Feira do livro, o macaco e os arco-íris subversivos
José Carlos Machado dos Santos
Mais de quarenta anos atrás, em novembro de 1964, por ocasião da 10ª Feira do Livro, o centro de Porto Alegre viveu um momento inesquecível. Naquela tarde, um grupo de militantes do Partido Comunista organizou uma manifestação que, insuspeitada e espontaneamente, acabou envolvendo milhares de pessoas.
A manifestação era simples. Discretamente foi solto na Praça da Alfândega um macaco, conduzindo no pescoço uma pequena tabuleta em que estavam manuscritas algumas críticas à política salarial do Governo Federal.
O macaco começou a chamar a atenção das pessoas, andando desajeitadamente por entre os canteiros da praça. Dali a pouco, foi percebido pela Guarda Civil. Os guardas tentaram capturar o macaco e este subiu, com agilidade, na árvore mais próxima que encontrou.
Lá de cima, instalado no primeiro galho, o macaco ainda carregava a tabuleta e, contam alguns, mostrava-a de um lado ao outro, para as pessoas no chão, provocando risos e causando a maior irritação nos guardas.
Impotentes, estes pediram reforço de tropa. Em seguida chegou uma viatura da rádio-patrulha, que após avaliar a dimensão da ocorrência, chamou pelo rádio de emergência, ao Corpo de Bombeiros. Já estavam lá então aglomeradas umas 500 pessoas.
Os bombeiros vieram com uma viatura dotada de escadas elásticas e as posicionaram até bem próximo do local onde estava o macaco. Um soldado subiu a escada com uma rede especial e tentou encaçapar o bicho. Este fugiu de seu alcance para um galho mais alto da árvore. Nova tentativa e nada. Raios! Agora o macaco até trocara de árvore e já estava lá nos jacarandás mais altos, junto à rua da Praia.
Naquele momento, a praça já estava cheia de autoridades competentes. A guarda civil, a polícia civil, os bombeiros e, à luz da época, o autoritarismo já havia decretado: “Aquele macaco, que ousava criticar o governo, era um elemento subversivo”.
Tinha de ser preso a qualquer custo.
Os bombeiros pediram novos reforços. Dali a pouco, sob o soar espetacular de bizarras sirenes importadas, chegou uma nova guarnição completa, desta vez com uma portentosa escada Magirus. Já se concentravam entre praça da Alfândega e na rua da Praia umas 3.000 pessoas E o macaco, quietinho, lá em cima.
A escada foi içada em direção ao perigoso elemento transgressor. Sobe um soldado com uma nova rede em semi-arco circular e tenta encaçapar o macaco. Este muda de árvore e tem-se que mover a escada, com certa morosidade, para a nova posição. Nova tentativa e nada.
Nesta altura a multidão, a cada troca de galho ou de árvore, exclama num coro jocoso e afinado. Óóóóóóóóóóóóóh!. Não é preciso dizer que a galera toda estava torcendo para lado frágil, o macaquinho assustado.
Frustrado, o soldado bombeiro desce da escada, abandona a rede e sobe, agressivo, munido com uma potente mangueira. Ligada a bomba, fortes jatos d’água atingem o suspeito e este muda de posição a todo momento. O foco da mangueira não acerta um alvo tão pequenino e os jatos se perdem no espaço. A multidão vibra a cada movimento e até o soldado fazer nova pontaria, o macaco já mudou novamente de lugar.
A praça, naquela época, era bastante ensolarada e aqueles jatos d’água que se perdiam no espaço, precipitavam-se sobre a rua da Praia sob a forma de uma finissima névoa, formando sucessivos arco-íris que vinham descendo, descendo até extinguirem-se sobre o leito da rua.
Após horas de luta, o macaco extenuado acabou finalmente capturado e segundo consta foi conduzido prisioneiro ao Zoológico de Sapucaia. Eu estava lá, por mais de uma hora e assisti, com outras 5.000 pessoas aquele espetáculo de violência em que, pela primeira vez publicamente, o povo estava torcendo abertamente contra os bombeiros, contra a polícia, contra o Governo.
Mas, se aquele macaco era tão subversivo, por que não prenderam também aqueles arco-íris que teimavam em se formar, para a alegria de todos? Era a única coisa bonita que resultava bem naquele circo de violência desproporcional. Para mim, aqueles arco-íris também seriam subversivos e deveriam ter sido recolhidos todos, a falta de um lugar adequado, ao Instituto Coussirat de Araújo, o nosso centro de meteorologia daquela época.
© José Carlos Machado dos Santos