Sábado, 28.02.09

um.desenho.por.semana.11

09.fev.semana - 05

 

 

publicado por ardotempo às 19:36 | Comentar | Adicionar

As crianças

Ernesto Sábato

 

É urgente encararmos uma educação diferente, ensinarmos que vivemos numa terra da qual devemos cuidar, que dependemos da água, do ar, das árvores , dos pássaros e de todos os seres vivos, e que qualquer dano que causemos a este universo grandioso prejudicará a vida futura e pode até destruí-la. Que coisa ótima poderia ser o ensino, se, em vez de despejar uma imensidáo de informações que ninguém nunca conseguiu reter, fosse vinculado à luta das espécies, à necessidade urgente de preservar os mares e os oceanos!

 

(Ernesto Sábato - A resistência / Companhia das Letras, 2008)

 

Veja o vídeo

publicado por ardotempo às 12:24 | Comentar | Adicionar

Os velhos

Ernesto Sábato

 

"É tão pouco o tempo que dedicamos aos velhos! Agora que eu também sou um deles, quantas vezes na solidão das horas que inevitavelmente acompanham a velhice, lembro compungido aquele seu último gesto (o de minha mãe) e observo com tristeza o desamparo que os anos trazem, o abandono a que os homens de nosso tempo relegam os idosos, os pais, os avós, essas pessoas às quais devemos a vida.  

 

Nossa "avançada" sociedade deixa de lado quem não produz. Meu Deus, abandonados à sua solidão e às suas ruminações! Quanto de respeito e de gratidão perdemos! Que imensa devastação os tempos causaram à vida, que tremendos abismos se abriram com os anos, quantas ilusões foram assoladas pelo frio e pelas tormentas, pelo desengano e pela morte de tantos projetos e seres que amávamos!"

 

(Ernesto Sábato - A resistência / Companhia das Letras, 2008)

tags: ,
publicado por ardotempo às 11:38 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 27.02.09

Retratos Notáveis - 28

Um gato e um escritor

 

 

 

Retrato de Georges Perec (Paris, França)

Fotógrafo:  autoria indefinida

publicado por ardotempo às 18:44 | Comentar | Adicionar

Olhando de longe

O risco
 
Luis Fernando Verissimo
 
Um dos meus dezessete leitores, o Leitor Mais Atento, deve ter desconfiado que eu não estava aqui nas últimas semanas. Pelo menos o temível LMA, que nota tudo, deve ter notado que meus perspicazes, pertinentes e sempre atuais comentários sobre os fatos do mundo foram substituídos por textos sobre nada, que deixei prontos para poder viajar. O risco deste recurso, claro, é acontecer alguma coisa como a morte de um papa na nossa ausência e o leitor estranhar a solene indiferença do colunista ao fato. Uma vez fui passar duas semanas fora do Brasil, começando com uma semana em Nova York, e deixei as colunas prontas.
 
Chegamos a NY num domingo e na terça-feira derrubaram as torres do World Trade Center. “O Globo” e o “Zero Hora” de Porto Alegre aproveitaram as matérias que passei a mandar de lá, mas outros jornais do país continuaram a publicar as que eu tinha deixado, sobre nada, e até poder me explicar fui visto como o jornalista mais alienado do mundo. O lado positivo desse estratagema perigoso é que ele tem sido responsável pela minha regeneração espiritual. Cada vez que viajo e deixo colunas adiantadas, começo a rezar com fervor pela boa saúde do papa.
 
CORRENTES
 
Uma das razões da minha última ausência foi a participação na Correntes d´Escritas, um encontro literário que acontece todos os anos em Póvoa de Varzim, a poucos quilômetros de Porto, Portugal, e que este ano reuniu mais de 100 escritores, editores, agentes e pessoas ligadas aos livros e às artes editoriais para comemorar seus dez anos de existência.
 
Póvoa de Varzim, além de ser a terra natal do Eça de Queiroz, já tem esta tradição de reunir gente de Portugal, da Espanha, da América Latina e da África para tratar de literatura e conviver à beira-mar plantados. Neste ano o time brasileiro incluía Moacyr Scliar, Luiz Antonio de Assis Brasil, Adriana Lisboa, Antonio Cícero, Amílcar Bettega, Lêdo Ivo, Daniel Galera, Eucanaã Ferraz, Ivan Junqueira, João Paulo Cuenca e eu. Dias lindos, pouco frio, e não envergonhamos a pátria.
 
PRESSÁGIOS
 
Não sei se é novidade mas o que mais me impressionou no desfile das Escolas de Marcha na Sapucaí este ano foi o ativismo nas alegorias. Os figurantes que antes ficavam nos seus lugares sobre os carros alegóricos com a única obrigação de rebolar agora entram e saem e descem e sobem e interagem o tempo todo com o cenário e com o pessoal do chão. Acabou a folga das estátuas vivas. Fora isso, nada nos desfiles prenunciava a crise que se aproxima.
 
Me perguntaram se o luxo das escolas não lembrava, na sua ostensiva indiferença a maus presságios, o último baile da Ilha Fiscal. A analogia é boa mas não é exata. O baile simbolizou o fim de um regime que não se reconhecia em crise, de um carnaval inconsciente. O que as Escolas de Marcha, porque aquilo não é samba, repetem todos os anos é que as crises vem e vão e os presságios sempre são ruins, mas não interessa. Interessa é brilhar.
 
© Luis Fernando Verissimo 
publicado por ardotempo às 01:07 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quinta-feira, 26.02.09

Lamparinas Gigantes de Siron Franco

Para alumiar o mundão,

um facho de querosene,

de óleo, de aguardente,

desde riba, 

na noite fechada

do cerrado mais fundo 

das Minas Geraes, de Goiás,

das fazendas sem fim

do Mato Grosso...


 

 

 

Releitura das luminárias portáteis artesanais, das lanternas ou lamparinas populares, feitas com o reaproveitamento de latas usadas, de folha de flandres,  em formato de funil virado e mecha molhada em querosene, álcool ou óleo combustível - assim são a lamparinas gigantes de Siron Franco, com 3 metros e setenta e cinco centimetros de altura, funcionais a querosene de galão, escada e faísca de fósforo, para iluminar as profundezas dos grotões escondidos e distantes, onde se cometem os piores crimes contra o ambiente, contra a floresta, contra o Pantanal e se coloca em risco a natureza, noite após noite.

 

Lamparinas, de Siron Franco - Instalação (Aparecida de Goiânia - GO - Brasil)

Fotografia de Pierre Yves Refalo

publicado por ardotempo às 18:11 | Comentar | Adicionar

Um Café em Paris

Café Perec
 
Enrique Vila-Matas
 
¿Qué sucede cuando la gente no tiene el mismo sentido del humor? No reaccionan adecuadamente entre sí. Es lo que acaba de ocurrirme con el camarero de este Café Tabac de la plaza de Saint-Sulpice, café Perec para algunos. Decía Wittgenstein que, cuando la gente no comparte el mismo humor, es como si entre ciertos individuos existiese la costumbre de que una persona arrojara un balón a otra, y se estableciera que la otra persona tenía que atraparlo y devolverlo, y que algunas, en lugar de devolverlo, se lo metieran en el bolsillo.
 
Decido olvidarme del camarero de humor distinto y miro hacia la iglesia de Saint-Sulpice. Estoy en el mismo lugar de observación desde el que Georges Perec, en los años setenta, se dedicaba a catalogar esta plaza y anotar de ella muy especialmente "lo que generalmente no se anota, lo que se nota, lo que no tiene importancia, lo que pasa cuando no pasa nada, salvo tiempo, gente, autos y nubes".
 
 
Aquí escribió Tentativa de agotar un lugar parisino, un libro que consistía en una meticulosa larga lista de lo que había visto en la plaza a lo largo de varios días diferentes. En su momento lo leí con infinita diversión. Allí había anotado Perec todo lo que pasaba cuando no pasaba nada y había excluido de su lista sólo lo que pudiera resultar demasiado trascendente, y sobre todo lo que ya estaba "suficientemente catalogado, inventariado, fotografiado, contado o enumerado”.
 
Apuro mi café y tengo un recuerdo para El salto en paracaídas, un breve texto genial, incluido en Nací. Cuando aún era un tierno principiante, hacia 1959, al final de una reunión del grupo de la revista Arguments, Perec pidió la palabra, y su intervención tuvo alguien la ocurrencia de grabarla.  Feliz ocurrencia. Perec contó de forma tan inspirada como tartamuda una experiencia muy personal (“la cuento porque estoy un poco... porque he bebido un poco”), una  aventura de su breve paso por el paracaidismo y la historia de cómo llegó a comprender que, en la literatura y en la vida, era absolutamente necesario lanzarse, tirarse al vacío, “para persuadirse de que eso podría quizá tener un sentido que incluso uno mismo ignorase”.
 
Entre los libros de primera hora que me cambiaron la vida, estuvieron siempre los de Perec, libros que recuerdo haber leído fascinado, devolviéndole al autor, página a página, cada uno de los eufóricos balones que lanzaba. Desde el primer momento, vi que Perec era inseparable de Roussel y de Kafka, precisamente los otros dos escritores que entonces más me interesaban, pues me habían demostrado que en novela era posible hacer cosas muy distintas de las que se predicaban en mi tierra.
 
En aquellos días, por lo que fuera, todo a veces se producía de la forma más sencilla. Y así Kafka, Roussel y Perec llegaron a mí con la máxima naturalidad, casi juntos, y después lo hicieron libros también decisivos como el ensayo novelado Maupassant y “el otro”, donde Alberto Savinio, con el pretexto de hablar de Maupassant, acababa hablando de todo, y para eso le bastaba con asociar cualquier idea con el dichoso tema central, en realidad ausente. O libros como El mito trágico del “Ángelus” de Millet, de Salvador Dalí, cuyo atractivo método de trabajo, alejado de todos los dogmas sobre la novela, se basaba también en asociaciones de ideas, asociaciones que se desplegaban en un tapiz que, al dispararse en todas los itinerarios posibles, acababa por convertirse en inagotable.
 
Pasa un autobús de la línea 63, y lo anoto - como todo - meticulosamente. Pasa luego uno de la línea 96, que va a Montparnasse. Frío seco, cielo gris. Pasa una mujer elegante llevando tallos en alto, un gran ramo de flores. El 96 es el mismo autobús que Perec atrapara en sus apuntes, y el mismo que luego me trasladará a mi hotel aquí en París, el Littré. Un rayo de sol. Viento. Un mehari verde. Lejano vuelo de palomas. Instantes de vacío. Ningún coche.
 
Después cinco. Después uno. “La trama  es una vulgaridad burguesa”. Le adjudico la frase a Nabokov. “El estilo avanza dando triunfales zancadas, la trama camina detrás arrastrando los pies”, recuerdo que respondió John Banville en una entrevista.
 
Es posible que estas dos citas sean como lanzar un balón que no van a devolvernos nunca todos aquellos que tienen todavía el humor de situar a la trama decimonónica en un pedestal absoluto. La novela del futuro verá esa trama como una simpleza que hizo furor en cierta época y se reirá de un tópico que me machacó durante mi primera juventud, esa idea de que la novela -“como bien saben en el mundo anglosajón”- ha de privilegiar siempre la trama. Hoy me alegro de haber visto pronto que aquella idea británica sobre la novela, como sucedía con tantas otras, no tenía porque considerarla una regla inamovible. Me moría de risa el día en que le escuché a Kart Vonnegut decir que las tramas en realidad eran sólo unas cuantas y no era necesario darles demasiada importancia, bastaba con incorporar – casi al azar - una cualquiera de ellas al libro que estuviéramos escribiendo y de esta forma disponer de más tiempo para la forja de lo que realmente habría de importarnos: el estilo.
 
¿Y cuáles eran esas tramas? Vonnegut se las sabía de memoria, tenía una lista muy perecquiana: “Alguien se mete en un lío y luego se sale de él; alguien pierde algo y lo recupera; alguien es víctima de una injusticia y se venga; el caso conmovedor de Cenicienta; alguien empieza a ir cuesta abajo y así continúa; dos se enamoran, y mucha otra gente se entromete; una persona virtuosa es acusada falsamente de haber pecado o de haber cometido un crimen; una persona se enfrenta a un desafío con valentía, y tiene éxito o fracasa; alguien inicia una investigación para conocer la verdad de un asunto...”.
 
¿Y qué sucede cuando no ocurre nada? Que termina uno a veces por acordarse de los orígenes de su fascinación por las tramas no convencionales y recuerda cuando descubrió que se podían construir libros libres, de estructuras inéditas, con asociaciones y cavilaciones en torno a centros ausentes... Son las doce y doce de la mañana. Pasa un camión Printemps Brumell. Viento. Pienso en  métodos construidos con hiperasociaciones de ideas que -como en libros de Savinio o Dalí - no agotan nunca el tema en estudio y observación. Sin duda, una obra maestra absoluta de ese nuevo género fue la hipernovela La vida instrucciones de uso, donde se daban cita todas las tramas de Vonnegut, que de paso eran dinamitadas, en una operación parecida a la de Flaubert cuando en Madame Bovary  acabó con el realismo a base de llevarlo hasta su extremo máximo y ser el más realista de todos.
 
Pienso en los veintinueve años y once meses que se cumplen desde que apareciera La vida instrucciones de uso, un libro al que Italo Calvino, por variadas razones -“el compendio de una serie de saberes que dan forma a una imagen del mundo, el sentido del hoy que está también hecho de acumulación del pasado y de vértigo del vacío”- consideraba como el último verdadero acontecimiento en la historia de la novela: puzzle en el que el propio puzzle da al libro el tema de la trama y el modelo formal, y donde el proyecto estructural y la poesía más alta conviven con asombrosa naturalidad.
 
De hecho, durante un largo tiempo La vida instrucciones de uso fue para muchos, en efecto, el último verdadero acontecimiento de la novela moderna. Después, vendría un gran libro de Roberto Bolaño, Los detectives salvajes, que recogía con extraordinaria osadía y talento el guante lanzado por Perec. Día de cielo gris, frío seco. Viento. Pasa un señor con aspecto de secretario “provisionalmente definitivo” de alguna sociedad secreta de inventores de aforismos. Parece salido de una de las páginas más divertidas de Pensar / Clasificar. Podría llamarse perfectamente Bénabou.
 
Pasa otro autobús de la línea 63. Pasa el 96. Lasitud de los ojos. Risas sofocadas. Distintos humores. Voy anotando. Alguien mueve un visillo. Tañidos de la campana de Saint-Sulpice. Se acumula el pasado y al mismo tiempo el vértigo de un vacío, lo que también anoto debidamente.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
© Enrique Vila-Matas - Publicado no blog Enrique Vila-Matas
publicado por ardotempo às 13:03 | Comentar | Adicionar

Escritor. Cronista. Jornalista. Desenhista. Artista

Luis Fernando Verissimo

 

 

 

Fotografia: Ney Gastal 

publicado por ardotempo às 13:02 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 25.02.09

No céu de São Paulo

 

 

 

 

 

Mário Castello - Catedral de São Paulo - Fotografia (São Paulo), 2008 

publicado por ardotempo às 23:29 | Comentar | Adicionar

Retratos Notáveis - 27

Um dia, num café em Aix-en-Provence

 

 

 

 

 

Alegria de viver - Café em Aix-en-Provence (Aix-en-Provence, França), 2008

Fotógrafo: Pierre Yves Refalo

publicado por ardotempo às 22:35 | Comentar | Adicionar

No ateliê de Arcangelo Ianelli

O pintor paradigmático e uma de suas telas magistrais

 

 

 

Arcangelo Ianelli e ateliê / Pintura: Vibração em azul - Óleo sobre tela, em grande formato

 

publicado por ardotempo às 22:26 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 24.02.09

Carta, de Saramago

Diz-se que o Carnaval é uma festa destinada a desaparecer. O que se vê , na realidade, é que o povo, sempre que se regojiza, faz carnaval. De modo que o carnavalesco, que é o especificamente popular de toda a festa, não mostra indícios de que vá se acabar. E desde o ponto de vista mais aristocrático, tampouco o Carnaval desaparece. Porque o essencial carnavalesco não é o de mascarar-se, e sim o de abolir-se a face. E não há ninguém tão bem resolvido com a sua própria face que não deseje estrear uma outra, num certo momento.” - Antonio Machado

 
Carta a Antonio Machado
 
José Saramago
 
Antonio Machado morreu hoje há setenta anos. No cemitério de Collioure, onde os seus restos repousam, um marco de correio recebe todos os dias cartas que lhe são escritas por pessoas dotadas de um infatigável amor que se negam a aceitar que o poeta de “Campos de Castilla” esteja morto. Têm razão, poucos estão tão vivos. Com o texto que se segue, escrito por ocasião do 50º aniversário da morte de Machado, e para o Congresso Internacional que teve lugar em Turim, organizado por Pablo Luis Ávila e Giancalo Depretis, tomo o meu modesto lugar na fila.
 
Uma carta mais para Antonio Machado.
 
Lembro-me, tão nitidamente como se fosse hoje, de um homem que se chamou Antonio Machado. Nesse tempo eu tinha catorze anos e ia à escola para aprender um ofício que de pouco me viria a servir. Havia guerra em Espanha. Aos combatentes de um lado deram-lhes o nome de vermelhos, ao passo que os do outro lado, pelas bondades que deles ouvia contar, deviam ter uma cor assim como do céu quando faz bom tempo.
 
O ditador do meu país gostava tanto desse exército azul que deu ordem aos jornais para publicarem as notícias de modo que fizessem crer aos ingénuos que os combates sempre terminavam com vitórias dos seus amigos. Eu tinha um mapa onde espetava bandeirinhas feitas com alfinetes e papel de seda. Era a linha da frente. Este facto prova que conhecia mesmo Antonio Machado, embora sem o ter lido, o que é desculpável se levarmos em conta a minha pouca idade. Um dia, ao perceber que andava a ser ludibriado pelos oficiais do exército português que tinham a seu cargo a censura à imprensa, atirei fora o mapa e as bandeiras. Deixei-me levar por uma atitude irreflectida, de impaciência juvenil, que Antonio Machado não merecia e de que hoje me arrependo.
 
Os anos foram passando. Em certa altura, não me lembro quando nem como, descobri que o tal homem era poeta, e tão feliz me senti que, sem nenhuns propósitos de vanglória futura, me pus a ler tudo quanto escreveu. Por essa mesma ocasião, soube que já tinha morrido, e, naturalmente, fui colocar uma bandeira em Collioure. É tempo, se não me engano, de espetar essa bandeira no coração de Espanha. Os ossos podem ficar onde estão.
 
© José Saramago - Publicado no Blog O Caderno de Saramago
publicado por ardotempo às 23:36 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

No ateliê de Siron Franco

Siron Franco e o lobo-guará

 

 

 

Fotografia de Pierre Yves Refalo

publicado por ardotempo às 13:31 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 23.02.09

um.desenho.por.semana.10

 09.fev.semana - 04

 

publicado por ardotempo às 23:39 | Comentar | Adicionar

Jack Varnasky

Objeto escultórico

 


Jack Varnasky - Instalação, objeto escultórico (Paris, França) 2003 

publicado por ardotempo às 12:44 | Comentar | Adicionar
Domingo, 22.02.09

Os livros de bolso

Lecturas liliputienses
 
Alberto Manguel 
   
Dos características esenciales definen el libro de bolsillo: su dócil tamaño y su voluntad nómada. Es por eso que el santo patrón de los libros de bolsillo es (o debería ser) un tal Lemuel Gulliver, viajero infatigable y minucioso cronista del minúsculo reino de Liliput.
 
Discreto, móvil, manuable, modesto, el libro de bolsillo es, de toda la biblioteca, el que más se pliega a la voluntad del lector. Porque es portátil, no exige que se lea en un lugar determinado, como los elefantinos volúmenes de una enciclopedia; porque es barato, no provoca en el lector que quiere garabatear en sus márgenes el sentimiento de lèse majesté que causan sus más aristocráticos hermanos de tapa dura; porque es pequeño, no desdeña el bolso ni, obviamente, el bolsillo, y se deja llevar a la cama como el más dócil de los enamorados.
A pesar de su modestia, su nacimiento es prestigioso. Siglos después de que la tableta de arcilla cediese paso al rollo, los primeros cristianos, temiendo ser vistos con un texto sagrado prohibido, plegaron el papiro o pergamino de manera que pudiese ser ocultado bajo la ropa. Así fueron creados los primeros libros de bolsillo, para proteger, dicen ciertos historiadores, la palabra del nuevo dios. Otros prefieren pensar que fue Julio César quien enviaba plegadas en forma de librito sus cartas personales, inventando así los primeros tascabili. Sea como fuera, el libro de bolsillo precede al libro de tamaño mayor como una suerte de modelo visionario, anticipando las guías de teléfono y los antifonarios. Más tarde, cuando el códex reemplazó definitivamente al rollo, el prestigio del texto requirió tamaños cada vez más inmensos y, como de minimus non curat lex, las leyes y decretos oficiales de la Edad Media desdeñaron el aspecto práctico del libro de bolsillo y exigieron formatos descomunales e incómodos. Las otras artes siguieron el ejemplo de las legales y el libro de bolsillo fue relegado al servilismo de algunos breviarios y libros de horas.
 
 
Fue al poco tiempo de la invención de la imprenta, que en Venecia el genial editor Aldo Manucio tuvo la idea de redimir el prestigio perdido del libro de bolsillo creando una colección de clásicos exquisitamente elaborados. Su intención fue la de poner en manos de todo lector, por más humilde que fuera, las obras maestras griegas y latinas. En parte tuvo éxito: en el Catálogo de precios de las prostitutas de Venecia del año 1535 aparece una tal Lucrezia Squarcia entre cuyas virtudes se alaba la de haber leído a Petrarca, Virgilio y "a veces hasta a Homero" en las ediciones Aldinas de bolsillo. Sin embargo, los libros de Manucio resultaron tan bellos que los aristócratas acabaron comprándolos para adornar sus bibliotecas; por eso hoy pueden hallarse numerosos ejemplares inmaculados, que no fueron nunca abiertos por sus supuestos lectores.
 
La popularidad de los libros de bolsillo baja y sube periódicamente y no siempre es bien acogida. Cuando en 1935 el editor inglés Allen Lane lanzó los primeros Penguin Books, George Orwell (a quien sería difícil tachar de elitista) dijo que si bien, como lector, aplaudía el proyecto, como escritor le resultaba odioso "porque esta oleada de reimpresiones baratas acabará con la biblioteca de préstamo (madre adoptiva del novelista) y frenará la producción de obras nuevas". Orwell se equivocó. El libro de bolsillo no acabó con la biblioteca de préstamo (el culpable de su lenta agonía es, ya se sabe, la industria electrónica) y, lejos de frenar la producción de obras nuevas, permitió que éstas se publicaran de manera más económica, sin pasar obligatoriamente por la aristocracia de la tapa dura.
 
Hoy los libros de bolsillo reinan supremos, tanto entre sus congéneres de librería como entre las morcillas y pantuflas del supermercado, ofreciendo al lector que busca un discreto compañero de ruta todo tipo de aventuras, desde los periplos más imbéciles hasta los clásicos viajes del perspicaz Lemuel Gulliver.
 
© Alberto Manguel - Publicado em Babelia - El País
tags:
publicado por ardotempo às 19:37 | Comentar | Adicionar

Muitos sapos

Versões
 
Luis Fernando Verissimo
 
Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um "psiu". Era um sapo, que lhe contou que na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se casaram e viveram felizes para sempre.
 
Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com uma condição:
- Beijo de língua, não.
E viveram felizes para sempre.
 
Muitos anos mais tarde, depois da revolução industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo, mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:
- Ué, pra quem já beijou sapo!
Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para viver, porque o príncipe, inclusive, perdera tudo com o fim do feudalismo.
 
Já neste século, a mesma história. "Psiu", sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de hesitação até que se esclarecesse um ponto:
- Precisa ser donzela?
Não precisava. Casaram-se e viveram etc.
 
Anos sessenta. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:
- Alguma você andou aprontando!
E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.
 
Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o "psiu", depois a conversa do sapo, e - diante dos protestos do sapo - raciocina em voz alta:
- Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês!
E ela fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.
 
Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo, mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que o sapo lhe passara.
E aconselhou:
- Esqueça o sapo e encontre essa bruxa!
Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda forte, nominativas em preferenciais...
 
© Luis Fernando Verissimo

 

publicado por ardotempo às 17:29 | Comentar | Adicionar

Anselm Kiefer

Objeto escultórico

 

 

 

Anselm Kiefer - Instalação - Objeto escultórico (Barjac, França), 2008

publicado por ardotempo às 00:50 | Comentar | Adicionar
Sábado, 21.02.09

O farol - Ilha do Mel

Mário Castello

 

 

O farol - Mário Castello - Fotografia (Ilha do Mel - Santa Catarina - Brasil) , 2009

publicado por ardotempo às 13:39 | Comentar | Adicionar

Tango inclinado num terraço de Lisboa

 

 

Caro Alfredo,
 
Há coisas muito estranhas.
 
Ainda agora estava a deitar os meus filhos e fiquei por lá, junto à Alice e à sua girafa de peluche, contando histórias. Como estou absolutamente exausto, depois de uma semana duríssima, com passagem intensa pelas Correntes d’Escritas (onde se fala muito, se bebe, se dança, mas se dorme quase nada) e um excesso de trabalho no regresso a Lisboa, adormeci. No escuro do quarto, só iluminado por um móbil de libelinhas luminosas (como pirilampos), adormeci e sonhei, um sonho muito estranho que me deixou um sabor acre na boca quando acordei, com a chamada de um amigo para o telemóvel (afinal de contas, ainda não eram onze da noite, uma hora razoável para quem me conhece). Levantei-me estremunhado, respondi como pude, arrumei a mesa do jantar e vim aqui ver os e-mails. Comecei lendo o seu e de repente lembrei-me do sonho.
 
Sabe com quem eu sonhei? Não vai acreditar. Sonhei com o Lobo Antunes. Ele vestia um casaco preto de cabedal, muito comprido, um chapéu de cowboy e estava bêbedo. Podia sentir o bafo à distância. E depois muito próximo, porque ele abraçou-se a mim, como se eu fosse um amigo de muitos anos (na realidade, nunca sequer estivemos juntos). A cena passava-se numa espécie de terraço, inclinado sobre Lisboa e o Tejo. Ao longe, uma música melancólica. E então ele pôs-se a dançar comigo. A sério. Eu oferecia resistência, «o que é isso, António?», mas ele, com voz arrastada, dizia «Eu gosto mesmo de si, do que escreve, do seu olhar sobre as coisas» (devia estar a referir-se aos livros que escreverei um dia; se é que algum dia escreverei algo que lhe agrade mesmo), e eu «António, vá lá, cuidado, o terraço é muito inclinado, não faça um disparate», e nisto ele rodopia, tropeça e quase cai dali abaixo, eu fico a segurá-lo por um pé, não está ninguém por perto, e é com muita dificuldade que consigo por fim puxá-lo cá para cima. Quando vou olhar para o rosto dele (o chapéu caído na escuridão, ou talvez no Tejo), toca o telemóvel e sou arrancado ao sonho, como se de repente alguém tivesse acendido todas as luzes de um teatro.
 
Agora que começo a ficar um pouco mais acordado e lúcido (mas não muito), apercebo-me que devia estar a sonhar isto tudo enquanto você escrevia o seu e-mail. O escritor que há em mim (o escritor que o Lobo Antunes do sonho julgava que eu era, não o escritor que realmente sou) talvez arriscasse uma explicação: a pergunta que o Alfredo se coloca («será que o Lobo Antunes vai abandonar mesmo a literatura?») teria a resposta no meu sonho (sim, ele está namorando o vazio, o abismo, mas quando decidir lançar-se nele, alguém, um dos seus leitores, simbolizado por mim naquele devaneio onírico, salvá-lo-á). Era a saída perfeita. Mas, infelizmente, temo que o sonho tenha sido apenas isso: um sonho. E a pergunta continua por responder.
 
Um grande abraço,
 
José Mário Silva
 
Publicado no blog Bibliotecario de Babel
GOTAN - Um tango. Veja o vídeo

tags:
publicado por ardotempo às 11:19 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 20.02.09

Conto inédito de Junia Nogueira de Sá

Dois minutos
 
Junia Nogueira de Sá
 
Dois minutos. É tudo que eu preciso, dois minutos. Preciso falar com você para explicar o que aconteceu. Vai ser rápido, você nem vai se aborrecer, eu prometo. Dois minutos. 
 
Vou contar tudo. Como foi que ele chegou em casa naquele dia, e como foi que eu ouvi os passos na escada da frente. Pesados, pesados. Pelos passos eu já sabia tudo. Juro. Mesmo. Não estou, brincando: os passos dele eu podia ouvir da cama, todas as noites quando ele chegava tarde. E pelo ritmo, pela maneira de pisar na pedra das escadas da frente de casa, pelo peso, entende?, eu já reconhecia o humor dele. 
 
Você não acredita mas não tem problema, porque você nunca acreditou em mim. Nunca. Eu me lembro que, desde a escola, quando eu brigava na hora do intervalo e acabava estapeando alguma das meninas, você não acreditava. Eu voltava para a sala de aula com os cabelos desgrenhados, a maria-chiquinha desfeita, e você achava que eu tinha apanhado em vez de bater. Logo eu, que nunca fui de levar desaforo para casa. Logo eu, que era pequenininha mas resolvia tudo no braço, e você nunca acreditou nisso. Eu batia nas meninas no intervalo, mas acabava apanhando de você no caminho de volta para casa. Enquanto você dizia que eu era mentirosa e tinha de revidar quando apanhasse, eu apanhava. 
 
Mas isso não vem ao caso agora. Não mesmo. Eu quero contar o que aconteceu sem aborrecer você. Como prometi. Dois minutos. Acho que já gastei um, não? Mas me deixe falar. Vou contar tudo. Ouvi os passos dele, parecia um bicho bem grande subindo as escadas. Um. Outro. Mais um. Passos pesados. Como os dinossauros dos filmes, sabe? Eu podia imaginar a barriga gorda, a cara gorda, a bunda gorda dele pesando em cima das pernas, dos pés ecoando na pedra das escadas. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar a respiração pesada dele, a mesma que tantas vezes ouvi tão de perto, ele por cima de mim, a barriga gorda, a cara gorda, minhas mãos tentando tocar a bunda gorda dele sem conseguir. Claro, não? Eu sempre fui pequenininha, você sabe, como ia conseguir abraçar aquela montanha de gente em cima de mim? Minha vontade era tocar a bunda para cravar as unhas; eu tinha um desejo, um delírio melhor dizendo, de que poderia agarrar a bunda gorda com as duas mãos, com as unhas todas enterradas nela, e puxá-lo para cima, e depois lançá-lo longe, bem longe de mim. Mas eu nem alcançava a bunda, então ficava ali, tentando, tentando me distrair e pensar no que eu faria se pudesse, e ele se movimentando, se chacoalhando, se esfregando, sabe como é, resfolegando e suando. Horrível. 
 
Mas isso não vem ao caso também. Droga, acho que falta pouco tempo agora, não? Vou acelerar. Vou contar depressa. Ele subiu as escadas e abriu a porta da frente. Eu cobri a cabeça com o lençol e fechei os olhos. Primeiro, bem apertados. Mas eu me lembrei que ninguém dorme de olhos apertados, e fui soltando. Tentei deixar as pálpebras apenas cerradas, não é bonita esse expressão? Pálpebras cerradas. Eu adoro. Vi num livro, uma história bem romântica. Também pensei que ninguém cobre a cabeça quando dorme. Mas isso eu não sei onde aprendi. Puxei o lençol um pouco para baixo e ouvi, nitidamente, ele virar a chave na porta lá embaixo, pelo lado de dentro. Casa é assim mesmo, não? A gente alonga os ouvidos quando mora numa casa como a minha, numa cidade como esta, violenta, cheia de histórias assombrosas nos jornais, nos telejornais, em qualquer fila em que se entre para fazer qualquer coisa, basta dar uma chance e sempre tem alguém com uma história assombrosa desta cidade. Eu tenho medo, claro. Tento controlar, mas tenho. Passo a noite toda ouvindo os barulhos da casa, da rua, do vizinho da direita, sei identificar exatamente cada um deles, os ouvidos alongados, alongados. Uma janela que se abre. Uma porta que se fecha. Um estalo no telhado por conta do dia quente. Sei até que cachorro é de quem, apenas pelo latido. Mais do que isso: já aprendi que existem latidos de alerta, de aborrecimento, até de pesadelo dos cachorros. Conheço alguns deles, já. É verdade... São latidos diferentes, sabe? O cachorro que não está alertando o dono, não está vendo ninguém estranho pulando o muro ou forçando o portão, apenas como exemplo, um exemplo bobo mas é um exemplo, esse cachorro late frouxo. Uou, uou, uou, uou. Frouxo e rouco, quatro vezes. Pode contar... 
 
Por falar em contar, eu vou contar. Calma. Você nunca tem calma, isso sempre ficou por minha conta: acalmar as coisas. Eu sempre fui mais sensata do que você, não? Não disse esperta, por favor, não confunda. Sensata. E calma. Eu estava calma naquela noite. Tinha ido cedo para a cama, não tinha nada para fazer, o que não chega a ser uma novidade na minha vida. Então eu ouvi a chave girando na porta da frente e tentei ficar imóvel, naturalmente imóvel, como eu disse antes. Puxa, estou com sede. Mas não vou parar para buscar água, senão a história não acaba hoje. Dois minutos, foi o que combinamos, certo? Vou continuar. Minha língua está seca como uma folha no outono, deve estar até amarela, ocre, marrom. Cor de terra, como as das folhas secas. Cor de bosta, que feio. Eu adoraria ter um copo de água aqui perto, mas não tenho, vamos seguir com a história. Eu fui relaxando o corpo, a boca, os olhos, as mãos, as mãos são muito importantes, quando a pessoa dorme, as mãos ficam nem abertas, nem fechadas, já reparou? Conscientemente, fui relaxando tudo. Queria mesmo parecer que estava adormecida. Profundamente adormecida. Fácil. Faço um exercício bem parecido com esse pelo menos três vezes por semana, na aula de yoga, deitada no chão, todas nós deitadas no chão, e a instrutora dizendo: agora, os dedos dos pés. Sabia que eles ficam tensos? Você tem que prestar atenção neles para poder relaxá-los. Agora, a língua dentro da boca. A mesma coisa! Ela está lá, dura, você nem percebe. Dura e seca como agora, porque quando acaba a aula eu sempre tenho sede. Relaxo a língua, e ela se banha na saliva do fundo da boca, é bem gostoso. Não dá para fazer isso aqui e agora, porque eu estou falando. Vou ficar com a sede, que chato. Eu queria tanto um copo de água... E os músculos da pelve então, aqui embaixo, sabe? Ficam tensos como os dedos dos pés. Da primeira vez, a instrutora falou: agora, a vagina. Era para relaxar, mas acho que todo mundo fez como eu. Falou vagina, pronto: os músculos se retesaram como se tivessem ouvido. Travados. Trincados. Uma ou duas riram, e todas caímos na gargalhada. A sessão de relaxamento acabou na hora, e na aula seguinte a instrutora disse: meninas, em vez de vagina, vou falar pelve. É a mesma coisa, vocês vão relaxar os mesmos músculos. Mas não vai acontecer aquele efeito risadinha da aula passada. Funcionou, sabe? 
 
Bom, pelo menos para mim. Vagina é uma palavra feia, esquisita, que não tem a menor graça. Mas me deixa tensa. Isso, a palavra vagina tem esse poder. Quando ouço, quando leio, fico tensa. E no consultório da ginecologista, então? Ela repete umas setecentas vezes por consulta. Pior. Em cima da mesa, ela tem uma peça pequena feita em plástico, espetada num pedestal de metal preso a uma base de madeira onde está escrito aparelho reprodutor feminino. Já entendeu tudo, não? É uma vagina completa, que desemboca num útero que se desdobra em dois ovários pendurados lá em cima. Tudo coloridinho, tudo rosinha, tudo desmontável. Ela usa a peça para explicar os efeitos, os fluxos, os refluxos, os defeitos também. Tira, põe, deixa ficar. Escravos de Jó. No final, volta para a posição correta, ela olhando por cima, literalmente por cima dos óculos, nem sei o que eles fazem pendurados no nariz dela, coloca tudo de volta no lugar. E fica ali aquela vagina, não, vagina não, aquela xoxotinha cor-de-rosa em cima da mesa. Virada pra mim. Para mim! Logo eu, que escuto vagina e fico tensa, passo metade da consulta, sempre, invariavelmente, sendo observada pela xoxotinha. Despelada. Nuinha, a xoxotinha. De plástico, mas bem realzinha. Dava para colocar uma câmera escondidinha naquele buraquinho do meio e filmar a minha cara. Tensa. Devo ficar horrível. Tensa. Nem ia querer me ver nesse filme. Acho que ia ficar com aquela boca pequenininha que eu tenho quando estou tensa, já notou que eu quase engulo os lábios? Minha boca fica um risco, um traço apenas, uma linha fechada entre o nariz e o queixo. Nem parece uma boca. Horrível. 
 
Mas vamos ao que interessa, chega de vagina. Bom, pelo menos eu falo vagina. Ou xoxotinha. É, sempre assim no diminutivo, mais bonitinho. Ele, não. Sempre busssseta, assim, com u e um monte de s, para ficar bem do jeito, você entende, do jeito dele. Jeito escroto. Eu também não gosto de falar escroto, acho vulgar, mas tem palavra melhor para definir ele falando busssseta, me olhando com aqueles olhos meio abertos, meio fechados, aquela boca mole de cerveja, me falando eu quero foder essa sua busssseta hoje? Não tem. Se tem, eu não conheço. Nunca vi nada mais, mais, mais a cara dele do que isso. Onde é que eu estava com a cabeça quando resolvi me casar com ele? Você é que tinha razão, nem apareceu no casamento. Eu me arrependi no meio da festa. Juro. Acredite em mim, no meio da festa eu já estava pensando: isso não vai dar certo. Ele veio dançar comigo, era apenas para fazer as fotos, ele veio dançar e me apertou demais. Eu sou pequenininha, você sabe. Ele me apertando, eu disse: está doendo, eu não consigo nem sorrir para as fotos. Ele respondeu: quieta. Abriu a mão gorda, não era tão gorda mas já era gorda, agarrou a minha bunda por cima do vestido de noiva, ficou bonito, não?, todo mundo vendo, e apertou até que eu gritasse. Todo mundo rindo, achando graça. Eu ri também, mas sabe quando você ri para não chorar? Eu ri. Ainda bem que você não estava lá, ia querer que eu revidasse. Eu podia pisar no pé dele. No meio do peito do pé, com o salto fininho do sapato de noiva, lembra do sapato de noiva? Você comprou comigo. Um tapa na cara. Cuspir? Uma cabeçada na barriga? Qualquer coisa menos rir com ele e com os outros, eu sei. Você ia querer que eu revidasse. 
 
Mas vamos terminar a história. Afinal, você veio aqui para isso. A porta fechada, ele parou de fazer barulho. Completamente. Nem passos pesados, nem leves, nem nada. Não respirava, não se movia. Pelo menos, eu não escutava. Meus ouvidos alongados não identificavam nada, nem um mísero movimento. O cachorro do vizinho latiu, frouxo e rouco. Quatro vezes. O meu respondeu. Mais quatro. Ambos se calaram. Ainda bem, eu pensei. Não tem ninguém arrombando porta, portão, pulando muro. Precisava ouvir o que acontecia lá embaixo. Nada. Nada mesmo. Parecia que a casa inteira, toda, tinha se transportado para um mundo sem sons. Nem novos, nem familiares, sem sons. Sem ruídos. Tudo quieto, tudo esperando. É, porque quando as coisas ficam quietas, elas estão esperando. O leite em cima do fogão, esquentando, espera só a hora de se derramar todo. Meu cachorro é assim. Os passarinhos são assim. Lembra de quando nós éramos crianças e ficávamos sentados no degrau da porta da cozinha, olhando o quintal e a mangueira, e o céu ia ficando preto porque vinha chuva grossa e os passarinhos paravam de cantar? Lembra disso? Mamãe dizia: passarinho aquietou, lá vem tempestade. Assim, tempestade. Mamãe achava que qualquer chuva era uma tempestade, e as tempestades, o fim do mundo. Trancava portas e janelas, colocava as crianças para dentro e sumia pelo corredor, ia rezar no relicário de Santa Bárbara, acender vela, cobrir espelhos com medo dos relâmpagos, guardar panelas de metal bem no fundo do armário para não atrair raios, organizar a casa para o fim do mundo que nunca vinha. Mamãe era maluca. A chuva passava, ela pegava a sombrinha, lembra que o nome do guarda-chuva das mulheres era sombrinha?, e ia para a igreja agradecer por o mundo não ter acabado. Maluca. Enquanto as crianças se esbaldavam nas poças d´água do quintal, ela lá, rezando. Voltava com os joelhos amassados, meio sujos, de uma cor de poeira de igreja, um cinza que eu reconheço até hoje, andando ligeira com a sombrinha fechada. Eu olhava aqueles joelhos e via o sangue por baixo da pele. Verdade. Eu via sangue ali, juntado num lugar só, muito sangue, sangue pisado de quem passou muito tempo de joelhos, toda a culpa do mundo e todas as tempestades da terra pesando nos ombros, amassando os joelhos. E quando ela vinha ligeira, eu olhava os joelhos pontudos e imaginava que eles podiam se abrir, deixar o sangue escapar, e ia ser um sangue em pó. Sangue pisado, me disseram uma vez, vira sangue em pó. Não ia escorrer como nas imagens da igreja, um Jesus, um São Sebastião. Ia sair voando, soprado pelo vento, e ela ralhando com as crianças, colocando todo mundo para dentro de novo, no banho, porque estávamos molhados e poderíamos morrer de resfriado. Maluca e exagerada. 
 
Às vezes tenho saudades da mamãe. Tenho uma foto dela em casa, de quando papai era vivo ainda, eles estão juntos, ninguém tem cara de feliz na foto, eu devia ser um bebê de colo ainda, está num porta-retratos no aparador ao lado da entrada. Ah, a entrada da casa. Desculpe, pois é, eu estava contando que ele havia entrado e estava tão quieto, mas tão quieto que eu sabia que alguma coisa iria acontecer. Tinha certeza. Uma tempestade, daquelas da mamãe. Fiquei esperando. Nada. Mais um pouco. Nada ainda. Comecei a achar que eu tinha sonhado. Estava acordada, mas tinha sonhado com os passos dele nas escadas de pedra, a chave na porta. Sonho não: esse homem chegando em casa nunca foi sonho. Pesadelo. Pesadelo tem a ver com peso? Eu acho que tem, sabe. Nesse caso, tudo a ver. Pesadelo, pesado, peso. Toneladas de peso em cima de mim. Aí foi que eu percebi que o silêncio também estava pesando. Li isso num livro, mas achei tão ridículo na hora... Silêncio pesado. Mas existe. Eu comecei a prestar atenção no peso do silêncio, e ele foi crescendo. Eu não ouvia mais nada, nem a minha própria respiração. Nada, acredite. Nada. Foi então que eu senti o cheiro. Um cheiro quente e metálico que eu não reconheci na primeira vez que invadiu meu nariz. Era familiar, e era bom, mas eu não reconheci. E então ele veio de novo, um cheiro de tempestade, não, de tempestade não. Um cheiro de trovão. Melhor ainda, um cheiro de raio. Tem gente que acha que é a mesma coisa; não é. O que foi, você pensa que raio não tem cheiro? Tem sim. É quente, metálico, imenso. O que foi agora,  você pensa também que cheiro não tem tamanho? Esse tinha. Enorme. Entranhou em tudo, no meu nariz, nas minhas roupas, até nas de baixo, nos lençóis, nos meus cabelos. Cheira aqui se você quiser, ainda está nos cabelos. Vá até a minha casa, ele ainda está no quarto, eu sei que está. Quantos dias se passaram? Dois? Três? Está lá, o cheiro. No começo era bom, eu já disse, mas agora estou enjoada dele.  É nojento. Eu lavo, lavo, lavo e ele não sai. Grudou em mim. Você está sentindo? Acho que não. Você está tão longe, mas eu estou sentindo, sim. Acredite. Você acredita em mim? Acredita? 
 
Escute bem agora, porque eu vou contar como foi. Eu prometi, você veio até aqui, eu vou contar. Foi o cheiro que me fez sair da cama. Nenhum som, nenhum ruído, nenhum barulho. O cheiro. E  me lembrei dele porque era o mesmo cheiro de sangue que eu sentia quando nós voltávamos da escola, e você me batia, e meu nariz sangrava escorrendo, não o sangue em pó da mamãe, e você brigava comigo, o tempo todo, a volta toda para casa. O mesmo cheiro bom, familiar, eu gostava de importar para você, eu gostava de contar para você, eu gostava de ser alguém para você, de ser alguém em quem você batesse, você me batia porque queria que eu fosse como você. Queria que eu revidasse tudo, tudo, tudo na vida. O bem e o mal. Acho que era isso. Então eu senti o cheiro e me lembrei de você, e me levantei da cama, e quando dei um passo, tropecei nele caído no chão, estirado. Senti um calor úmido nos pés e o cheiro ficando cada vez maior, maior, maior. Encheu o quarto. Entranhou em mim. Eu fiquei ali parada, em pé, esperando, até que alguém chegasse. Não sei quem foi a primeira pessoa, nem a segunda, nem se isso demorou. Eu estava esperando, apenas. Estava com medo de andar no escuro, e estava escutando os ruídos da casa, só isso. Os cachorros latiram muito, todos eles, da vizinhança inteira. Muito. Eu estava com medo deles também. Eram latidos que eu não conhecia, não sabia o que podiam significar. Latidos estranhos. Às vezes eles chamavam meu nome latindo. Ana, Ana, Ana. Eu me lembro de você chegando, é a única pessoa de quem me lembro no quarto. Você também disse: Ana. Ana, o que é isso?, acho que era essa a frase. Você não entendeu. Eu precisava explicar. Dois minutos. Eu me lembro do cheiro e de você, só lembro disso. Estava querendo que você chegasse depressa para acender a luz, mandar embora o meu medo, para você ver o que eu tinha feito: ele estava caído no chão, acho que estava morto, não sei o que aconteceu. Mas quem escreveu nas costas gordas dele fui eu, isso eu sei. Com a pontinha da faca: Ana. A sua pequenininha. Uma assinaturazinha. Eu revidei. Acredita agora?
 
 
© Junia Nogueira de Sá
publicado por ardotempo às 02:10 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Retratos Notáveis - 26

Aquarelista dos pássaros

 

 

 

Fotografia: Retrato de Isolde Bosak (Porto Alegre) - 2007

Fotógrafa: Daniela Montano

publicado por ardotempo às 02:06 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 19.02.09

Alvorada

Fotografia 

 

 

Mário Castello - Palácio da Alvorada, Brasília - Fotografia - Projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer - Brasília, 2006

publicado por ardotempo às 16:30 | Comentar | Adicionar

Jean-Michel Basquiat e Madonna - Fotografia

Namorados

 

 

Fotografia - Retrato de Jean-Michel Basquiat e Madonna - Sem data/ sem autoria definida

publicado por ardotempo às 16:00 | Comentar | Adicionar

A Coleção Yves Saint-Laurent

Coleção de arte de Yves Saint Laurent vai a leilão em Paris
 
Daniela Fernandes, de Londres (BBC Brasil)
 
A coleção, que será leiloada pela Christie's, foi estimada entre 200 e 300 milhões de euros.
"Se o leilão ultrapassar 200 milhões de euros, será a maior venda de uma coleção unitária já realizada até hoje", afirmou François Curiel, presidente da Christie's na Europa.
 
Durante cerca de 40 anos, Yves Saint Laurent e seu companheiro, Pierre Bergé - co-fundador e ex-presidente da famosa grife que leva o nome do estilista - reuniram peças que poderiam estar expostas em coleções de museus.
 
Ao todo, serão leiloados em Paris 733 obras, entre quadros de arte moderna e pinturas do século 19, móveis art déco raros, bronzes barrocos, pratarias dos séculos 16 e 17, antiguidades arqueológicas, arte asiática e outros objetos preciosos.
 
 
 
 
A grande maioria das obras da coleção abrange seis séculos de história da arte. É justamente essa mistura de épocas e estilos e a importância de muitas obras, além do excelente estado de conservação, que caracterizam a coleção, tida como excepcional. Especialistas do mercado de arte estimam que é praticamente impossível refazer uma coleção pessoal desse porte nos dias de hoje.
 
Entre os quadros estão telas de Picasso, Henry Matisse, Piet Mondrian, Goya, e De Chirico.
O leilão será realizado no prestigioso museu do Grand Palais, em Paris. 
 
 
 
 
A coleção de Yves Saint Laurent também inclui antiguidades, como um sarcófago egípcio do século 4 a.C. e um torso de mármore romano datado dos séculos 1 e 2, que decorava a majestosa entrada do apartamento de Saint Laurent, na rue Babylone, em Paris.
Entre as obras a serem colocadas sob o martelo estão duas raríssimas esculturas de bronze chinesas - de uma cabeça de coelho e outra de rato, da dinastia Qing (século 18) - que foram alvo de grande polêmica depois que o governo chinês exigiu sua devolução. O catálogo do leilão reúne cinco volumes. 
 
Segundo Pierre Bergé, a renda obtida com a venda será utilizada para criar uma fundação de pesquisas sobre Aids e outras doenças. A coleção ficará aberta ao público no Grand Palais, em Paris, entre o próximo sábado e o dia 23, data do início do leilão.
 
Daniela Fernandes - Publicado no blog BBC Brasil

Pinturas de Piet Mondrian (Composição em azul, vermelho, amarelo e preto - Óleo sobre tela, Paris 1922) e Henry Matisse (O tapete azul e rosa - Óleo sobre tela, Paris 1911) - Coleção Yves Saint-Laurent)

publicado por ardotempo às 15:43 | Comentar | Adicionar

Conto de Aldyr Garcia Schlee - em espanhol

El día en que el Papa fue a Melo
 
Aldyr Garcia Schlee
 
CUENTO II
(en castellano, este cuento se llamará SOLEDAD DE JESUS MARÍA; en portugués también, aunque sin el mismo alcance del significado)
 
 
 
 
SOLEDAD DE JESUS MARÍA
 
El día en que el Papa fue a Melo, desde temprano se oía el movimiento: un rumor sin fin, distinto de lo de las otras mañanas, y que no permitía identificar con seguridad si era de todos los autos y camiones y ómnibus que llegaban o si era de una poderosa máquina encendida quién sabe donde o una descomunal cascada tragándoselo a todo o el sordo tronar de una tormenta armándose a la distancia. Los ronquidos más próximos, de los motores, o — un poco más lejos — algunas bocinas, voces, tropel de caballos, un silbato, pasos allá afuera, gritos, una acelerada fuerte, los ruidos aumentando y disminuyendo en los oídos, las paredes y la casa toda como si temblasen de vez en cuando, como cuando pasaban gimiendo los gigantescos camiones cargados con bananas o con autos importados de Brasil.
 
Era como si el frigorífico funcionara y todos pasasen alegres para el trabajo en las viejas mañanas doradas de sol. Venían todos en bandadas coloridas con sus botas blancas — la sirena sonaba a las siete — ; los lecheros pasaban con sus carros, pasaban las jardineras de las panaderías, los soldados a caballo, peones, empleadas domésticas, gente de comercio, todos con sus ropas, sus sonrisas y sus adioses.
 
¡Hola compadre! ¡Adiós! ¿Cómo le va?
 
Los rostros sonrosados, los ojos brillantes, las manos diciendo cosas. El camino vecinal recién abierto en el pasto verde del campo, para servir a las casitas iguales, las viviendas donde cada uno trataba de arreglarse y se acomodaba como podía entre las paredes de ladrillos sin revoque, en el suelo grisáceo de cemento, bajo los tejados negros de cartón alquitranado.
 
Las casas sombrías quedaron atrás y fueron ganando colores, una allí, otra aquí: paredes blancas, flores en las ventanas, puertas azules, rosales, gatas mariposa, banderas de fútbol, retratos de casamiento, colchas, sofá-camas, limoneros cargados, gallineros, ropas en la cuerda... Pero el frigorífico nunca pasó de una esperanza de olvidar el esqueleto abandonado del Saladero María Elizonda, las varas para el charque abandonadas y vacías en los campos amarillentos, 13.600 reses muertas para vender 1.000 toneladas de tasajo y dar ocupación a una 300 personas...
 
A fin de cuentas, cuando se iba de mal en peor, cargaron camiones y camiones con una partida de charque no exportada y la tiraron a los chanchos. Jesús María se acuerda: vio todo. Jesús María era un gurí cuando empezó a trabajar en la charqueada. Ahora, al levantarse de la cama, el día en que el Papa fue a Meló, siente en las manos y en los pies las marcas que la sal gruesa le dejara para siempre, callos de dolor ardiente de la piel marchita y blanca, de las grietas, de las heridas que se abrían como bocas, de los días sin remedio y sin sueldo.
 
Jesús María extiende la mano y enciende la radio: "...que estaremos presentes y seguiremos sus palabras por la TV y la radio... La Voz de Melo, con todo el pueblo de esta ciudad y de este departamento, se complace en unirse a la voz de todo el pueblo uruguayo y decirle con toda emoción: ¡Bienvenido Juan Pablo Segundo! ¡Bienvenido, Mensajero de la Paz!".
 
Las calles ya deben estar llenas de gente. Pero es temprano aún: hay tiempo para cebar un mate, para matear un poco mientras las gentes se atropellan y arman un fragor de maquinarias, de cascadas, de truenos que algunas veces hasta hacen estremecer las paredes de la casa, entre los sones tan claros y tan conocidos de un perro asustado, de un gallo tardío, de una vecina alegre. Jesús María va hasta la ventana, en busca de otras mañanas; en busca, por lo menos, del ladrido del perro asustado, del cantar del gallo, de la risotada de la vecina.
 
Está muy, muy frío. Se siente en la humedad el cielo nuboso, el sol ausente, la cerrazón que a todo domina.
 
Alguien dice: "¡Buenas, Jesús María!"
 
Pasa un niño llorando; Jesús María dice: "¡Buenas!" (pasa todo el mundo frente a su ventana, camino a la explanada de la Concordia).
 
"...Más allá de lo que significa la figura de un Sumo Pontífice para los hombres de fe, Juan Pablo II sobresale de una manera especial entre todos los personajes del presente por su continua lucha por el bien común, por la paz mundial, por la justicia entre los hombres y los pueblos", dice la radio.
 
Alguien dice: "¡Hola Jesús María!" Y le contesta él: "¡Hola, Soledad!"
 
Soledad se ríe. Ríe, pregunta si no va él a ver al Papa; y se ríe. Es la vecina que siempre está riendo. Jesús María compone el pecho y dice apenas: bueno. Entonces, si no llega a hacerse un silencio entre ambos es por culpa de los ruidos de la calle. Pero Jesús María percibe que Soledad ya no está más en la acera, percibe que ella cerró la puerta en silencio y se fue para adentro.
 
Jesús María está ciego desde hace mucho tiempo. Desde una noche de verano en que le pusieron acetona o ácido de batería o algún otro líquido grueso en los ojos pensando que se trataba de colirio. Aquello quemó como si le hubiesen metido los dedos y las manos con las uñas por dentro de las vistas y le hubiesen arrancado los ojos junto con pedazos de los sesos y de las tripas. Fue una aflicción imposible de contar, de no poder siquiera gritar, de estirar el cuerpo en la cama como una tabla, de sólo mover las puntas de los pies. No hubo compresa ni ungüento que le valiese. Lo último que Jesús María vio, después de un rostro con bigotes y del pico del cuentagotas, fue su propio pestañeo.
 
Continúa la radio: "...importancia de estas fechas. Porque Jesucristo vivió, murió y resucitó por nosotros los hombres, por cada persona humana. Cuando permitió que le martirizaran y mataran, lo hizo para pagar por las faltas de cada uno de nosotros, también por las que cometiste tú, oyente".
 
Jesús María había trabajado hasta al oscurecer con otros dos peones en una labranza. Era ya noche alta cuando llegaron de vuelta a las casas. Había cascarudos y mariposas en cantidad en torno de los focos de luz. Hacía un calor bárbaro. Los cuerpos estaban sudorosos y cansados. Él, con las manos sucias, se restregó los ojos; los ojos empezaron a arder. Entonces cayó en el disparate de decir que se había quemado las vistas con las manos sucias de abono. Por eso se les ocurrió aquello de echarle el colirio.
 
Ahora vive midiendo sus pasos, tocando las cosas, palpando, vive de sonidos y olores, y de la memoria iluminada por todos los blancos, colorida por todos los azules y dorada por todos los amarillos que viera un día en las banderas desplegadas, en los cielos, en los ríos y en el sol. Vive de la fragancia de los campos y de la entonación de las voces, adivinando todos los tonos de verdes y todos los tipos de rostro que pudo distinguir y que supo identificar.
 
Hace mucho frío. Es mejor cerrar la ventana. Las personas se dirigen al terraplén de la Concordia, allí cerca. El ruido de un carro se distingue claramente de los demás. Pero la radio está diciendo que todo el tránsito de vehículos será desviado y que luego nadie podrá circular por las calles, salvo a pie.
 
Dice la radio: "Es enorme el entusiasmo que está provocando esta histórica e importante visita a nuestro departamento. Acá, en la explanada de la Concordia, desde donde Juan Pablo II hablará a nuestro pueblo, hay ya una innumerable muchedumbre".
 
El Papa vendrá en un palanquín, cargado en brazos como los santos en procesión. La gente rezará el rosario entre avemarías y padrenuestros. Habrá lisiados y enfermos a la espera de un milagro.
 
Jesús María hace fuerza para imaginar al Papa sin los anteojos de Pío XII, hace fuerza por verlo como viera a Nuestro Señor de los Pasos llevado al encuentro de la Virgen. Jesús María piensa en los desengañados de toda suerte, en gente cargada en catre, llevada en brazos, gente de muletas, sillas de ruedas, mancos, mutilados, sordos, mudos, gangosos... Y no piensa en milagro.
 
Los ojos sin luz habían sido corroídos, habían sido carcomidos, y ya no existía en ellos una mínima chispa que por milagro les restituyese los brillos y colores, las formas que poblaban su mundo de recuerdos y de sueños y que eran, al mismo tiempo, consuelo y desesperanza.
 
Vivía en la certeza de que sólo la memoria le permitía ver, vivía en el miedo de que se apagase esa memoria que le enseñara definitivamente a mirar hacia atrás; vivía seguro de que la imaginación también le permitía ver - pero temía que incluso ella se fuese, la imaginación que le daba la alegría de mirar adelante. Con todo, el miedo mayor que lo acuciaba y que no confiaba a nadie - ni podía explicar por qué lo tenía -, era el miedo de un día ya no poder ver, sin los recuerdos y los sueños con que veía nítidamente todo.
 
La radio avisa que el Papa llegará dentro de cinco minutos; anuncia el coro y la orquesta municipal. Una voz desgañitada, la conocida voz de Sergio Sánchez, de CW 53, comienza a gritar:
 
¡Juan/paaa/bloa/mii/go//elpuee/bloes/tá/con/tiii/go!
 
Mucha gente repite en coro:
 
¡Juan/paaa/bloa/mii/go//elpuee/bloes/tá/con/tiii/go!
 
Antes de cinco minutos Soledad llamará en la ventana como sólo ella sabe llamar. Jesús María abrirá la ventana y se desbrozará hacia la calle en la renovada mañana de poca gente y ningún barullo; traerá la radio para que Soledad la comparta con él como en las tardes de fútbol y en las noches de radioteatro. Y quedarán los dos sabiéndolo todo; ella riendo, riendo mucho; y él allí, muy cercano a ella.
 
La radio dirá: "Juan Pablo viene a nosotros".
 
Dirá Juan Pablo II: "Que Dios bendiga sus hogares cristianos donde reina el amor y la paz".
 
Soledad no dirá nada. Quedará quieta. Luego estrechará fuertemente el brazo de Jesús María, sollozando.
 
Jesús María va, inquieto, hasta la ventana. Ya nadie pasa, cesó todo movimiento, sólo se oye la radio y unas voces muy distantes.
 
El Papa está llegando a la explanada de la Concordia.

 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
© Aldyr Garcia Schlee
Conto publicado originalmente no livro El día en que el Papa fue a Melo, em 1991, pela Ediciones de la Banda Oriental, de Montevideo Uruguay. Foi vertido ao português pelo próprio autor e editado no Brasil pela Editora Mercado Aberto, de Porto Alegre RS Brasil, em 1999.
Ilustração de Pablo Benavídez, Escenas Cotidianas - Desenho a tinta china e gouache sobre cartão.
publicado por ardotempo às 00:14 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quarta-feira, 18.02.09

Octopus - Mauro Holanda

Série Alma Descarnada

 

 

 

 

 

Polvo / Octopus - Fotografia de Mauro Holanda - Série Alma Descarnada (São Paulo) 2009

publicado por ardotempo às 17:40 | Comentar | Adicionar

A Arte não deixa esquecer

Césio, Rua 57

 

Neste país desmemoriado vez em quando precisamos levantar registros de fatos importantes que acabam caindo no esquecimento.
 
O artista plástico goiano Siron Franco divulgou uma série de pinturas, desenhos e gravuras  que têm como tema a tragédia da Rua 57, ocorrida em Goiânia, em 1987, quando um catador de sucatas levou para casa umas peças estranhas que encontrou na demolição de uma clínica. Ao romper uma esfera metálica, encontrou em seu interior o núcleo composto de Césio 137, material altamente radioativo.
 
A ignorância do catador aliou-se ao deslumbramento ao observar que o material brilhava no escuro. Passou sua mão naquele estranho material  e o esfregou no corpo de sua companheira. Para eles, foi um momento mágico ver que seus corpos brilhavam. Como ele mesmo declarou, deu um tesão dos diabos, copularam em seguida.
 
Depois, foi a vez dos filhos também se lambusarem de césio, o mesmo acontecendo com os animais domésticos que tinham por perto.
 
As conseqüências não demoraram: alta contaminação radioativa, provocando tumores, leucemia, queimaduras, deformações e seqüelas previsíveis.
 

© Orlando Maretti, jornalista  (Brasília), 2009

 

 

Pintura de Siron Franco - Outros Gritos - Óleo sobre tela, com colagem de chapas radiográficas / Césio 137 (Goiânia), 1996 

publicado por ardotempo às 17:20 | Comentar | Adicionar

um.desenho.por.semana.09

 09.fev.semana - 03

 

 

publicado por ardotempo às 11:22 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 17.02.09

Os desenhos do Césio - Mostra e livro de Siron Franco

Os desenhos - Césio, Rua 57

 

Em 1987 aconteceu a tragédia da radioatividade vazada em Goiânia, por repulsiva negligência e ignorância daqueles que estavam encarregados de proteger a população e cuidar de sua plena segurança e saúde (onde estarão eles, os culpados silenciosos, neste preciso momento?), o que resultou nas diversas vítimas fatais, as vidas insubstituíveis. Essa sempre será a tragédia pior e incontornável, e o fato, insuportável, ainda estigmatizou a região por muito tempo, causando pânico nos habitantes e medo nos vizinhos distantes.

 

Siron realizou, no calor dos acontecimentos, a grande mostra de pintura -  Césio.

 

Posteriormente, 13 anos após, em 2.000, fez a exposição Vestígios do Césio, em Porto Alegre (Usina do Gasômetro) com os seus objetos escultórios, as camas hospitalares de ferro oxidado, com os maciços blocos de concreto a sufocarem os resíduos das tristes memórias, as mais pungentes e escancaradas daquela tragédia, as que não se faziam esquecer.

 

Agora Siron mostra o conjunto inédito de desenhos realizados em óleo (predominantemente em cor prata) sobre cartão Fabrianno negro, ao mesmo momento em que ele pintava a série Césio, sobre telas, nos meses colados aos acontecimentos, ainda em 1987.  Esses desenhos, documentos estéticos preciosos, agora comporão um livro que está sendo preparado e escrito por Agnaldo Farias, para ser lançado ainda em 2009, em acompanhamento a uma grande mostra desses mesmos desenhos, espontâneos, ágeis e de arquitetura crucial para a série de pinturas que Siron Franco progredia ao mesmo tempo.

 

Siron Franco antecipa a notícia do livro e cede ao blog ARdoTEmpo as imagens de alguns desses desenhos que serão profundamente analisados e descritos no livro pelo curador e especialista em arte contemporânea, Agnaldo Farias, que tem a missão pela letra e luz sobre o conjunto que permacera até então secreto, nos bastidores do ateliê do artista.

 

O professor e crítico de arte contemporânea escreverá sobre o conjunto da obra. Nesses desenhos Siron Franco optou pelo fundo em cartão Fabrianno em cor negra, escolheu o branco e a cor prata para representar graficamente o estágio e presença da contaminação, uma vez que essa foi a aparência fantasmal e fosforescente que revestiu as vítimas e o ambiente, o artista reduziu a paleta cromática a uns poucos tons terrosos e ao amarelo, símbolo de alerta atômico. Estruturou as plantas baixas arquitetônicas dos espaços vetados, os que foram interditados: a casa, a oficina de bicicletas, a quadra, o hospital... Nesse espaço, protagonizaram as vidas alarmadas, as vítimas, as crianças, o cachorro, os animais, os objetos, as salas de atendimento do hospital, tudo o que foi posteriormente neutralizado, oculto,  afundado em volumes de concreto...

 

Veja os desenhos de Siron Franco:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

© Desenhos de Siron Franco - Césio, Rua 57 (Goiânia, 1987)

publicado por ardotempo às 00:01 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Fevereiro 2009

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9

Posts recentes

Arquivos

tags

Links