrigatoriamente a pé, para melhor apreciar o rio, para melhor sentir o sortilégio da ponte, e para logo - a passo, no mais - deparar-se com o outro lado e, logo logo, ver tudo de lá para cá.
 
Em Río Branco o leitor chegará por uma rampa da Ponte e irá a uma quesería e comprará queijos das mais variadas procedências e qualidades; comprará morrones dulces em conserva e os inigualáveis dulces de leche Conaprole - com chuno ou sin chuno. Mas deverá dar um jeito de conseguir carona ou tomar um velho ônibus para ir até a La Cuchilla, que é a parte mais alta da cidade, lá na continuação da Ponte. Em La Cuchilla, não se pode deixar de conhecer a Estação Ferroviária, dar uma volta na Praça, comprar jornais no Kiosko e provar masitas, uma torta pastaflora e uma pascualina, na Confiteria Nueva Iberia; e o leitor saberá chegar à calle Virrey Arredondo para desfrutar dessas delícias.
 
Se o dia estiver bonito, valerá a pena dar um jeito de ir ao balneário Lago Merín, a 20 quilômetros de Rio Branco: uma praia uruguaia banhada pela Lagoa Mirim - patrimônio da humanidade - com Cassino e a possibilidade de se comer, dependendo da época, um pintado à jaguarense ou uma traíra recém pescada.
 
À noite, haverá tempo para voltar a La Cuchilla e dirigir-se ao “Tacuarí” (algumas quadras depois da Ponte, à esquerda), pedindo ao Acuña, dono e assador, nada mais do que um petit-entrecot - que sobressairá do prato e, a cada bocado, justificará o fascínio daquele modesto restaurante de tiras de plástico na porta de entrada, havendo de impor definitivas certezas sobre a excepcional qualidade da carne e da parrilla uruguaias. O acompanhamento se fará com pão graseoso, cerveja Patricia e, dependendo da sorte, com as coplas de algum guitarreiro desgarrado.
 
De regresso a Jaguarão, é obrigatório voltar-se pelo trecho da Ponte que liga as duas partes de Río Branco, para ter o privilégio de flagrar a cidade brasileira descobrindo-se na sua própria iluminação, do outro lado do rio - e crescendo contra o céu escuro.
 
Depois, basta dormir e sonhar; na certeza de que ter ido a Jaguarão (e Río Branco) é não ter passado em vão pela vida. 
 
 
Agora, se o leitor sabe que em Río Branco há um duty-free shop com meia dúzia de excelentes lojas com ar condicionado, vendendo a dólar produtos de todo o mundo; e deseja ir até lá só para fazer compras, essa é uma boa pedida. Mas, por favor, não entre em Jaguarão: siga até à última rua, ao fim da estrada, dobre à esquerda, em direção à Ponte sem olhar para os lados; atravesse a Ponte sem se importar com o rio; desça à direita, pela rampa, sem pensar em nada; e vá de loja em loja comprar o que quiser e puder. 
 

 © Aldyr Garcia Schlee

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publicado por ardotempo às 12:36 | Comentar | Ler Comentários (4) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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