Domingo, 01.02.09

A segunda chance

Outro Brasil
 
Luis Fernando Verissimo
 
"E na noite seguinte à segunda-feira, se perdeu da frota Vasco de Ataíde, sem haver vento forte ou contrário que o pudesse explicar; para o encontrar fez suas diligências o capitão, mas não mais apareceu", escreveu Pero Vaz de Caminha a D.Manuel de Portugal.
 
Tresmalhou-se a nau capitaneada por Vasco de Ataíde, e na manhã da segunda-feira, março 23, viu-se posta em solidão, a léguas de cada horizonte e outras tantas do chão. Fez seu caminho para o Sul e guinou para a banda do Sudoeste, seguindo um cheiro silvestre de canela e picuã. E a 21 de abril, descobriu outro Brasil.
 
Desde então, existe o Brasil das 12 naus, esse que está aí, e existe o Brasil da nau perdida, da nau que chegou só. O Brasil imaginário. O Brasil que poderia ter sido.
 
 
Vez que outra o vislumbramos, como um vulto no mato, esse Brasil alternativo. Nenhuma notícia chegou à corte da segunda descoberta. Não está nos arquivos reais, não consta de nenhum relato de escriba, não ficou na História. E, portando, foi poupado pela História. Tudo que lhe aconteceu foi apenas imaginado.
 
É um Brasil clandestino. Pedro Álvares Cabral plantou sua cruz, perguntou se tinha ouro e foi matar seus mouros. Vasco de Ataíde ficou. Despiu-se da lataria de capitão, casou-se com sete índias e estabeleceu-se. E toda a história do Brasil desde Cabral tem sua contrapartida, a história do Brasil desde Vasco de Ataíde. Tudo o que foi feito tem seu oposto: tudo o que não foi feito. Tudo que não foi feito tem seu oposto: o que precisava ser feito, e foi.
 
O Brasil de Vasco de Ataíde está na espreita do Brasil de Cabral e Dom Manuel. Algum dia ele tomará conta e começará tudo do começo, começará tudo da primeira praia. Certo, desta vez.
 
Mas segundo outra versão imaginada, depois de perder-se da frota Vasco de Ataíde fez caminho para Calicute com vento à popa e as latinas bochechadas até ter o Cabo da Boa Esperança em Oeste franco, rumando para os potentados, onde abarrotou-se, e se faria de novo ao mar se uma febre oriental não o tivesse tirado dos pés. E assim estava, sem prumo ou cuidado cristão, quando chegou Cabral. E perguntou Cabral por onde andara Vasco de Ataíde, e se não sabia que era para a frota andar a Sudoeste como quem não queria nada e descobrir mais Portugal, por ordem de Dom Manuel. E disse Vasco:
 
- Acho que essa reunião eu perdi...
 
 
© Luis Fernando Verissimo

 

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publicado por ardotempo às 22:07 | Comentar | Adicionar

Dupla face

Caras e bocas
 
Ferreira Gullar
 
Sempre fui e sou a favor da operação plástica, seja para consertar alguma deformidade, corrigir um nariz, como para eliminar rugas e papadas, que surgem com a idade. Num mundo como este, cheio de conflitos, a pessoa deve estar em paz ao menos com a própria cara.
 
Toda cara é, para mim, indecifrável como uma esfinge. Por isso mesmo, já escrevi aqui sobre o tema e volto a escrever agora, depois de saber da operação plástica a que se submeteu a ministra Dilma Rousseff, o que tem sido motivo de notas e comentários em jornais e revistas.
 
Houve quem a criticasse, o que não farei, mesmo porque estaria sendo incoerente com meus princípios pró-plástica. Mas devo esclarecer: sou a favor de que se faça plástica, mas reservo-me o direito de opinar sobre o resultado da operação.
 
Como já observei em crônica anterior, a pessoa é a sua cara. Há quem acredite que, se a forma expressa o conteúdo, a cara expressaria a personalidade, donde conclui-se que o que somos está na cara, isto é, em nossa cara.
 
Dado isso como verdade, coloca-se uma questão importante: se a cara expressa o que a pessoa de fato é, mudar-lhe a cara é fazê-la passar por quem não é, um disfarce, que consistiria em substituir a feição verdadeira por uma máscara, ainda que bela, ainda que mais simpática. Enfim, uma fraude.
 
Não concordo. Como diz o ditado, quem vê cara não vê coração. Há muita gente que tem cara feia e alma doce. Noutras palavras, muitas vezes a natureza é injusta, pois dá à pessoa uma cara que ela não merece. Isso sem falar em outras que nascem com olhos tortos, nariz de bola ou boca beiçola, enfim, feições assustadoras ou caricatas.
 
E o que pode fazer o dono de uma cara como essas? Suportá-la pelo resto da vida? Já imaginou ter que viver com uma cara que, embora sendo a sua, não é você? Não dá, todo mundo tem o direito a melhorar de vida e de cara. Na ânsia de se inventar outro e melhor, há quem mude também a bunda (o bumbum como querem alguns) para ajustá-la às exigências da moda. Mas a bunda não identifica a pessoa como a cara, pode ser de qualquer um (ou uma), por isso se diz que "não tem dono" e, além do mais, fica nas costas.
 
Por tudo isso, sou tolerante com moças e rapazes que, nos Estados Unidos, substituem o rosto de nascença pelo de seus ídolos e andam pela cidade como se fossem eles, a gozar assim de uma celebridade postiça, divertindo-se graças aos fãs desavisados. Divertimentos que podem ir longe e pular da rua para a cama, onde conseguem realizar suas fantasias. Há casos, também, de pessoas que, em vez de copiar a cara alheia, inventam uma só sua, ainda que extravagante de tão original, como o fez Michael Jackson, cuja cara que usa não se sabe se é de anjo caído ou de vampiro.
 
Todas essas razões me levam a acolher a iniciativa da ministra Dilma de melhorar a fachada, como se costuma dizer. Aliás, em princípio, ninguém tem nada que dar palpite nisso. Ou melhor, não teria, não fosse o fato de que, segundo todos acreditam, ela mudou de cara com o propósito de disputar as eleições presidenciais de 2010. Aí, o assunto também muda de feição, isto é, passa a ser de interesse público. E, de qualquer modo, fazer plástica para se tornar mais contente consigo mesma é uma coisa, enquanto que, para ganhar votos, é outra.
 
Ainda que não seja errado fazê-lo, a intenção eleitoral parece sempre implicar algum embuste.
 
Mas isso é inerente à política, em que a virtude mais rara entre todas é a inocência. Dilma, ao que tudo indica, segue o exemplo de Lula que, após sucessivas derrotas eleitorais, decidiu, antes da disputa pela Presidência da República, em 2002, mudar sua imagem: se não raspou a barba cubana, aparou-a, e substituiu por um doce sorriso aquele ar belicista de quem acabara de descer de Sierra Maestra, ainda que, ao contrário de Dilma, nunca tenha pegado em armas.
 
Mas a pergunta a se fazer é se o resultado foi bom, se atingiu o objetivo. Ela ganhará mais votos com a nova cara do que com a anterior? A maioria dos que opinaram - todos eles, homens e políticos - garante que sim.
 
A notícia que li veio acompanhada de duas fotos da ministra: uma de antes da operação, outra de depois.
 
Na primeira, ela está com os óculos que sempre usara e a boca amarga, que às vezes usa; na segunda, está sem óculos, quase sem boca e cabelos que, de escuros, passaram a alourados, tornando-a mais feminina, mais jovem e, ao mesmo tempo, mais comum: não se parece com a ministra Dilma Rousseff que o país conhece. Agora, está mais para tia do que para a mãe do PAC.
 
Eu, se fosse o caso, votaria na outra, melhorada a boca.
 
 
 
Ferreira Gullar - publicado na Folha de São Paulo / UOL

Pintura de De Chirico (detalhe) - Óleo sobre tela , 1917

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publicado por ardotempo às 19:17 | Comentar | Adicionar

Pintura - David Hockney

Triptico - Instalação

 

 

 

Pintura em triptico (duas telas de parede e um painel recortado no chão) - Instalação - David Hockney - Óleo sobre tela (Estados Unidos), sem data

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publicado por ardotempo às 15:41 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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