Domingo, 18.01.09

Ausência de sutilezas

A novela é mesmo uma novela
 
Ferreira Gullar
 
A novela de televisão -com raras exceções- pode ser definida como uma história implausível que se desdobra em episódios cada vez mais implausíveis.
 
De uns tempos para cá, toda novela tem, pelo menos, uma vilã (prefere-se a vilã ao vilão, já que mulher deve ser boazinha), tão ou mais implausível que a história contada. A vilã parece ter sangue nos olhos vidrados de ódio, e odeia a tudo e a todos, gratuitamente, não porque lhe tenham feito algo, não porque a tenham ofendido ou prejudicado: odeia porque odiar é a sua função na novela, razão por que odeia gato e sapato, cachorro, papagaio, sem contar o filho, a filha, o pai, a mãe, o irmão e o mamão, isso se algum mamão surgir em seu caminho.
 
Esse é um novo tipo de ser humano que, até que a televisão o revelasse, nunca se suspeitara existir. Mas, pelo que se vê, tem proliferado de maneira incontrolável, uma vez que não há novela global que não nos mostre algum exemplar dessa nova espécie de gente. Deve ser criada em alguma reserva ecológica para a preservação de animais ferozes.
 
Outra característica da vilã é a capacidade que tem de consumar suas maldades sem que nada o dificulte ou impeça. Pelo contrário, se a vilã decide liquidar com alguém, logo, como por milagre, a futura vítima começa a agir do modo exatamente previsto por ela, até cair na arapuca.
 
E o mais impressionante é que, se a vítima escapa com vida, e tenta denunciá-la, ninguém dá crédito à denúncia, apesar de todas as evidências. Sim, porque senão a história acaba. O telespectador fica indignado com a lerdeza ou burrice dos personagens bonzinhos, que tomam sempre a defesa da malvada. Por isso, já se diz que a novela é uma história idiota, vivida por idiotas e vista por idiotas. Dizem, mas não conseguem deixar de vê-la até o último capítulo.
 
A novela tornou-se uma mania nacional, programa de milhões de famílias para depois do jantar. E o curioso é que, embora seus temas sejam atuais e os personagens se comportem como gente de hoje -vestem roupas da moda, usam celulares e computadores- parecem pertencer ao século passado, ou melhor, ao retrasado. É que são antigos os valores contra os quais se voltam, ou seja, combatem bravamente costumes e sentimentos que só existem na subliteratura do velho folhetim.
 
Na vida real, ninguém vive tais problemas nem adota tais atitudes.
 
Um chavão do gênero são os olhos sempre lacrimejantes dos personagens, particularmente os femininos. Se é um personagem sofredor, tem os olhos sempre molhados de lágrimas, peito arfante, expressão comovida, prestes a explodir em soluços. São, de fato, seres especiais, uma vez que, com tantos anos de vida que tenho, muito raramente vi alguém chorando, a não ser criança manhosa, mas era choro para chantagear a mãe, coisa saudável, sem nenhum sentimentalismo. Na novela, se o espectador se distrai, tem a impressão de que aqueles olhos molhados e o nariz vermelho são sinais de resfriado. Ideia absurda, pois se há uma coisa impossível é algum personagem de novela se gripar. Não me lembro de nenhum caso.
 
 
Esse clima sentimentaloide, que nada justifica, parece ser essencial à novela, cujo objetivo principal é comover o telespectador e, para consegui-lo, força a mão e passa do sentimento verdadeiro ao sentimentalismo exagerado que, na verdade, falsifica a emoção. E isso não é tido como subliteratura, mas como um gênero que leva o nome de melodrama.
 
Outro traço típico da novela é a anti-dramaturgia. Como se sabe, o que caracteriza a boa dramaturgia é a economia de cenas e diálogos: toda fala e toda cena deve fazer avançar a ação dramática. Não há por que botar os personagens para agir à toa ou falar coisas que não interessam ao telespectador, já que não fazem andar a história. No teatro, no cinema, isso não ocorre e, se ocorre na novela, é porque ela tem que durar meses e meses, enquanto uma peça ou um filme duram entre uma hora e meia e duas horas.
 
Não existe dramaturgia para 180 ou 200 capítulos. Daí por que os teledramaturgos são obrigados e criar núcleos e enredos paralelos à história central, a única que de fato interessa ao telespectador. É por essa razão que, quando entra em cena um desses núcleos secundários, o pessoal aproveita para ir ao banheiro ou à cozinha tomar um cafezinho.
 
Diga-se, a bem da verdade, que se a novela é como é, a culpa não cabe ao autor ou diretor nem muito menos aos atores, cujos talentos a fizeram ganhar tanta popularidade. A culpa é do gênero mesmo, que se tornou mais e mais um produto comercial, apoiado em estereótipos.
 
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de S. Paulo / UOL
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publicado por ardotempo às 18:47 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Aquarela: Pássaros do sul

Isolde Bosak

 

 

Quero-quero - Série Ave, Pássaro - Pintura em aquarela de Isolde Bosak (Projeto de Isolde Bosak - pinturas e gravuras e poemas de Cleonice Bourscheid) - 2008

publicado por ardotempo às 18:08 | Comentar | Adicionar

Grande Sertão: Veredas

Estrutura, voz e narração
 
Gonçalo Mira
 
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, pode definir-se, de um modo muito sucinto e, consequentemente, injusto, como o relato da vida de jagunçagem de Riobaldo.
 
Esta personagem central e narrador, faz o seu relato a uma outra personagem cujas intervenções não são apresentadas. Logo nas primeiras linhas do texto, percebe-se que há uma personagem que se dirige a outra:
 
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja."
 
Trata-se, portanto, de um diálogo oculto, uma vez que representa uma conversa entre duas personagens (ainda que uma assuma mais o papel de ouvinte) mas o leitor só tem acesso ao discurso de uma delas.
 
Assim, o narrador é Riobaldo e todo o romance é a sua longa fala, dirigida a um viajante que ali passou e que com ele meteu conversa. Este destinatário – cuja única designação que se lhe conhece é “o senhor” – intervém na conversa, embora os seus comentários e questões não sejam apresentados, apenas subentendidos no discurso de Riobaldo.
 
A estrutura da obra é um espelho do seu conteúdo. Isto é, se o conteúdo é uma conversa ou o relato de uma personagem a outra, isso reflecte-se na estrutura, que adquire características do discurso oral. Assim, o discurso de Riobaldo começa sendo muito irregular e, em certa medida, confuso. Os acontecimentos que narra não obedecem a uma estrutura cronológica e certas histórias são deixadas em suspenso enquanto outras são introduzidas sem grande preparação. Isto é visível, por exemplo (entre muitos outros exemplos que se poderiam encontrar), quando Riobaldo diz: "Mas o primeiro encontro meu com ela, desde já conto, ainda que esteja contando antes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais forte na lembrança?" Esta forma de narrar é típica de um discurso oral em que, pela vontade ou ansiedade de contar muitas coisas, se atropelam acontecimentos e se saltam elementos importantes para a compreensão do conjunto. Durante sensivelmente cem páginas (depende, obviamente, da edição) é assim que se caracteriza o discurso de Riobaldo. São introduzidas muitas personagens, muitos locais, muitos acontecimentos que só mais tarde serão devidamente tratados. Isto porque, dali em diante e até ao fim do romance – como, aliás, seria expectável num discurso oral, passado o ímpeto inicial – o discurso de Riobaldo passa a seguir uma ordem cronológica.
 
 
Além do modo como é contada a história, há ainda outro elemento que pode ser associado a um discurso oral, que é a introdução de narrativas encaixadas dentro da narrativa principal. Estas histórias paralelas, mesmo que não tenham uma grande importância para complementar a narrativa central, têm, normalmente, uma mensagem que interessa a Riobaldo referir. São exemplos disso o caso de Maria Mutema, contado a Riobaldo por Jõe Bexiguento, que serve para abordar o tema da ambiguidade entre o bem e o mal, e o caso do dr. Hilário, contado pelo seo Ornelas, que culmina com a constatação: "Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém..."
 
Se a estrutura reflecte as características de um discurso oral, o mesmo se pode dizer da linguagem utilizada no discurso de Riobaldo, ou seja, em todo o romance. Toda a narrativa, e não apenas os momentos de discurso directo de personagens, é feita num estilo coloquial. Isto porque, como já foi referido, o discurso do narrador Riobaldo é, por si só, discurso directo, com destinatário no viajante que o ouve e a cujas intervenções não temos acesso. Este tom coloquial pretende reproduzir a forma de falar sertaneja e traduz-se num discurso quase agramatical, assim como na introdução de diversos neologismos e supressão de fonemas em algumas palavras.
 
Destinação
 
O destinatário evidente desta narração é, como já foi referido, o viajante que abordou Riobaldo. Ao longo de todo o romance, são incontáveis as vezes que Riobaldo se dirige ao seu interlocutor, chamando a sua atenção, tratando-o por “o senhor”, pedindo-lhe que “mire veja”, etc. O papel deste destinatário, contudo, não se esgota no simples ouvir. Mais do que um destinatário – embora seja evidente que é Riobaldo quem assume o protagonismo da conversa – o viajante é também um interlocutor. E as suas intervenções na conversa são apreciadas por Riobaldo, como se pode verificar quando este diz: "Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção." Por aqui se percebe que o papel do interlocutor é importante mesmo para a organização do discurso de Riobaldo.
 
O interlocutor, ao colocar questões, fazer comentários e pedir esclarecimentos, está a permitir que Riobaldo melhor se expresse e melhor se faça entender, o que ajuda também o leitor. Todavia, já perto do final da obra, percebe-se que este interlocutor não se limita a ouvir, mas também regista por escrito aquilo que ouve. Esta ideia é sustentada por duas afirmações de Riobaldo: "A vida é um vago variado. O senhor escreva no caderno: sete páginas..." e "Campos do Tamanduá-tão – o senhor aí escreva: vinte páginas..." Estas indicações de Riobaldo pretendem advertir o seu interlocutor de quantas páginas vai precisar para escrever certos acontecimentos que ele, Riobaldo, vai então narrar. Esta informação vem perturbar um pouco a ideia de autoria. Será este viajante o responsável pelo registo escrito daquele relato e, por ser ele próprio o autor, suprimiu as suas intervenções?
 
 
O leitor é também, como é óbvio, destinatário. Salvo raras excepções, todos os livros são feitos para os leitores. Grande Sertão: Veredas não é excepção a esta regra. Neste sentido, o leitor pode funcionar como actor dentro da obra: isto é, o leitor assume o papel do interlocutor e o discurso de Riobaldo passa a ser-lhe dirigido. E isto vem complicar ainda mais a ligação de papéis. O leitor assume-se como interlocutor, que por sua vez se assume como autor. É um jogo tipicamente roseano, que seria matéria-prima só por si para demorado estudo.
 
Para além destes dois destinatários bastante óbvios – aquele que está dentro do texto (o interlocutor) e aquele que está fora (o leitor) – há um outro, não tão evidente como estes dois, que é o próprio Riobaldo.
 
O facto de Riobaldo ser destinatário da sua própria narração é perceptível em algumas ocasiões do texto, como quando diz: "Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere." Aqui Riobaldo diz claramente que conta para si e, só depois, conta para o senhor, isto é, para o seu interlocutor. Mais adiante, uma outra passagem permite perceber melhor o que quer Riobaldo dizer com aquilo: "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. Agora, o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o tampante, e o que forde trinta combates." Portanto, Riobaldo tem dúvidas sobre o que conta e espera que o seu interlocutor o ajuda a esclarecê-las. Nesse sentido, é destinatário do que ele próprio conta, uma vez que procura também perceber o seu próprio discurso. Mais adiante ainda, voltará a referir que há coisas da sua vida que não entende, o que sustenta a ideia de ser também destinatário: "Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez." Por não entender a sua vida é que necessita deste interlocutor que o ajuda a perceber o seu próprio discurso.
 
Leitura
 
A leitura de Grande Sertão: Veredas caracteriza-se por, como já foi dito, uma identificação com a figura do interlocutor. Tendo apenas acesso ao discurso de Riobaldo, é um movimento natural o do leitor se assumir como único e verdadeiro interlocutor daquela narração. Todavia, não se esgota aqui a caracterização do leitor. Além do interlocutor, há também uma identificação com a personagem de Riobaldo. Isto porque podemos separar Riobaldo em duas figuras: uma é aquela que sabe toda a história e a conta ao viajante, a outra é aquela que vive os acontecimentos e não sabe o que vai suceder depois. Isto é, simplificando, um Riobaldo narrador e um Riobaldo personagem. É com este último, o que não sabe o desenlace da sua história, que o leitor se identifica. Tal acontece sobretudo no fim do romance, aquando da descoberta do segredo de Diadorim. O facto de ficar a saber do segredo tarde de mais, ao mesmo tempo que o Riobaldo personagem, faz com que o leitor se identifique com este.
 
 
O outro movimento típico do leitor desta obra é o desejo de releitura. Este desejo deve-se à revelação tardia e, também, ao facto de até certo ponto a narrativa não seguir uma ordem cronológica. Com isso, pode o leitor não só perceber muito melhor o romance (e não é caso único na obra de Guimarães Rosa este desejo, ou mesmo necessidade, de releitura, assim que se chega ao fim de um texto), como também dar-se conta de certas pistas e comentários do Riobaldo narrador referentes ao segredo que só no final se descobre.
 
Gonçalo Mira - Publicado no Blog Orgia Literária 

Fotos de Mauro Holanda 

publicado por ardotempo às 17:52 | Comentar | Adicionar

Coração de Jesus

 Siron Franco

 

 

Corações - Pintura de Siron Franco - Óleo sobre cartão - 1999

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publicado por ardotempo às 15:27 | Comentar | Adicionar

Alô... telefone para você

O que Watson disse
 
Luis Fernando Verissimo
 
A primeira conversa telefônica foi entre Alexander Graham Bell e seu assistente Thomas Watson. Em Filadélfia. 1876. Bell fazia uma demonstração do telefone recém-inventado para diversos convidados, inclusive Dom Pedro II, imperador do Brasil. Watson estava numa sala ao lado. Bell o chamou:
 
- Watson, venha cá.
 
Nada aconteceu. Bell falou mais alto:
 
- Watson, venha cá imediatamente!
 
Silêncio. Bell gritou:
 
- Watson, eu preciso de você! 
 
Nada. E então Bell disse aos convidados, sorrindo, “Agora vamos tentar com a minha invenção”, pegou o telefone, discou 1 e, quando atenderam do outro lado, falou com sua voz normal:
 
- Sr.Watson, venha até aqui. Eu preciso do senhor.
 
Esta é uma versão algo fantasiosa do que aconteceu. Mas o que realmente ninguém ficou sabendo, pois ninguém ouviu, foi como Watson atendeu o primeiro telefonem na outra sala.
 
Ele pode ter sido apenas solícito:
 
- Sim senhor.
 
Pode ter sido distraído:
 
- Quem está falando, por favor?
 
Pode ter sido brincalhão:
 
- Desculpe, o sr. Watson está em reunião.
 
Ou pode ter sido vidente e filosófico e dito:
 
- Já vou, Mr. Bell. Mas o senhor tem consciência do que acaba de inventar? Já se deu conta do que começou? Está certo, isto vai facilitar a comunicação entre as pessoas. Vai ser ótimo para chamar a ambulância ou os bombeiros, marcar encontros, avisar que vai-se chegar tarde, avisar que a tia Djalmira morreu, namorar, ligar para o açougueiro e fazer “muuuu”, pedir pizza, tudo isto. Mas o senhor também acaba de inventar o despertador, a ligação no meio da noite que quase mata do coração, o engano, a pesquisa telefônica... E o celular, Mr. Bell. O senhor não sabe, mas acaba de inventar o celular. Vai demorar um pouco, mas um dia esta sua caixa vai caber na palma da mão e vai ter câmera fotográfica, calculadora, TV, raio X, bote salva-vidas inflável, e vai acabar com a vida privada como nós a conhecemos, Mr.Bell. As pessoas vão andar na rua espalhando suas intimidades e não teremos como nos proteger. Ficaremos sabendo de tudo sobre todos, inclusive os detalhes da doença da tia Djalmira, e...
 
- Sr. Watson...
 
- Já estou indo, já estou indo.
 
 
© Luis Fernando Verissimo
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publicado por ardotempo às 15:22 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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