Resenha crítica de Luiz Ruffato sobre Carassotaque - Jornal Zero Hora
O escritor mineiro Luiz Ruffato escreve sobre a nova obra de ficção do artista plástico Alfredo Aquino
Os países hispano-americanos construíram, ao longo de sua história, uma verdadeira tradição de romances sobre o exercício do poder. Basta lembrarmos do inaugurador Tirano Banderas, do espanhol Valle-Inclán, seguido pelos não menos famosos Eu, o Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos, O Senhor Presidente, do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, e O Outono do Patriarca, do colombiano Gabriel García Márquez, os dois últimos laureados com o Prêmio Nobel.
Estranhamente, os escritores brasileiros pouco se debruçaram sobre o assunto. Sim, temos o monumento que é O Tempo e o Vento, do gaúcho Erico Verissimo, que honra qualquer literatura, mas, o que mais? Jorge Amado tentou, em Os Subterrâneos da Liberdade, erigir uma discussão sobre a ditadura Vargas, mas o resultado estético é canhestro: muito partidarismo, pouca literatura. Quem conseguiu melhores resultados, no caso, foi outro gaúcho, Dyonélio Machado, com O Louco do Cati. Sob a ditadura militar, houve uma profusão de textos, boa parte deles depoimentos de época, importantíssimos como militância política, mas desprovidos de valor literário. Novamente, correndo o risco de sermos injustos, recordaríamos como perenes Incidente em Antares, de Verissimo; O Simples Coronel Madureira, deliciosa sátira de Marques Rebelo; o alegórico A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga, e o sofisticado Reflexos do Baile, de Antônio Callado, entre outros.
Tudo isso, para louvarmos Carassotaque (Editora Iluminuras, 144 páginas) título singular da narrativa do artista plástico Alfredo Aquino, recém-convertido à literatura com a publicação do livro de contos A Fenda, em 2007. A opressiva novela se passa num país-continente imaginário, a República de Austral-Fênix, situado sobre a grande placa tectônica do Pacífico Sul, “ocupando um largo espaço entre a Austrália e a Nova Zelândia a oeste, e a América do Sul a leste, com várias ilhas adjacentes”. Portanto, um lugar isolado do mundo, mais ainda se levarmos em conta que lá se fala uma inusual língua, o português. O país passou ainda por uma cruel ditadura militar, nos anos 70 do século passado, quando as feições dos habitantes “começaram a desfocar-se” e, logo em seguida, “houve o desaparecimento generalizado” de suas cabeças.
Quando o fotógrafo e jornalista francês Celan Gacilly desembarca no aeroporto de Alma, a capital, a ditadura havia terminado há pouco e as pessoas ainda viviam acossadas pelo medo. Os habitantes não enxergavam a cabeça uns dos outros, mas conseguiam identificar os rostos dos estrangeiros, os carassotaques (que, por isso, por terem “cara” e “sotaque”, eram facilmente distinguíveis na multidão). A esdrúxula condição, de corpos anômalos que se esbarram pelas ruas, é envolta num tabu de silêncios, que torna todos cúmplices do terror. Curiosamente, à medida em que os carassotaques vão se integrando à sociedade, seja por casamentos, seja por hábitos, também eles se dissolvem na multidão incaracterística.
Inconformado com os problemas que medram em todos os cantos, Gacilly resolve denunciá-los não na covarde imprensa local, mas nos jornais e revistas europeus, acreditando que, assim, as notícias repercutirão com maior vigor. Começa, então, por escrever sobre a desertificação do país, provocada pela substituição da imensa floresta nativa pelo “fantasma extinto de um megaprojeto de hiperprodução de álcool e de açúcar”, e sobre a extinção do peixe-ouro. No entanto, quando as autoridades locais tomam ciência do teor da reportagem, começam a persegui-lo, e ele descobre que não conta nem mesmo com a complacência da população, que o acusa de tentar denegrir a imagem do país no exterior...
Mesmo tendo que contornar todas as vicissitudes, Gacilly não esmorece em sua luta contra a opressão e o medo, que, em última instância, traduzem-se em ignorância. Desenvolve um equipamento fotográfico, ironicamente denominado “Especular Gacilly”, que consegue captar a imagem dos habitantes sem rosto, e, com a ajuda de um jornalista local, Rufino Andorinha, publica um livro bilíngüe, português-inglês, Retratos do Povo de um Lugar, no qual relatam o inusitado fato. Serão incompreendidos, mas percebem, afinal, que sua mensagem alcança o coração de alguns jovens, que, aos poucos, vão readquirindo suas faces e contradizendo, assim, o conformismo de uma personagem como Mestre Cedito, que acreditava que em “em Austral-Fênix, o que desaparece não volta nunca mais, a floresta, os peixes, os rostos das pessoas”. Um grande livro de um grande autor.
Fica, no entanto, ainda no ar, a pergunta original: por que será que não temos uma literatura sobre o exercício do poder?
Luiz Ruffato - Escritor, autor de Eles eram muitos cavalos (Editora Record, 152 páginas)
Pintura, óleo sobre tela de Siron Franco - Carassotaque, 2008