Estrutura, voz e narração
Gonçalo Mira
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, pode definir-se, de um modo muito sucinto e, consequentemente, injusto, como o relato da vida de jagunçagem de Riobaldo.
Esta personagem central e narrador, faz o seu relato a uma outra personagem cujas intervenções não são apresentadas. Logo nas primeiras linhas do texto, percebe-se que há uma personagem que se dirige a outra:
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja."
Trata-se, portanto, de um diálogo oculto, uma vez que representa uma conversa entre duas personagens (ainda que uma assuma mais o papel de ouvinte) mas o leitor só tem acesso ao discurso de uma delas.
Assim, o narrador é Riobaldo e todo o romance é a sua longa fala, dirigida a um viajante que ali passou e que com ele meteu conversa. Este destinatário – cuja única designação que se lhe conhece é “o senhor” – intervém na conversa, embora os seus comentários e questões não sejam apresentados, apenas subentendidos no discurso de Riobaldo.
A estrutura da obra é um espelho do seu conteúdo. Isto é, se o conteúdo é uma conversa ou o relato de uma personagem a outra, isso reflecte-se na estrutura, que adquire características do discurso oral. Assim, o discurso de Riobaldo começa sendo muito irregular e, em certa medida, confuso. Os acontecimentos que narra não obedecem a uma estrutura cronológica e certas histórias são deixadas em suspenso enquanto outras são introduzidas sem grande preparação. Isto é visível, por exemplo (entre muitos outros exemplos que se poderiam encontrar), quando Riobaldo diz: "Mas o primeiro encontro meu com ela, desde já conto, ainda que esteja contando antes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais forte na lembrança?" Esta forma de narrar é típica de um discurso oral em que, pela vontade ou ansiedade de contar muitas coisas, se atropelam acontecimentos e se saltam elementos importantes para a compreensão do conjunto. Durante sensivelmente cem páginas (depende, obviamente, da edição) é assim que se caracteriza o discurso de Riobaldo. São introduzidas muitas personagens, muitos locais, muitos acontecimentos que só mais tarde serão devidamente tratados. Isto porque, dali em diante e até ao fim do romance – como, aliás, seria expectável num discurso oral, passado o ímpeto inicial – o discurso de Riobaldo passa a seguir uma ordem cronológica.
Além do modo como é contada a história, há ainda outro elemento que pode ser associado a um discurso oral, que é a introdução de narrativas encaixadas dentro da narrativa principal. Estas histórias paralelas, mesmo que não tenham uma grande importância para complementar a narrativa central, têm, normalmente, uma mensagem que interessa a Riobaldo referir. São exemplos disso o caso de Maria Mutema, contado a Riobaldo por Jõe Bexiguento, que serve para abordar o tema da ambiguidade entre o bem e o mal, e o caso do dr. Hilário, contado pelo seo Ornelas, que culmina com a constatação: "Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém..."
Se a estrutura reflecte as características de um discurso oral, o mesmo se pode dizer da linguagem utilizada no discurso de Riobaldo, ou seja, em todo o romance. Toda a narrativa, e não apenas os momentos de discurso directo de personagens, é feita num estilo coloquial. Isto porque, como já foi referido, o discurso do narrador Riobaldo é, por si só, discurso directo, com destinatário no viajante que o ouve e a cujas intervenções não temos acesso. Este tom coloquial pretende reproduzir a forma de falar sertaneja e traduz-se num discurso quase agramatical, assim como na introdução de diversos neologismos e supressão de fonemas em algumas palavras.
Destinação
O destinatário evidente desta narração é, como já foi referido, o viajante que abordou Riobaldo. Ao longo de todo o romance, são incontáveis as vezes que Riobaldo se dirige ao seu interlocutor, chamando a sua atenção, tratando-o por “o senhor”, pedindo-lhe que “mire veja”, etc. O papel deste destinatário, contudo, não se esgota no simples ouvir. Mais do que um destinatário – embora seja evidente que é Riobaldo quem assume o protagonismo da conversa – o viajante é também um interlocutor. E as suas intervenções na conversa são apreciadas por Riobaldo, como se pode verificar quando este diz: "Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção." Por aqui se percebe que o papel do interlocutor é importante mesmo para a organização do discurso de Riobaldo.
O interlocutor, ao colocar questões, fazer comentários e pedir esclarecimentos, está a permitir que Riobaldo melhor se expresse e melhor se faça entender, o que ajuda também o leitor. Todavia, já perto do final da obra, percebe-se que este interlocutor não se limita a ouvir, mas também regista por escrito aquilo que ouve. Esta ideia é sustentada por duas afirmações de Riobaldo: "A vida é um vago variado. O senhor escreva no caderno: sete páginas..." e "Campos do Tamanduá-tão – o senhor aí escreva: vinte páginas..." Estas indicações de Riobaldo pretendem advertir o seu interlocutor de quantas páginas vai precisar para escrever certos acontecimentos que ele, Riobaldo, vai então narrar. Esta informação vem perturbar um pouco a ideia de autoria. Será este viajante o responsável pelo registo escrito daquele relato e, por ser ele próprio o autor, suprimiu as suas intervenções?
O leitor é também, como é óbvio, destinatário. Salvo raras excepções, todos os livros são feitos para os leitores. Grande Sertão: Veredas não é excepção a esta regra. Neste sentido, o leitor pode funcionar como actor dentro da obra: isto é, o leitor assume o papel do interlocutor e o discurso de Riobaldo passa a ser-lhe dirigido. E isto vem complicar ainda mais a ligação de papéis. O leitor assume-se como interlocutor, que por sua vez se assume como autor. É um jogo tipicamente roseano, que seria matéria-prima só por si para demorado estudo.
Para além destes dois destinatários bastante óbvios – aquele que está dentro do texto (o interlocutor) e aquele que está fora (o leitor) – há um outro, não tão evidente como estes dois, que é o próprio Riobaldo.
O facto de Riobaldo ser destinatário da sua própria narração é perceptível em algumas ocasiões do texto, como quando diz: "Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere." Aqui Riobaldo diz claramente que conta para si e, só depois, conta para o senhor, isto é, para o seu interlocutor. Mais adiante, uma outra passagem permite perceber melhor o que quer Riobaldo dizer com aquilo: "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. Agora, o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o tampante, e o que forde trinta combates." Portanto, Riobaldo tem dúvidas sobre o que conta e espera que o seu interlocutor o ajuda a esclarecê-las. Nesse sentido, é destinatário do que ele próprio conta, uma vez que procura também perceber o seu próprio discurso. Mais adiante ainda, voltará a referir que há coisas da sua vida que não entende, o que sustenta a ideia de ser também destinatário: "Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez." Por não entender a sua vida é que necessita deste interlocutor que o ajuda a perceber o seu próprio discurso.
Leitura
A leitura de Grande Sertão: Veredas caracteriza-se por, como já foi dito, uma identificação com a figura do interlocutor. Tendo apenas acesso ao discurso de Riobaldo, é um movimento natural o do leitor se assumir como único e verdadeiro interlocutor daquela narração. Todavia, não se esgota aqui a caracterização do leitor. Além do interlocutor, há também uma identificação com a personagem de Riobaldo. Isto porque podemos separar Riobaldo em duas figuras: uma é aquela que sabe toda a história e a conta ao viajante, a outra é aquela que vive os acontecimentos e não sabe o que vai suceder depois. Isto é, simplificando, um Riobaldo narrador e um Riobaldo personagem. É com este último, o que não sabe o desenlace da sua história, que o leitor se identifica. Tal acontece sobretudo no fim do romance, aquando da descoberta do segredo de Diadorim. O facto de ficar a saber do segredo tarde de mais, ao mesmo tempo que o Riobaldo personagem, faz com que o leitor se identifique com este.
O outro movimento típico do leitor desta obra é o desejo de releitura. Este desejo deve-se à revelação tardia e, também, ao facto de até certo ponto a narrativa não seguir uma ordem cronológica. Com isso, pode o leitor não só perceber muito melhor o romance (e não é caso único na obra de Guimarães Rosa este desejo, ou mesmo necessidade, de releitura, assim que se chega ao fim de um texto), como também dar-se conta de certas pistas e comentários do Riobaldo narrador referentes ao segredo que só no final se descobre.
Fotos de Mauro Holanda