Crônica da Estação dos Correios
António Lobo Antunes
António Lobo Antunes
Presente/Passado
"Só possuímos o que perdemos; talvez esse seja o encanto que o passado mantêm.
O presente carece desse encanto."
©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina
A imaginação é o reino do leitor
Este é um tema crucial na Arte em geral. O da invenção artística. Fala-se da capacidade de surpreender e de acrescentar algo às nossas vidas, como escritores e como leitores. Falo da Arte e isso engloba as várias manifestações criativas, as da literatura e das artes plásticas, a da música, cinema, teatro ou de outras expressões nas quais um indivíduo ou indivíduos criam e executam algo proposto como criativo, inventado como expressão artística, com maior ou menor talento. Isso diz respeito à autoria, mas creio que diga respeito fundamentalmente ao observador da obra de arte, ao leitor da obra escrita, ou seja - o público será a parcela, provavelmente, mais importante do fenômeno cultural.
Essa minha convicção espelha os meus sentimentos como escritor e como artista plástico, na forma como vejo a obra criada e o seu reflexo, infinitamente maior e mais consistente, na recepção e na interpretação pelo público.
Vamos falar da Literatura. O grande Jorge Luis Borges afirmava que “ler é a outra espécie da felicidade”. E Gaston Bachelard, instado sobre a existência ou não do Paraíso, aquiesceu dizendo que o imaginava como uma formidável e estupenda biblioteca. A promessa da epifania e do prazer da descoberta, recorrente e eterno,
Em ambas as afirmações, significativamente está a expectativa dos dois, no papel de leitores, pelas surpresas das invenções escritas por outros.
Em Literatura pode-se inventar formalmente ou em conteúdo. Existe constantemente a busca de maneiras diversas de se expressar, de maneira coloquial, com estilos lapidados e modificados, com transgressões
Recentemente Ferreira Gullar, em um artigo sobre os poetas neo-concretistas da década sessenta no Brasil, escreveu acerca de suas dúvidas frente a um manifesto da época, que impunha que a poesia nova e contemporânea deveria ser feita segundo umas determinadas equações matemáticas. Ferreira Gullar refutou o preceito e pediu aos poetas que lhe enviassem esses novos poemas matemáticos. O que nunca aconteceu.
Esse fato, de uma invenção proposta teoricamente, que não se concretizou, chama a atenção para duas situações almagamadas: não basta uma proposta inusitada e pretensamente original, é necessário antes concretizá-la (e vai aí muito trabalho, muita atividade árdua para a realização da idéia inicial) e a felicidade de realizá-la com talento.
Poder-se-ia imaginar, por exemplo - formalmente - um romance de umas trezentas e poucas páginas, que começasse com uma maiúscula e seguisse numa linha só, descritivo e com diálogos, ao longo de todo entrecho, pontuado com virgulas e parênteses, terminando centenas de milhares de palavras depois, com apenas um ponto final.Talvez até já se tenha escrito algo assim, mas não se tornou algo conhecido e admirado por muitos. A pergunta que alguém faria... e o conteúdo?
Talvez seja essa a surpresa de imaginação, a originalidade da invenção estruturada no ato de escrever, a que nos seja a mais importante, a experiência mais funda e radical - a do conteúdo literário. O romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa é o farol bem sucedido dessa experiência profunda. É evidente que ela pode vir revestida de outras inovações formais, é bom e é saudável que seja também assim. Júlio Cortázar e Ignácio de Loyola Brandão transitaram com desenvoltura nessas lindas experimentações, mas a originalidade das suas invenções esteve sempre estruturada na originalidade da idéia literária, no seu conteúdo literário e na qualidade da sua escrita.
Nesse caminho da invenção, há um outro requisito importante. O do conhecimento. Para se ser verdadeiramente original e inventivo, talvez seja necessário antes de tudo ser curioso, ler muito e bem, investigar e pesquisar, a partir de suas próprias vivências e das vivências escritas de outros. É bastante importante que se saiba o que já se fez, o que se faz, como se fez e o que se está fazendo. Para não se inventar o que já se inventou, por exemplo.
O ler muito será, sem dúvida, uma exigência, agradável, ao bom e criativo escritor.
O que nos remete àquela afirmação de Borges, a da leitura como a outra espécie de felicidade, o que já traz em si uma promessa cativante.
Aqui gostaria de traçar dois paralelos com as artes plásticas. O do paradigma e o da consonância ao seu próprio tempo.
É difícil ser verdadeiramente inventivo sem deixar de ser paradigmático. O artista é paradigmático quando os outros se fazem parecidos a ele e não ao revés. É impossível ser inventivo quando a obra de algum artista se parece a de algum outro.
Certa ocasião, frente à pintura de um importante
artista, testemunhei uma pergunta de
Negativa, demonstraria uma ignorância do pintor sobre um dos artistas modernos mais importantes no circuito internacional. Obviamente que o artista, bem informado conhecia bastante bem aquela obra-fonte que o influenciava, o que automaticamente o colocava numa posição de não-paradigmático. O que resultou num interesse menor por parte dos europeus que consideraram não existir naquela obra apresentada uma originalidade singular e sim algo que trazia elementos reconhecíveis e identificados com outro artista, este sim a semente daquela linguagem.
A invenção está algo ligada ao paradigma.
Foi áspero (e impactante) para Picasso ser cubista em 1907, com “Demoiselles d’Avignon” (“As Senhoritas do Carrer Avignó – Barcelona), então de difícil e de demorado reconhecimento... mas realizar pintura cubista hoje, convenhamos, um século depois, é bastante fora de sintonia com o seu próprio tempo e algo sem interesse para qualquer um aficcionado em arte. É também algo estéril fazer hoje uma obra de arte à maneira de Marcel Duchamp, artista este sim, inventivo, único e paradigmático, de quem se diz, com propriedade, que a obra, seminal e revolucionária, começa com ele e termina com ele próprio, porque qualquer trabalho outro realizado hoje em dia da mesma maneira, quase um século depois de sua fatura, sempre resultará apenas num duchamp inautêntico e apócrifo. Um pastiche, algo falsificado, extemporâneo, daquele artista notável.
Quem pode ser Miró, que não seja o próprio Miró?
Assim vale para a literatura, especialmente quando se fala de invenção literária.
Eu ressaltaria ainda dois aspectos que considero importantes:
Com estes dois elementos o escritor poderá construir uma realidade ficcional que será sutilmente modificada ou recriada pelo leitor, a partir das sua próprias experiências individuais e de sua coleção cultural; e deste processo de conhecimento pela leitura uma nova realidade ficcional resultará numa nova percepção, esta agora, do leitor.
O escritor poderá criar o seu texto, bem ou mal. Teremos como resultado uma literatura boa ou ruim. O texto poderá ser de grande relevância, de surpresa e de invenção (ou o escritor poderá não ser bem sucedido na sua aventura). Será, normalmente, uma aventura individual, árdua, com todos os seus procedimentos técnicos, a escrita, as correções, o “limar” interminável e exigente do próprio texto, as revisões finais até a edição do livro.
Agora chegamos ao ponto em que entra em cena o grande protagonista, o que parametriza e determina efetivamente, com precisão, o grau de acerto da invenção,
Essa minha convicção não é uma informação simplória, tampouco uma demagogia.
Nas artes plásticas, na pintura, quando Leonardo Da Vinci pintou a Mona Lisa, ele não
Ele não poderia imaginar esse futuro, ele apenas pintou o esplêndido quadro com o talento e a técnica apurada que desenvolvera. Foi o público que elegeu a obra e deu-lhe a dimensão incomum.
Eu busco aqui um exemplo muito específico no qual a presença do leitor será a chave para a dimensão abrangente e mutante do texto, estabelecendo níveis de compreensão transitórios e cumulativos desde as experiências individuais e às releituras do texto pelo leitor. Essa é uma curiosidade e uma interrogação que nos assinala.
Ou seja, o texto é continua sendo exatamente o mesmo, mas a leitura especializa-se nas transformações ocorridas em quem o lê e posteriormente o relê - ele se modifica e se enriquece à partir das mudanças ocorridas no universo de cada leitor, no aprendizado, no sofrimento, nas experiências, no conhecimento adquirido, nas novas leituras incorporadas. O leitor transforma-se com o passar do tempo, com a absorção de novas experiências, o texto já não é percebido da mesma forma, há uma nova avaliação, uma nova exigência, às vezes para melhor, muitas vezes para uma redução na qualidade da avaliação.
Explico melhor citando o Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrel, esse belíssimo conjunto de quatro romances que tanto encantou a Erico Verissimo. Os quatro livros (Justine, Baltasar, Mountlive e Cléa) contam, em quatro versões diferentes, narradas por quatro personagens com suas respectivas óticas e conhecimentos específicos e testemunhados, a mesma história, que vai se modificando para o único que detém o conhecimento privilegiado das nuances subjetivas que cercam toda a trama. Este é, evidentemente, o leitor, que forma a sua quinta versão, somatório interpretado das quatro versões de óticas diversas colando-se às suas próprias experiências existenciais. Ora, essa versão “definitiva” (que não será também, como veremos a seguir) não está escrita, ela existe apenas na imaginação do leitor. A história inventada pelo leitor.
Digo que ela não é ainda a versão definitiva, uma vez que cada leitor terá a sua em seus próprios tempos. Eu li os quatro volumes em quatro momentos diferentes de
E os livros sempre me pareceram renovados, mais empolgantes e mais assombrosos
E isso certamente ocorreu e ocorre com todos os leitores que lêem os quatro livros.
E me parece que é isso que eterniza os bons livros (como naquele caso do quadro da Mona Lisa), - o livro permanece vivo não porque o autor (em muitos casos, já falecido e ausente) assim o desejou, ele não tem esse poder de antecipação, o texto permanece, cresce e se renova, constantemente, no ato da leitura, pela presença e pela existência de seus leitores.
Dessa forma, eu concluo que o livro só existe porque o leitor existe.
© Alfredo Aquino (Passo Fundo - Jornada Literária, 2007)
"O Senhor é meu Pastor; e nada me faltará."
Fotografia - Cabeças - Mário Castello - (Rua São Caetano, São Paulo) 2008
António Lobo Antunes
Hoje pensava almoçar com os meus camaradas da guerra.
Entrei no restaurante e não encontrei nenhum deles. Apenas o empregado que me barrara a saída umas noites antes porque me ia embora esquecido de pagar a conta. Desta vez sorriu-me. Se calhar continua convencido que eu não queria pagar.
Bom, como os meus camaradas não estavam fui a uma pastelariazinha ao lado e pedi um miniprato de almôndegas, um copo de vinho branco, uma mousse de chocolate e um jornal qualquer. Não tirei os olhos do jornal até ao fim da mousse e não me lembro do que li porque levei o tempo inteiro a pensar na minha vida, isto é as ideias vagueavam sem se deterem entre episódios de antigamente e episódios de agora.
E a mesma pergunta, sempre, o que fiz da minha vida, o que vou fazer da minha vida, isto numa pastelariazinha de bairro onde muitas pessoas, sobretudo mulheres, engolem qualquer coisa apressada e barata, de pé, apoiando-se ora num tornozelo ora no outro encostadas ao balcão. Os empregados, em mangas de camisa, cirandam a correr entre as mesas. Gosto de os ouvir gritar para a cozinha
- Sai isto, sai aquilo
e das senhoras velhas, muito pintadas, que ocupam sempre o mesmo lugar, cheias de anéis nos dedos gordos. Não têm corpo, têm sucessões de pregas. Brincos que cintilam. Colares exagerados. E olhos graduados como réguas a medirem quem entra, de pestanas que parecem antenas.
De vez em quando uma delas parte uma perna e encosta ao lado da cadeira canadianas majestosas. Pela abertura do gesso as unhas escarlates medem-nos também. De tempos a tempos folheiam revistas sobre divórcios de actores de telenovelas e outras criaturas correlativas, comentam, têm opiniões. Palavra de honra que faz impressão unhas escarlates a espiarem do gesso, cinco unhas de tamanho decrescente como elefantes alinhados numa prateleira: nas retrosarias não são caros.
A seguir ao almoço, ao chegar aqui, o telefone tocava: uma voz feminina à procura do meu primo. Disse-lhe que não o tinha visto. Perguntou como podia encontrá-lo. Respondi que não sabia e sugeri-lhe que abrisse a janela e gritasse o nome dele. Podia ser que a ouvissem, Lisboa não é assim tão grande.
Ficou a duvidar de mim, chegou ao ponto de insinuar que eu não falava a sério. Depois reflectiu melhor e concordou em experimentar. Se experimentou, pela minha parte não ouvi nada. Pode dar-se o caso de morar longe e assim sendo é provável que em Sintra ou na Amadora a hajam escutado. Isto se a não levaram para o hospital psiquiátrico ao segundo berro. Quando eu era pequeno, em Benfica, havia mães que chamavam os filhos dessa forma, ao fim da tarde. Aposto que até os bichos no Jardim Zoológico se arrepiavam todos, hienas incluídas. Mas essas são fáceis de arrepiar, andam sempre de pêlo levantado nos documentários da televisão.
Antes de começar a pensar no livro, ou seja na morte da bezerra, liguei a um camarada meu:
- O almoço é para a semana.
Interessou-se sobre como é que eu estava, eu que nunca sei como estou e sou incapaz de responder
- Vamos andando
sobretudo quando estou sentado
- Como estás?
é uma bela questão. Normalmente respondo
- Sei lá
porque não gosto de mentir. E sei lá de facto. Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito, outras não estou sequer: deslizo por aí armado em nuvem.
- Como está
e é impossível responder
- Deslizo por aí armado em nuvem
de modo que me calo ou resmungo sons desconexos. Não sou de todo mau em sons desconexos, tenho anos de treino. Escrevo isto e sinto as almôndegas a conversarem comigo: despenharam-se-me na barriga feitas pedregulhos, rebolam cá por dentro num fundo de puré, meio dissolvido pelo vinho branco: é o que acontece a quem se mete com minipratos. Devia ter pedido bicos de rouxinol. Ou ter acertado no dia do almoço com os meus camaradas de guerra a lembrar os maus velhos tempos
- Sai uma de bicos de rouxinol para a mesa doze
e a cozinheira lá dentro a prepará-los.
Se me interrogarem
- Como estás?
explico que não estou redondo nem quadrado. Neste momento acho-me mais uma espécie de losango
- Estou losango
quem interroga a olhar para mim sem entender:
- Losango?
e eu
- Sim, losango, nunca te sentiste losango?
Nunca se devem ter sentido losangos. Há alturas em que me acontece pensar que as pessoas são esquisitas mas deve ser problema meu. Aposto o que quiserem que é problema meu.
© António Lobo Antunes
Desenho de Saul Steinberg
Palestra de Voltaire Schilling
Napoleão, um destino
02 de dezembro - terça-feira
19 horas
Museu Júlio de Castilhos
Auditório
Rua Duque de Caxias, 1205 - Centro
Porto Alegre - RS Brasil
Entrada Gratuita
Idioma
"Cada país tem o idioma que merece."
©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina