Sábado, 10.01.09

Dá-me só a mão

Migalhas
 
António Lobo Antunes
 
Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Quantos são hoje? Nunca sei às que ando, confundo tudo, perco-me sempre, os dias, as horas, às vezes cumprimento pessoas que não conheço, há uma semana ou isso entrei num antiquário, sentei-me a uma mesa D. João V e quando a senhora da loja veio, de uns armários franceses ou lá o que era, pedi-lhe que me servisse um uísque. Uma senhora com mais pulseiras que tu e anéis caros, de maquilhagem a lutar com a idade e a perder. Ficou a olhar para mim de cara ao lado. 
 
Depois perguntou-me se eu estava bêbado e depois começou a medir a distância entre ela e a porta a fim de chamar por socorro. Numa das paredes paisagens emolduradas a talha, o retrato de uma viscondessa decotada, estampas de cavalos com legendas em francês. A viscondessa usava um anel no indicador rechonchudo e tinha cara de jantar bicos de rouxinol todos os dias, servindo-se dos talheres como se cada dedo fosse um mindinho, desses que a gente enrola para beber o café. A minha irmã, pelo menos, enrola. Eu sou mais para o género de o esticar, tipo antena.
 
Educações.
 
Tu não enrolas nem esticas, deixas a mão inerte na minha. Não te apetece apertar-me, não tens vontade de ser terna? Gostava que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava-te quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo. Segundo a minha irmã sou só parvo. A propósito de tudo e de nada
 
- És tão parvo
 
e eu, mudo, a dar-lhe razão no fundo de mim, lembrando-me que na escola era um castigo com a Geografia, capitais e rios e países tudo misturado. Continuo a misturar. Não me peças, por exemplo, para mostrar a Noruega num mapa. E conheci em rapaz uma norueguesa na praia, a pôr creme nas costas de uma amiga. Passados os primeiros embaraços pôs-me a mim também. Espero que tivesse os mindinhos enrolados. Ofereci--me para lhe pôr a ela. Por gestos fez que não com a cabeça e o brinco esquerdo caiu. Acho que começou a ceder quando o procurámos ambos na areia, uma argola com coisinhas penduradas.
 
O que me atrai nos brincos não é as mulheres terem-nos, é o momento em que os prendem na orelha, de queixo esticado e olhos vazios. A mesma expressão, aliás, ao procurarem as chaves na carteira. Parece que se ausentam. Depois voltam a estar ali ao rodarem a fechadura. Esfrego sempre os sapatos no capacho antes de entrar
 
(educações)
 
e avanço devagarinho pelo tapete quase persa fora à medida que lhes percebo uma expressão de
 
- Como é que me vejo livre deste?
 
a aumentar, a aumentar. Também é nisso que pensas, responde?
 
- Como é que me vejo livre deste?
 
e a tua mão cada vez mais pequena sobre a minha, o teu lábio inferior a cobrir o superior ou seja
 
- Para que me fui meter num sarilho?
 
as tuas pernas longe, o teu corpo longe, a tua bochecha longe a gritar em silêncio
- Deus queira que não me faça uma festa
 
os olhinhos a espiarem-me de banda, alerta, assustados, com receio de mim, eu que não faço mal a uma mosca, nasci pacífico, hei-de morrer pacífico e no intervalo entre o nascimento e a morte sou um paz de alma. Nem entendo a reacção da senhora do antiquário, se calhar neta da viscondessa do anel. Ou bisneta. Ou filha, que a maquilhagem, coitada, pouco conseguia. Deve haver dúzias de centenários por aí, refugiados atrás dos cremes, vacilando nos joelhos magros. Dentaduras postiças a dar com um pau, aparelhos para ouvir, lentes de contacto que se esforçam, se esforçam
 
- Não te vejo bem, rapaz
 
pobres misérias cuidadosamente ocultas. Ainda sou novo apesar da hérnia, devo ter mais uns tempitos à minha frente e o que farei com eles? Sento-me aqui, mendigo a tua mão ou aborreço-me sozinho? Não leio jornais, não me distraio com nada, aqueço um prato desses já feitos, lavo a loiça, volto ao sofá, derrotado. Ignoro quem me derrotou. Se calhar eu mesmo, se calhar a minha irmã, distantantíssima agora Tão parvo chegada dos limbos da infância com as suas sardas e a pupila torta que o doutor não curou. Na minha opinião a pupila torta não me achava tão parvo assim, compreendia-me. Há uma parte nos outros, defeituosa, frágil, que me compreende, se enternece comigo. Quantos são hoje? Não digas nada. Tanto faz. Um dia qualquer, não me ralo com isso: a minha vida feita de dias quaisquer a amontoarem-se uns sobre os outros, indistintos, moles, idênticos. A fotografia da minha mãe na estante, a censurar-me. De quê? Que mal fiz eu? Chamo-me João. Era para ser Arnaldo como o meu padrinho mas o meu pai insistiu no João.
 
De vez em quando sorria-me
 
- João
 
e ficava a repetir
 
- João
 
numa cisma contente. Dás-me licença que te beije? Não? Não te vás embora ainda, deixa-te estar. Apesar de tudo passámos um bocado agradável, não foi? A mim agradou-me. Gosto do teu cheiro. Se te apetecer voltar toca a campainha três vezes e carrego naquele botão que abre a porta da rua. E se me avisares com antecedência compro um bolo. Quando não estiveres cá e me sentir sozinho como as migalhas que sobrarem. Vou contar-te um segredo: há alturas em que as migalhas ajudam.
 
 
© António Lobo Antunes
tags:
publicado por ardotempo às 16:20 | Comentar | Adicionar

Ferreira Gullar - Um poema

Traduzir-se

 
Ferreira Gullar
 
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
 
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
 
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
 
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
 
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
 
Traduzir-se uma parte
na outra parte
-que é uma questão
de vida ou morte-
será arte?
 
© Ferreira Gullar

 

tags:
publicado por ardotempo às 15:01 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Janeiro 2009

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9

Posts recentes

Arquivos

tags

Links