A luz
Ela olhou pela fresta da porta e viu a luz do abajur acesa no quarto. Acordado, ainda. Ele estava acordado, talvez naquele estado de quase sono em que permanecia antes de finalmente dormir umas poucas horas, e então despertar assustado. Para não dormir mais até o dia amanhecer, e a luz entrar, dessa vez pela janela mal servida por uma cortina leve, diáfana, inútil, que ela odiava exatamente por isso. Ele gostava assim. Disse uma vez, para explicar a cortina, que a luz do dia o fazia sair da cama com mais vigor. Mas ele estava sempre cansado, e se arrastava para fora dos lençóis pela manhã, em direção à janela que dava para a rua lateral do edifício e que ele nunca abria, com medo da altura. Ficava um tempo ali, cansado, respirando compassadamente, cansado, antes de sumir pela cozinha, cansado, enquanto ela se levantava, se arrumava, saía de casa, sem saber dele, esgueirando-se no corredor, até a porta da rua, para não encontrá-lo. Cansado.
Eram já alguns anos juntos, e a maior parte deles assim. Ele de noite, ela de dia, isolados em universos distintos, próprios. Ímpares, singulares, que ninguém saberia dizer se um dia estiveram juntos, ou quando foi que se separaram.
Ela voltou para a sala, sentou-se na poltrona e procurou no livro um parágrafo que pudesse reconhecer. Estava distraída nos últimos tempos, precisava voltar umas tantas páginas a cada vez que se levantava para conferir se ele já dormira. Preferia se deitar quando ele estivesse adormecido. Apagaria o abajur antes. Acordaria com o susto dele, mas dormiria de novo. Ele então ficaria imóvel a seu lado, a noite toda, até ver a luz na janela, e até que essa luz fosse suficiente para inundar a rua lá embaixo e o quarto lá em cima. Ela estava acostumada com aquela presença pétrea na cama de casal. É verdade que nunca reclamou quando, no começo, ele se revirava sobre o colchão, esperando a manhã surgir na janela. Apenas permanecia acordada, acompanhando os movimentos dele, sentada na beira da cama. Mas ele entendeu. Passou a ficar imóvel. Essa era a condição de ambos para atravessar a noite juntos, lado a lado, nunca explicitada. Ele, imóvel. Ela, calada.
Ela não o amava mais. Gostava apenas de seus pés, que achava lindos mas via pouco, pouquíssimo. Estavam sempre enfiados em meias, em sapatos, enrolados no lençol, na toalha, no tapete, cobertos. Escondidos. Ele sabia que ela gostava de seus pés, e não se importava em mantê-los longe do olhar dela. Fazia questão, às vezes, mas na maior parte das vezes, nem se lembrava, nem se importava, nada. Apenas mantinha o hábito infantil de enfiar os pés debaixo, dentro, atrás, ao redor de qualquer coisa que pudesse abrigá-los. Fazia assim, ela não sabia, ele não revelava, talvez por conta do mesmo pesadelo diário, de que algo, ou alguém, alguma coisa enlaçava ambos os seus pés enquanto ele andava dentro de um grande inundado de água grossa que lhe chegava aos joelhos, e o arrastava para baixo, com violência, para o que parecia ser um inferno gelado e escuro, barulhento como uma fábrica velha, irrespirável. Ele nunca viu o lugar, mas era assim que parecia ser. Era assim que ele imaginava que seria, cada vez que a coisa o enlaçava e arrastava, dentro do pesadelo. Era assim que descrevera para ela numa única manhã, muito tempo atrás, parado junto da janela, cansado, quando eles ainda conversavam coisas rotineiras. Todas as noites, acordava. Assustado, muito assustado.
Anos assim. Não saíam de casa à noite, não jantavam com os amigos mas sentados, quietos, um diante do outro, a mesma sopa sem graça e malfeita, não iam ao cinema nem viam televisão, não caminhavam na calçada à beira da praia nem na rua lateral, coalhada de lojas e de restaurantes pequenos e cheios de gente. Foi para isso que se mudaram para o apartamento. Tinham planos de aproveitar as noites quentes como dois namorados e as frias como dois amantes, de passear a pé pelo bairro, de fazer amor na sala, de viver a vida de casal recém-casado longe da casa dos pais dele, onde ele sempre morara, primeiro na mansarda azul e espaçosa do terceiro piso, que ela visitou apenas uma vez, depois no quarto bagunçado em cima da garagem, para o qual ela se mudou uma semana depois de conhecê-lo, um mês antes de se casarem.
Nunca aconteceu, e ela não lamentava. Nem no primeiro, nem no segundo dia aconteceu. Nunca. Depois que a diarista saía, no final da tarde, a casa ficava às escuras exceto pelo abajur do quarto, que ele comprara, e a luminária de leitura da sala, que ela herdara da avó e trouxera antes de tudo o mais para o apartamento. Ela apagava ambas antes de se deitar, quando ele enfim dormia. E depois do boa-noite formal da diarista, que só se despedia depois de deixar pronta e sobre a mesa da copa a mesma sopa de todos os dias, porque ninguém falava com ela nem lhe pedia nada, quase nenhuma palavra se ouvia dentro do apartamento.
Ela se acostumara a passar horas calada.
Porque tinha de voltar e voltar e voltar nos parágrafos, ela levava mais, muito mais tempo para ler um mesmo livro que, lá se vão todos aqueles anos com ele, leria em quantos dias? Uma semana? Tinha dúvidas sobre o enredo, confundia personagens, se perdia na história. Lia apenas para ocupar o tempo entre ele se deitar, e ele dormir. Agora mesmo, procurando a última frase de que se lembrava, ela topara com um nome, Cecília, que não vira antes. Onde Cecília entrava na trama? Quem era Cecília? O que Cecília tinha a ver com os outros? Não sabia. Por um segundo, achou que tinha apanhado o livro errado na mesinha a seu lado. Mas era o mesmo. Seu único livro há anos.
Cecília.
Fechou as páginas sem fazer barulho, bem devagar. Olhou o relógio pequeno em seu pulso. Estava certa, passava de meia-noite, ele podia não ter dormido ainda mas ela se sentia pronta para fechar os olhos a qualquer momento. Estavam pesados, plúmbeos. Incontroláveis. Pensou de novo em Cecília. Não entendia como, com os olhos tão devastados pelo sono, tinha esbarrado numa novidade dentro do livro. Talvez por isso mesmo, pensou melhor. Só porque era uma novidade. Então Cecília entrava agora na história, e ela não teria de voltar tanto para trás, naquelas páginas, para entender o que estava acontecendo. Teve a tentação de retomar o livro, mas seus braços, suas mãos, tudo estava fatigado e seu corpo, pronto para dormir. Ansiando por dormir. Deixou o livro quieto em seu colo.
Precisava se levantar e conferir, mais uma vez, se ele já estava adormecido. Fez o esforço de pousar o livro na mesinha, de apagar o abajur e seguir, sem tatear como nos primeiros tempos, pelo corredor escuro até o quarto. Olhou de novo pela fresta da porta, e agora sim, ele dormia. Ele sempre ficava virado para a janela, de costas para a porta, e mantinha um dos braços ao longo do corpo enquanto estava acordado. Mas bastava adormecer, e relaxar os músculos, o braço escorregava para a frente, como uma senha que dizia: pronto, agora é sua vez de vir para a cama. Sua vez.
Ela entrou no quarto bem devagar, como todas as noites. Puxou os lençóis do seu lado da cama, e sentou suavemente nela. Levantou os pés, tocou com eles o tecido morno e deixou que deslizassem devagar. Então, tombou leve sobre o travesseiro, cobriu-se e esticou o braço para apagar a luz do abajur.
- Quando amanhecer...
Era a voz dele, grave, muito baixa, para não se fazer ouvir.
Ela interrompeu o movimento. Deixou a mão no meio do caminho e esperou. Ele suspirou, ela ouviu.
- Quando você acordar, eu não vou estar mais aqui.
Ela esperou outro tanto. Ele não disse mais nada. Ela, então, continuou a esticar o braço até tocar o botão, e apagar a luz.
- Só hoje, a luz...
A voz dele era menor ainda.
Ela fingiu não ouvir o pedido. Parecia um pedido. Enfiou o braço, depressa, de volta sob o lençol, prendeu-o entre as pernas, fechou os olhos com força, fechou a boca com força para ficar calada. Calada. Estava vencida, arrasada. Derrotada. Dormiu depressa. Não se lembra de ter acordado com o susto dele nessa noite, mas se lembra de ter sonhado com Cecília. Cecília era uma mulher bonita, jovem, alegre, que ela jamais tinha encontrado antes e não tem a menor idéia do que poderia estava fazendo em seu sonho, equilibrada nas pontas dos pés, parada naquele lugar tão claro, tão iluminado, tão ofuscante, vestida com uma roupa que refletia tanta luz, uma roupa feita com o tecido da cortina, que balançava e balançava por causa da janela escancarada na manhã, Cecília sorrindo para ela, Cecília sorrindo com a boca e com os olhos, Cecília sorrindo com o corpo todo, Cecília sorrindo como uma boba.
© Junia Nogueira de Sá