Sábado, 06.12.08

Crônica da Estação dos Correios

António Lobo Antunes

 

Tanto silêncio nesta casa e tanta voz que me fala. Da janela vejo as mulheres que sobem a rua levando os sacos do supermercado. A rua é inclinada e elas devagarinho passeio acima, com os tendões dos braços saídos, os tendões do pescoço saídos, o cabelo a tremer. Porque razão me comovem na manhã suja, outonal, de setembro? As árvores começam a perder as folhas, pombos por aqui e por ali, vários cinzentos feios nas nuvens. Um par de homens a consertarem não sei quê num buraco. Deve ser isto o que as pessoas chamam vida e, se é isto, que miséria: ninguém sorri.
 
Tenho de ir aos Correios buscar livros da América, de França, do raio que o parta: tira-se um papelinho com um número, espera-se entre gente que espera. Da última vez tirei o número 65, ia a procissão no 12. Fico séculos para ali, a olhar.
 
Espera--se para tudo, somos feitos não de carne, de paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão. Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez. Aguardo a minha vez.
 
Desde que me conheço que aguardo a minha vez. A minha vez de quê? E lá fora uma chuvinha sem peso. Um princípio não bem de frio, de desconforto.
 
– O que fazes no mundo, António?
 
– Aguardo a minha vez.
 
Uma senhora de papelinho para outra de papelinho
 
– Já não estou cá a fazer nada
 
e na época em que estava cá a fazer alguma coisa o que fazia? Emprego – marido – filhos – reforma – netos e agora varizes – coração – diabetes – ossos, este alto no pescoço. Amanhã análises no hospital, outro papelinho com um número, depois do papelinho da consulta em que ouviu
 
– Não gosto do seu alto
 
e o doutor a escrever, a arrancar a página, a estender-lha
 
– Precisamos de uns examezinhos.
 
A outra senhora
 
– Que direi eu com os miomas
 
e uma conversa densa de afluentes, sub-afluentes e lagoas acerca de pontadas, desconfortos, cólicas, o marido às voltas com a próstata, a pingar toda a noite.
A do alto no pescoço
 
– Molha-me o pijama todo
 
e a que não tem alto enviuvou: uma coisa no pâncreas resolveu-lhe o matrimónio em três meses e enfiou-lhe, em lugar de uma, duas alianças no dedo:
 
– Mandei apertar a dele para não me cair
 
de modo que traz o que resta do marido ali. Ficam ambas a olhar as alianças, num interesse melancólico. O falecido cobrador do gás, grande, forte
 
– Vendia saúde
 
deve tê-la vendido toda e quando precisou de comprar não achou nas retrosarias, ele que a possuía aos montes.
 
– Nunca faltou ao trabalho
 
insistia a viúva, de tal maneira a saúde era inclemente e excessiva e parece que o amor ao medronho também, a calcular por referências laterais respeitantes ao facto de aos sábados à noite abrir a porta de casa a pontapé
 
(– Levava tudo à frente)
 
e acabar de gatas na cozinha a vomitar a alma.
 
Fora isso era um cordeirinho
 
– Fora isso era um cordeirinho
 
bom esposo, bom pai, bom amigo, bom avô, até bom genro
 
– Até bom genro, calcule
 
sempre pronto a ajudar, sem amantes.
 
– Já lhe chegava o vinho
 
sugeriu a outra e a conversa amorteceu porque a viúva não gostou da insinuação e além disso o número dela aproximava-se. O problema era que o número anterior, um rapaz de bigode, trazia cinquenta cartas para registar, e nós todos, os que esperávamos, pensámos num julgamento sumário com condenação à forca e execução imediata, sem possibilidade de apelo ou recurso.
 
Os restantes balcões de atendimento achavam-se vazios dado que as empregadas discutiam o gel nas unhas de uma colega que exibia dez navalhas escarlates na ponta dos dedos. O gel foi aprovado por unanimidade e exclamações e fiquei a saber que a proprietária das navalhas se chamava Suzete Mendonça e o namorado a queria sensual
 
– Como as actrizes porno
 
precisou uma de óculos e cachucho de pechisbeque no indicador e as colegas deu-me a ideia de acharem bem, mudando a linha do debate para cintos de ligas e artigos correlativos até voltarem, com um suspiro de penitentes, às suas cadeiras, onde ficavam minutos compridos a meditar nos cintos, esquecidas de nós, enquanto a que se chamava Suzete Mendonça estudava os apêndices com orgulho, a viúva rodava a aliança, saudosa do bom genro e eu principiava a zangar--me com o facto de ser tão traduzido, decidindo romper o contrato com a minha agência e imaginando a que se chamava Suzete Mendonça em atitudes sensuais, difíceis de conseguir numa criatura tão magra e com um quisto sebáceo na testa.
 
Mas podia ser que o gel anulasse o quisto e incendiasse o namorado, com a ajuda do piercing que trazia na língua, uma esfera cromada do tamanho de uma bola de pingue-pongue que a obrigava a uma pronúncia de sopinha de massa. Daqui a quantos anos chegará a sua altura de já não estar cá a fazer nada? Das análises no hospital? Do médico
 
– Não gosto do seu alto?
 
das unhas de gel uma recordação perdida? Do divórcio, da reformazinha que aumentava os dias do mês? Do cinto de ligas no lixo? Do namorado a queixar-se do pâncreas? Toda a existência termina com a frase
 
– Precisamos de uns examezinhos
 
e uma senha de papel num laboratório de análises onde Suzetes Mendonças ainda por nascer demorarão a atendê-la, discutindo meias de rede e poses sensuais.
 
 
© António Lobo Antunes
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publicado por ardotempo às 16:25 | Comentar | Adicionar

Aforismo Borgesiano - 46

Presente/Passado

 

"Só possuímos o que perdemos; talvez esse seja o encanto que o passado mantêm.

O presente carece desse encanto."

 

 

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina

publicado por ardotempo às 16:22 | Comentar | Adicionar

Oca-Kracjberg-Foto

 Fotografia de Mário Castello

 

 

Oca - Kracjberg - Fotografia de Mário Castello (São Paulo) 2008

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Willen De Kooning - Pintura

 Pintura expressionista

 

 

Sem Título - Willen de Kooning - Óleo sobre tela (sem data)

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Sexta-feira, 05.12.08

Nicholas De Stael - Pintura

Pintura

 

 

Nice - Nicholas De Stael - Pintura - Óleo sobre tela de linho, 1954 

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publicado por ardotempo às 23:29 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 04.12.08

Invenção na Literatura

A imaginação é o reino do leitor

 

Este é um tema crucial na Arte em geral. O da invenção artística. Fala-se da capacidade de surpreender e de acrescentar algo às nossas vidas, como escritores e como leitores. Falo da Arte e isso engloba as várias manifestações criativas, as da literatura e das artes plásticas, a da música, cinema, teatro ou de outras expressões nas quais um indivíduo ou indivíduos criam e executam algo proposto como criativo, inventado como expressão artística, com maior ou menor talento. Isso diz respeito à autoria, mas creio que diga respeito fundamentalmente ao observador da obra de arte, ao leitor da obra escrita, ou seja - o público será a parcela, provavelmente, mais importante do fenômeno cultural.

 

Essa minha convicção espelha os meus sentimentos como escritor e como artista plástico, na forma como vejo a obra criada e o seu reflexo, infinitamente maior e mais consistente, na recepção e na interpretação pelo público.

 

Vamos falar da Literatura. O grande Jorge Luis Borges afirmava que “ler é a outra espécie da felicidade”. E Gaston Bachelard, instado sobre a existência ou não do Paraíso, aquiesceu dizendo que o imaginava como uma formidável e estupenda biblioteca. A promessa da epifania e do prazer da descoberta, recorrente e eterno, na leitura dos livros.

 

Em ambas as afirmações, significativamente está a expectativa dos dois, no papel de leitores, pelas surpresas das invenções escritas por outros.

 

Em Literatura pode-se inventar formalmente ou em conteúdo. Existe constantemente a busca de maneiras diversas de se expressar, de maneira coloquial, com estilos lapidados e modificados, com transgressões de pontuação, com a criação de novas palavras, com coletas de documentos, anexação de imagens, fac-simíles, estruturas gráficas ousadas, propostas de reestruturação estética ou com a revelação de uma narrativa de conteúdo original.

 

Recentemente Ferreira Gullar, em um artigo sobre os poetas neo-concretistas da década sessenta no Brasil, escreveu acerca de suas dúvidas frente a um manifesto da época, que impunha que a poesia nova e contemporânea deveria ser feita segundo umas determinadas equações matemáticas. Ferreira Gullar refutou o preceito e pediu aos poetas que lhe enviassem esses novos poemas matemáticos. O que nunca aconteceu.

 

Esse fato, de uma invenção proposta teoricamente, que não se concretizou, chama a atenção para duas situações almagamadas: não basta uma proposta inusitada e pretensamente original, é necessário antes concretizá-la (e vai aí muito trabalho, muita atividade árdua para a realização da idéia inicial) e a felicidade de realizá-la com talento.

 

Poder-se-ia imaginar, por exemplo - formalmente - um romance de umas trezentas e poucas páginas, que começasse com uma maiúscula e seguisse numa linha só, descritivo e com diálogos, ao longo de todo entrecho, pontuado com virgulas e parênteses, terminando centenas de milhares de palavras depois, com apenas um ponto final.Talvez até já se tenha escrito algo assim, mas não se tornou algo conhecido e admirado por muitos. A pergunta que alguém faria... e o conteúdo?

 

Talvez seja essa a surpresa de imaginação, a originalidade da invenção estruturada no ato de escrever, a que nos seja a mais importante, a experiência mais funda e radical - a do conteúdo literário. O romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa é o farol bem sucedido dessa experiência profunda. É evidente que ela pode vir revestida de outras inovações formais, é bom e é saudável que seja também assim. Júlio Cortázar e Ignácio de Loyola Brandão transitaram com desenvoltura nessas lindas experimentações, mas a originalidade das suas invenções esteve sempre estruturada na originalidade da idéia literária, no seu conteúdo literário e na qualidade da sua escrita.

 

Nesse caminho da invenção, há um outro requisito importante. O do conhecimento. Para se ser verdadeiramente original e inventivo, talvez seja necessário antes de tudo ser curioso, ler muito e bem, investigar e pesquisar, a partir de suas próprias vivências e das vivências escritas de outros. É bastante importante que se saiba o que já se fez, o que se faz, como se fez e o que se está fazendo. Para não se inventar o que já se inventou, por exemplo.

 

O ler muito será, sem dúvida, uma exigência, agradável, ao bom e criativo escritor.

O que nos remete àquela afirmação de Borges, a da leitura como a outra espécie de felicidade, o que já traz em si uma promessa cativante. Ler muito nunca será uma demasia.

 

Aqui gostaria de traçar dois paralelos com as artes plásticas. O do paradigma e o da consonância ao seu próprio tempo.

 

É difícil ser verdadeiramente inventivo sem deixar de ser paradigmático. O artista é paradigmático quando os outros se fazem parecidos a ele e não ao revés. É impossível ser inventivo quando a obra de algum artista se parece a de algum outro.

 

Certa ocasião, frente à pintura de um importante

artista, testemunhei uma pergunta de Bertrand Lorquin, filósofo, escritor e conservador-chefe do Musée Maillol, de Paris, ao interloculor que lhe apresentava a obra. “Esse artista gostava muito da obra de De Köoning, não é mesmo”? A pergunta continha duas armadilhas. A resposta positiva  denunciaria a influência, talvez excessiva, do artista europeu sobre o seu seguidor, o que retirava parte da originalidade da obra apresentada.

 

Negativa, demonstraria uma ignorância do pintor sobre um dos artistas modernos mais importantes no circuito internacional. Obviamente que o artista, bem informado conhecia bastante bem aquela obra-fonte que o influenciava, o que automaticamente o colocava numa posição de não-paradigmático. O que resultou num interesse menor por parte dos europeus que consideraram não existir naquela obra apresentada uma originalidade singular e sim algo que trazia elementos reconhecíveis e identificados com outro artista, este sim a semente daquela linguagem.

 

A invenção está algo ligada ao paradigma.

 

Foi áspero (e impactante) para Picasso ser cubista em 1907, com “Demoiselles d’Avignon” (“As Senhoritas do Carrer Avignó – Barcelona), então de difícil e de demorado reconhecimento... mas realizar pintura cubista hoje, convenhamos, um século depois, é bastante fora de sintonia com o seu próprio  tempo e algo sem interesse para qualquer um aficcionado em arte. É também algo estéril fazer hoje uma obra de arte à maneira de Marcel Duchamp, artista este sim, inventivo, único e paradigmático, de quem se diz, com propriedade, que a obra, seminal e revolucionária, começa com ele e termina com ele próprio, porque qualquer trabalho outro realizado hoje em dia da mesma maneira, quase um século depois de sua fatura, sempre resultará apenas num duchamp inautêntico e apócrifo. Um pastiche, algo falsificado, extemporâneo, daquele artista notável.

 

Quem pode ser Miró, que não seja o próprio Miró?

 

Assim vale para a literatura, especialmente quando se fala de invenção literária.

Eu ressaltaria ainda dois aspectos que considero importantes: a vivência da fantasia individual do escritor e a técnica pessoal de sua expressão, (aquilo que poderíamos chamar de talento).

 

Com estes dois elementos o escritor poderá construir uma realidade ficcional que será sutilmente modificada ou recriada pelo leitor, a partir das sua próprias experiências individuais e de sua coleção cultural; e deste processo de conhecimento pela leitura uma nova realidade ficcional resultará numa nova  percepção, esta agora, do leitor.

 

O escritor poderá criar o seu texto, bem ou mal. Teremos como resultado uma literatura boa ou ruim. O texto poderá ser de grande relevância, de surpresa e de invenção (ou o escritor poderá não ser bem sucedido na sua aventura). Será, normalmente, uma aventura individual, árdua, com todos os seus procedimentos técnicos, a escrita, as correções, o “limar” interminável e exigente do próprio texto, as revisões finais até a edição do livro.

 

Agora chegamos ao ponto em que entra em cena o grande protagonista, o que parametriza e determina efetivamente, com precisão, o grau de acerto da invenção, aquele que é o mais importante: o leitor.

 

Essa minha convicção não é uma informação simplória, tampouco uma demagogia.

 

Nas artes plásticas, na pintura, quando Leonardo Da Vinci pintou a Mona Lisa, ele não decidiu, nem terá sequer desejado, que aquela obra fosse se tornar o ícone em pintura mais reconhecido e celebrado na história da arte ocidental, talvez do mundo.

 

Ele não poderia imaginar esse futuro, ele apenas pintou o esplêndido quadro com o talento e a técnica apurada que desenvolvera. Foi o público que elegeu a obra e deu-lhe a dimensão incomum.

 

Eu busco aqui um exemplo muito específico no qual a presença do leitor será a chave para a dimensão abrangente e mutante do texto, estabelecendo níveis de compreensão transitórios e cumulativos desde as experiências individuais e às releituras do texto pelo leitor. Essa é uma curiosidade e uma interrogação que nos assinala.

 

Ou seja, o texto é continua sendo exatamente o mesmo, mas a leitura especializa-se nas transformações ocorridas em quem o lê  e posteriormente o relê - ele se modifica e se enriquece à partir das mudanças ocorridas no universo de cada leitor, no aprendizado, no sofrimento, nas experiências, no conhecimento adquirido, nas novas leituras incorporadas. O leitor transforma-se com o passar do tempo, com a absorção de novas experiências, o texto já não é percebido da mesma forma, há uma nova avaliação, uma nova exigência, às vezes para melhor, muitas vezes para uma redução na qualidade da avaliação.

 

 

Explico melhor citando o Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrel, esse belíssimo conjunto de quatro romances que tanto encantou a Erico Verissimo. Os quatro livros (Justine, Baltasar, Mountlive e Cléa) contam, em quatro versões diferentes, narradas por quatro personagens com suas respectivas óticas e conhecimentos específicos e testemunhados, a mesma história, que vai se modificando para o único que detém o conhecimento privilegiado das nuances subjetivas que cercam toda a trama. Este é, evidentemente, o leitor, que forma a sua quinta versão, somatório interpretado das quatro versões de óticas diversas colando-se às suas próprias experiências existenciais. Ora, essa versão “definitiva” (que não será também, como veremos a seguir) não está escrita, ela existe apenas na imaginação do leitor. A história inventada pelo leitor.

 

Digo que ela não é ainda a versão definitiva, uma vez que cada leitor terá a sua em seus próprios tempos. Eu li os quatro volumes em quatro momentos diferentes de minha vida de leitor, e os compreendi que maneiras diferentes, interpretei trechos e reflexões do autor à luz de novas experiências e do amadurecimento pessoal.

 

E os livros sempre me pareceram renovados, mais empolgantes e mais assombrosos na capacidade imaginativa daquele autor. E a minha versão final sempre resultou sutilmente modificada, tendo sido construída página a página em cumplicidade silenciosa com aquele escritor. Ora, como isso pôde ocorrer? O texto original estava ali desde o início... No entanto tudo mudou.

 

E isso certamente ocorreu e ocorre com todos os leitores que lêem os quatro livros. Terá o escritor previsto essa infinidade de novas versões imaginadas? Talvez, mas a riqueza literária que ele detonou, no conjunto reconstruído por seus leitores é imensa, e esse “volume” de imaginação, se é que podemos chamar assim, é da responsabilidade dos seus leitores.

 

E me parece que é isso que eterniza os bons livros (como naquele caso do quadro da Mona Lisa), - o livro permanece vivo não porque o autor (em muitos casos, já falecido e ausente) assim o desejou, ele não tem esse poder de antecipação, o texto permanece, cresce  e se renova, constantemente, no ato da leitura,  pela  presença e pela existência de seus leitores.

 

Dessa forma, eu concluo que o livro só existe porque o leitor existe.

 

 

 

© Alfredo Aquino (Passo Fundo - Jornada Literária, 2007) 

publicado por ardotempo às 14:03 | Comentar | Ler Comentários (3) | Adicionar
Terça-feira, 02.12.08

Cabeças

"O Senhor é meu Pastor; e nada me faltará." 

 


 

Fotografia - Cabeças - Mário Castello - (Rua São Caetano, São Paulo) 2008

publicado por ardotempo às 17:20 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 01.12.08

O homem que se sentia losango

António Lobo Antunes

 

Hoje pensava almoçar com os meus camaradas da guerra.

 

Entrei no restaurante e não encontrei nenhum deles. Apenas o empregado que me barrara a saída umas noites antes porque me ia embora esquecido de pagar a conta. Desta vez sorriu-me. Se calhar continua convencido que eu não queria pagar.

 

Bom, como os meus camaradas não estavam fui a uma pastelariazinha ao lado e pedi um miniprato de almôndegas, um copo de vinho branco, uma mousse de chocolate e um jornal qualquer. Não tirei os olhos do jornal até ao fim da mousse e não me lembro do que li porque levei o tempo inteiro a pensar na minha vida, isto é as ideias vagueavam sem se deterem entre episódios de antigamente e episódios de agora.

 

E a mesma pergunta, sempre, o que fiz da minha vida, o que vou fazer da minha vida, isto numa pastelariazinha de bairro onde muitas pessoas, sobretudo mulheres, engolem qualquer coisa apressada e barata, de pé, apoiando-se ora num tornozelo ora no outro encostadas ao balcão. Os empregados, em mangas de camisa, cirandam a correr entre as mesas. Gosto de os ouvir gritar para a cozinha 

 

- Sai isto, sai aquilo

 

e das senhoras velhas, muito pintadas, que ocupam sempre o mesmo lugar, cheias de anéis nos dedos gordos. Não têm corpo, têm sucessões de pregas. Brincos que cintilam. Colares exagerados. E olhos graduados como réguas a medirem quem entra, de pestanas que parecem antenas.

 

De vez em quando uma delas parte uma perna e encosta ao lado da cadeira canadianas majestosas. Pela abertura do gesso as unhas escarlates medem-nos também. De tempos a tempos folheiam revistas sobre divórcios de actores de telenovelas e outras criaturas correlativas, comentam, têm opiniões. Palavra de honra que faz impressão unhas escarlates a espiarem do gesso, cinco unhas de tamanho decrescente como elefantes alinhados numa prateleira: nas retrosarias não são caros.

 

A seguir ao almoço, ao chegar aqui, o telefone tocava: uma voz feminina à procura do meu primo. Disse-lhe que não o tinha visto. Perguntou como podia encontrá-lo. Respondi que não sabia e sugeri-lhe que abrisse a janela e gritasse o nome dele. Podia ser que a ouvissem, Lisboa não é assim tão grande.

 

Ficou a duvidar de mim, chegou ao ponto de insinuar que eu não falava a sério. Depois reflectiu melhor e concordou em experimentar. Se experimentou, pela minha parte não ouvi nada. Pode dar-se o caso de morar longe e assim sendo é provável que em Sintra ou na Amadora a hajam escutado. Isto se a não levaram para o hospital psiquiátrico ao segundo berro. Quando eu era pequeno, em Benfica, havia mães que chamavam os filhos dessa forma, ao fim da tarde. Aposto que até os bichos no Jardim Zoológico se arrepiavam todos, hienas incluídas. Mas essas são fáceis de arrepiar, andam sempre de pêlo levantado nos documentários da televisão. 

 

Antes de começar a pensar no livro, ou seja na morte da bezerra, liguei a um camarada meu:

 

-  O almoço é para a semana.

 

Interessou-se sobre como é que eu estava, eu que nunca sei como estou e sou incapaz de responder 

 

- Vamos andando

 

sobretudo quando estou sentado 

 

- Como estás? 

 

é uma bela questão. Normalmente respondo 

 

- Sei lá 

 

porque não gosto de mentir. E sei lá de facto. Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito, outras não estou sequer: deslizo por aí armado em nuvem. 

 

- Como está 

 

e é impossível responder 

 

- Deslizo por aí armado em nuvem 

 

de modo que me calo ou resmungo sons desconexos. Não sou de todo mau em sons desconexos, tenho anos de treino. Escrevo isto e sinto as almôndegas a conversarem comigo: despenharam-se-me na barriga feitas pedregulhos, rebolam cá por dentro num fundo de puré, meio dissolvido pelo vinho branco: é o que acontece a quem se mete com minipratos. Devia ter pedido bicos de rouxinol. Ou ter acertado no dia do almoço com os meus camaradas de guerra a lembrar os maus velhos tempos 

 

- Sai uma de bicos de rouxinol para a mesa doze 

 

e a cozinheira lá dentro a prepará-los. 

 

Se me interrogarem 

 

- Como estás? 

 

explico que não estou redondo nem quadrado. Neste momento acho-me mais uma espécie de losango 

 

- Estou losango 

 

quem interroga a olhar para mim sem entender: 

 

- Losango? 

 

e eu 

 

- Sim, losango, nunca te sentiste losango? 

 

Nunca se devem ter sentido losangos. Há alturas em que me acontece pensar que as pessoas são esquisitas mas deve ser problema meu. Aposto o que quiserem que é problema meu.

 

© António Lobo Antunes

Desenho de Saul Steinberg

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Napoleão, um destino

Palestra de Voltaire Schilling

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Napoleão, um destino

02 de dezembro - terça-feira 

19 horas

Museu Júlio de Castilhos

Auditório

Rua Duque de Caxias, 1205 - Centro

Porto Alegre - RS Brasil 

 

Entrada Gratuita

 

 

 

 

 

 

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Bazar do sabor

Fotografia

 

 

Toscana - Pierre Yves Refalo - Fotografia (Itália) 2008

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Aforismo Borgesiano - 45

 Idioma

 

 

"Cada país tem o idioma que merece."

 

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina

publicado por ardotempo às 00:22 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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