Quarta-feira, 21.01.09

O Paraíso deve ser no gênero da Marijú

Já escrevi isto amanhã
 
António Lobo Antunes
 
Escrevo esta crónica num caderno pautado, eu que nunca escrevo em papel pautado porque me lembra a escola, e volto a ter uma caligrafia infantil.
 
Era uma escola pequena, a minha, com um professor tirânico que puxava pêlos do nariz: ramal da Beira Baixa, afluentes da margem esquerda do Tejo, o nome predicativo do sujeito.
 
- Diz o nome predicativo do sujeito, idiota
 
e nós lá gaguejávamos o nome predicativo do sujeito, cheios de dúvidas, a hesitar. O professor escolhia um pêlo, desprezando-nos
 
- Nunca hás-de ser ninguém na vida e o facto do nome predicativo do sujeito me impedir de ser alguém na vida preocupava-me. Que raio de importância tão grande o nome predicativo do sujeito tem? Ou o ramal da Beira Baixa? Ou os afluentes da margem esquerda do Tejo?
 
Meu Deus a quantidade de coisas que existem entre mim e o meu futuro. Outras frustrações: não usar óculos, nunca ter partido uma perna.
 
Aparelho para os dentes sim, o que me compensava um bocadinho.
 
E uma funda para a hérnia, mas isso era um adereço invisível, sobretudo comparado com uma perna em gesso, com os dedos do pé de fora, de unhas sujas de branco. E canadianas, que sorte. E coxear, que felicidade. E a maravilha de poder dar com elas num rabo a jeito. E autografarem-me o gesso. Olha, uma mosca pequenina agora, à volta da minha mão. Igual às grandes mas minúscula. Poisada na caneca. Poisada no tampo. Poisada na manga do blusão.
 
O mapa ao lado do quadro, com os países de cores diferentes. A Alemanha amarela, a Noruega roxa. Portugal não me recordo. Uma bolinha com um ponto ao centro em Lisboa, uma bolinha menor, com um ponto também ao centro, no Porto. O mar azul. Ilhas e ilhas: os Açores, Madagáscar.
 
A Indonésia dúzias. O professor
 
Estás a olhar para ontem, idiota?
 
E é verdade, estou a olhar para ontem, sempre olhei para ontem. Até o amanhã é ontem às vezes. Charlie Parker interrompeu uma vez uma gravação, atirando com o saxofone, a gritar Já toquei isto amanhã e ninguém foi capaz de convencê-lo a continuar. Como eu o compreendo, como às vezes sinto Já escrevi isto amanhã e rasgo tudo. Um trabalho difícil, quase tão difícil como viver. Acho que não sei viver. Acho que não sei viver? Acho que não sei viver como os outros vivem. Que dias os meus, repletos de surpresas, de mistérios. De espantos.
 
Sou um saloio: não há montra de loja que não me encante, sobretudo as lojinhas minúsculas de certos bairros, mercearias, roupas, brinquedos.
 
Apetece-me logo comprar vassouras, aipo, um macaco de corda, a camisa mais feia que descobrir na montra. A beleza das coisas feias fascina-me. O seu ar de desamparo, coitadas. A cinquenta metros da casa dos meus pais existia um estabelecimento de vestidos e artigos correlativos chamado Marijú. O Paraíso deve ser no género da Marijú, com empregadas a cheirarem bem que me faziam cócegas na alma. Não se calcula o que a Marijú alegrou a minha infância. A Marijú, do meu ponto de vista, era o centro do quarteirão. Para indignação minha a minha mãe considerava a Marijú o supra-sumo do horrível, a ignorante. Em matéria de gosto os meus pais, aliás, deixavam imenso a desejar: detestavam quadros com gatinhos a saírem de botas velhas, palhaços de porcelana a chorarem, dálmatas cromados em tamanho natural. Onde se viu tanta cegueira? Serras do sistema galaico-duriense: Peneda, Soajo, Gerez, Larouco, Falperra, etc. Ficou tudo na minha cabeça graças ao medo do professor, conhecimentos utilíssimos, até ele apreciava a Marijú: tenho de concordar que em espírito artístico superava os meus pais.
 
 
O problema era o nome predicativo do sujeito. Sem o nome predicativo do sujeito a minha infância teria sido perfeita. Pretéritos, pronomes, tabuada. E os olhos de Charlie Parker tristíssimos nas fotografias. Escrever como ele toca. Vá, António, levanta-te do papel com as palavras: quem disse que não eras capaz, és capaz, levanta-te do papel com as palavras. Fecha os olhos e elas saem sozinhas. As palavras são notas, repara. Não penses em nada, abandona-te. O mundo inteiro está dentro de ti. Anteontem almoçaste com os teus camaradas.
 
Faltava o Zé
 
(duas fotografias dele à minha frente)
 
estamos amputados do Zé, mas que milagre de sintonia entre nós desde os confins de Angola. Que nenhum de vocês se atreva a morrer como o Zé, ouviram? Primeiro mato-vos outra vez e a seguir ralho-vos. Não quero ficar mais pobre ainda. O Zé fardado de coronel na participação do jornal, com versos de Goethe por baixo. A propósito: nunca falamos de Goethe, pois não?
 
A Marijú. O ramal da Beira Baixa. A primeira vez que vi uma mulher nua e me apeteceu ajoelhar: não tocar-lhe, não beijá-la, ajoelhar apenas. E ficar que tempos assim.
O único milagre que conheço. O professor
 
- Estás a olhar para ontem?
 
e estou de facto. Neste preciso momento, senhor professor, só me apetece olhar para ontem.
 
© António Lobo Antunes
Fotografia de Pierre Yves Refalo (Paris), 2008
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publicado por ardotempo às 13:07 | Comentar | Adicionar

Esperança é uma palavra que voa

Um discurso ao vento forte
 
Ney Gastal
 
Discurso é discurso, nada mais que discurso.
Palavras o vento leva e o tempo esquece.
Nem sempre - melhor dizer "quase nunca" - há coerência entre o dito e o feito.
Palavras são prostitutas baratas, disponíveis a qualquer um que saiba mexer com elas.
Poucos sabem.
Mais frágil que o conteúdo das palavras é uma coisa chamada esperança.
Nem vento é preciso para que desapareça.
O cidadão Barack Obama mexeu muito com as duas coisas.
Palavras e esperança.
Acariciou-as, ajeitou-as, utilizou-as.
Convenceu muita gente, dentro e fora dos Estados Unidos.
Agora é o presidente daquele que, para o bem ou para o mal, é o país mais poderoso do mundo.
Será Barack coerente com o que disse e prometeu, ou não passou de um usuário comum de ambas?
Ainda é difícil saber.
Para o mundo, é melhor acreditar que ele seja sincero.
Seu discurso de posse foi o melhor de muitos anos, o que também não quer dizer muita coisa, além do fato sabido de que tem os melhores escritores.
Seus problemas são os maiores que um presidente enfrentou em muitos anos, e isso sim vai dizer muito em termos práticos.
Até agora ele foi uma promessa.
Na posse, comportou-se como um estadista.
Resta saber se na prática vai ser um grande presidente ou uma grande decepção.
A ele não haverá a opção pelo meio termo.
E todos nós pagaremos pelo que ele for.
 
© Ney Gastal - jornalista
publicado por ardotempo às 12:15 | Comentar | Adicionar

Carta

Pintura

 

 

Carta - Pintura de Alfredo Aquino - Óleo sobre tela

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publicado por ardotempo às 11:59 | Comentar | Adicionar

Pintura de Daniel Senise

Aquarela

 

 

Vai que nós levamos as partes que te faltam - Aquarela sobre papel - Daniel Senise (Rio de Janeiro) 2008

publicado por ardotempo às 11:20 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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