Terça-feira, 20.01.09

Teatro Amazonas

Fotografia

 

 

Teatro Amazonas - Fotografia de Mário Castello  (Amazonas, Brasil) - 2008

publicado por ardotempo às 16:15 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar

Talento em síntese

38 miniaturas

 

José Mário Silva 

 

 

Pequeníssimo conto (quase bíblico)
No princípio, era o Verbo. Ou outra coisa qualquer. Deus já não se lembra.
 
Fósforos
Dentro de cada caixa de fósforos, dezenas de incêndios adormecidos.

 

 

América
A América, para K, é o equívoco. Colombo procurava a Índia e encontrou a América. «Sei bem o que isso é», diz K, que ao longo da vida também procurou umas coisas e encontrou outras.
 
Arte da guerra
Não confundir o fio da espada com o fio do horizonte.
 
À la carte
Foi sincero: o que ele desejava, para usar a expressão da empregada de mesa, nunca constaria da ementa.
 
Enxoval
Para o seu casamento levou tudo o que era suposto (excepto a paixão).
 
Caçador nocturno
Regressa de madrugada, os perdigueiros exaustos, meia dúzia de estrelas à cintura.
 
Winterreise
A meio do recital, inexplicavelmente, começou a nevar dentro da sobreaquecida sala de concertos.
 
Assalto ao museu
Cúmulo da sofisticação: alguém conseguir roubar, não os quadros de Monet, mas apenas os nenúfares dos quadros de Monet.
 
Parafilia
Tatuava no corpo uma fragilidade imaginária: nódoas negras, cicatrizes, fracturas expostas desenhadas sobre a pele.
 
Gesso
Ao fim da manhã, visitou o amigo no hospital e assinou-lhe o gesso (mesmo por baixo da frase: «Fui eu que te empurrei»).
 
Catedral
Só as gárgulas conhecem todos os segredos de uma cidade.
 
Terramoto
Quando o grande terramoto sacudiu a cidade, com o fragor de um castigo bíblico, a primeira coisa em que pensou foi no lustre da avó Cremilde, tão antigo e de cristal.
 
Caixa negra
No rescaldo de cada relação falhada, lia de novo todos os e-mails e SMS, à procura do erro humano.
 
Fatalidade
O rosto que mereces está sempre noutro espelho.
 
Manhã
Ao acordar, C teve um pressentimento: «hoje vou morrer.» Só depois, muito depois, lhe explicaram que nem sequer tinha acordado.
 
Homodiegético
Há histórias que puxam tudo lá para dentro. Até o narrador.
 
Noções de geometria afectiva
Os triângulos amorosos nunca são equiláteros.
 
Ressaca de uma história de amor
O coração arrancado, preso ao peito com velcro.
 
Tacto
B ainda espera toques que não sejam de telemóvel.
 
Crise de identidade
Andava tão confuso que criou um heterónimo chamado Fernando Pessoa.
 
Espírito Santo
Ao ver uma pomba morta no chão, enquanto em Roma elegiam o novo Papa, suspeitou que algo não correra como previsto.
 
Serviço de socorro a náufragos
As miúdas giras iam saindo da água - ilesas, magníficas, botticellianas - enquanto ele ficava a tarde inteira junto à bandeira verde, fazendo respiração boca-a-boca a septuagenárias e homens de bigode.
 
Adagio molto con paura
Pesadelo do primeiro violino: ser enterrado vivo no poço da orquestra.
 
Roleta russa
Já perdera tudo na vida. Não queria perder aquela bala.
 
Hades
Já lá estavam todos há muito tempo, ignorando ainda que não regressariam nunca.
 
O quadro que Vermeer não pintou
Um xadrezista na penumbra, mão no ar, ponderando o gambito.
 
Nonagenário
De manhã muito cedo, o senhor W sai à rua com a morte atrás, puxada pela trela.
 
Na prancha mais alta
Lembro-me que os outros rapazes ignoravam olimpicamente as leis de Newton, antes de cairem na água como maçãs.
 
Bailarina
Uma noite, durante o salto, apercebeu-se que os braços dele não estavam lá.
 
Berlindes
Depois de alinhadas três pequenas covas na terra seca, esperávamos ansiosos a inconfundível música das esferas.
 
Janela de oportunidade
Estava aberta, a dois passos, escancarada. E o gestor suicida aproveitou-a.
 
Hockney
"Nesta casa", disse V, irónica, «a piscina fica na sala, mesmo por cima do sofá».
 
Ritual
Colhia romãs de madrugada, antes que explodissem.
 
Soldado
Extirparam-lhe o medo do corpo, como quem arranca um quisto. E é esse vazio deixado pelo medo que o assusta.
 
A fasquia
Em tudo aquilo a que se lança, coloca a fasquia alta, cada vez mais alta, altíssima. Tão alta que com o tempo deixa de a ver.
 
Florista
Também ela murcha de repente, ao fim do dia, sem que ninguém perceba porquê.
 
O que está no meio não interessa
Era uma vez e foram felizes para sempre.
 
 
© Publicado no livro Efeito Borboleta, de José Mário Silva - Oficina do livro, 2008

publicado por ardotempo às 15:33 | Comentar | Adicionar

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