Domingo, 30.11.08

Sonho

Como num sonho
 
Ferreira Gullar
 
Ele sabia  que o fato mais importante e definitivo de sua existência estava para acontecer. Não o sabia como se sabe que dia é hoje ou que, ao lado do escritório, está o quarto de dormir. Sabia-o como nos sonhos. E assim, como nos sonhos, enxugou-se após o banho, trocou de roupas e decidiu sair de casa. Não sabia por que o fazia nem para onde iria.
 
Foi até a garagem, entrou no carro e saiu para a rua que, como nos sonhos, era fantasticamente a mesma, demasiado a mesma, com as fachadas de sempre, a banca de jornais, os carros estacionados no meio-fio. Sem decidir tomou o rumo de Ipanema, pois intuía que era para lá que deveria ir, depois de tanto tempo sem andar por ali. É que, nesta tarde, vivia um momento diferente e definitivo: teria que ir para lugares onde continuavam pulsando afetos de passados instantes. Mas não pensava nisso: apenas ia.
 
Ligou o CD, pôs nele um disco de Nara. Como nos sonhos. E a voz dela incrivelmente verdadeira não parecia a voz de quem já não existe. É que ela ainda existe, de outro modo. Ela cantava mas era como se conversasse com ele, dentro de seu carro, em certa noite de 1964, à porta do Teatro Opinião. Ali ficaram quase até amanhecer. Volta a ver seu rosto na penumbra, seu sorriso e aquele olhar de bichinho bom.
 
De repente, está rouca, na sala de sua casa, lhe diz que não voltaria ao show Opinião, ia sair em excursão pelo Nordeste e quer que ele a acompanhe. Já agora, muitos anos depois, ela o chama pelo telefone: "Só para você tenho coragem de contar isto: estou curada, o tumor desapareceu, estou curada!".
 
É pau, é pedra, é o fim do caminho... Sua voz se mistura à de Tom Jobim, cujo rosto sorridente aparece na vidraça do carro. Puxa uma baforada no charuto e some desfeito na fumaça. E as estrelas que esquecemos de contar... Ao atravessar a avenida Graça Aranha, no centro do Rio, numa tarde de muito sol, alguém o chama pelo nome, ele se volta: é Tom, de paletó, segurando uma pasta, e que acena para ele, sorrindo, e some entre os transeuntes, poucas semanas antes de fazer sua última viagem. A onda que se ergueu no mar...
 
O carro chega quase ao fim da Barata Ribeiro. Àquela altura, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, esquina de Francisco Sá, no Bar Bico, Otto, Fernando Sabino e Armando Nogueira conversam altas horas da noite. O carro dobra pela rua Rainha Elizabeth e chega até a praia de Ipanema, deslumbrante ao sol. Não é domingo, mas a praia está cheia de gente, barracas, vendedores de sucos, picolé e sorvete. Ciclistas passam ao lado do carro. Lá adiante, muito adiante, depois do Leblon, erguem-se o Morro Dois Irmãos e a Pedra da Gávea. Coisas eternas. Testemunhas de tantos domingos de sol, quando ali, em frente à Farme de Amoedo, ele e os amigos bebiam água de coco e discutiam política. Tudo como num sonho.
 
O carro continua mas as montanhas parecem se afastar, negras contra o azul-celeste. E ali estarão para sempre, porque não vivem; apenas são. Duram, duram, enquanto aqui embaixo as pessoas chegam e passam, como as ventanias.
 
Observa as coisas com a surpresa de quem as vira antes.
 
A canção se repete na memória - a onda que se ergueu no mar - e, de repente, ele vê sobre areia vazia da praia, seus amigos ausentes brincando de dançar ciranda. O mais animado é o Vinicius. De mãos dadas, eles rodam e flutuam, alguns palmos acima da areia que esplende à luz da tarde.
 
Enquanto isso, o carro segue em direção às negras montanhas que se afastam. Sabia, este era o passeio que faltava fazer, antes do acontecimento definitivo. O carro levantou vôo e avançou sobre as últimas casas do Leblon, planou sobre a encosta e prosseguiu até perder-se nas nuvens.
 
Mas agora ele sai do elevador, mete a chave na porta e defronta-se com a sua sala de jantar: a mesa, as cadeiras, a estante repleta de livros. Tudo ali, intacto, eterno. O fato extremo e definitivo não tardaria a ocorrer.
 
Atravessa a sala, caminha pelo corredor até o quarto de dormir. Observa o cenário: ali estão o pequeno armário, o cabide de pés, a cômoda e o guarda-roupas, em cujo espelho a obscuridade da ausência se reflete. E então, todas as imagens, todas as lembranças, todas as vozes do mundo foram se apagando, e ele teve a vertiginosa certeza de que nunca mais as ouviria. Foi até a cama e nela se deitou. Nunca lhe parecera tão macia e acolhedora.
 
 
 

© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL 

tags:
publicado por ardotempo às 12:38 | Comentar | Adicionar
Sábado, 29.11.08

Abstração

Fotografia

 

 

Fotografia - Martin Parr (Moscou, Rússia) - 2007

publicado por ardotempo às 18:46 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Retratos Notáveis - 18

O escultor do Sul

 

 

 

Fotografia: Retrato de Gonzaga (Porto Alegre -RS) - 2008

Fotógrafo: Pierre Yves Refalo 

publicado por ardotempo às 18:29 | Comentar | Adicionar

Catedral em Prosa

A catedral em prosa de Rainer Maria Rilke
 
Mariana Ianelli
 
Anos atrás, relendo o livro de um dos mais influentes autores de língua alemã do início do século 20, José Saramago viu surgir o embrião da idéia que o levaria a escrever "As intermitências da morte". Tratava-se do romance "Os cadernos de Malte Laurids Brigge", de Rainer Maria Rilke, de volta às livrarias brasileiras após décadas fora de catálogo, pela editora Novo Século, na tradução de Lya Luft. A considerar o lançamento não menos recente, em coletâneas até então inéditas em português, de algumas das inúmeras cartas escritas por Rilke ao longo da vida, aos poucos vai se ampliando o espectro da obra deste que foi, além de autor dos célebres "Sonetos a Orfeu" e "Elegias de Duíno", um insaciável epistológrafo e contista. 
 
Em uma carta a Rodin, datada de 1908, época em que ainda compunha "Os cadernos", Rilke se refere à prosa como uma "catedral" que deve ser construída para a solidão da consciência. Com essa mesma imagem, pode-se definir a trama de seu romance, tecida pelos relatos de amor e de morte do jovem Malte Laurids Brigge, cujas incursões pelas ruas de Paris e lembranças de infância fundem-se na construção de um único edifício. Pois é dentro desse espaço imaginário de luz e de sombra, sensações e pensamentos, que se torna real o testemunho de uma existência. 
 
Durante o período em que o livro é escrito, entre 1904 e 1910, Rilke também conclui os poemas de "O Livro de Horas" (1905) e "Cartas a um jovem poeta" (1908). No mesmo intervalo, precisamente em 1907, a visita a uma exposição de Cézanne, no Grand Palais, em Paris, deixa-o de tal modo impactado com a obra e a vida desse artista que ele acaba por aprofundar em seu trabalho fortes relações entre pintura e poesia. Essas reverberações e nuances são reconhecíveis em muitas passagens de "Os cadernos", que não deixam de suscitar ainda um intenso diálogo do autor com os poetas que ele lê e admira, como Jacobsen e Baudelaire. 
 
Fechando um pouco mais o foco sobre tais influências, há uma síntese poética presente no romance que perpassa toda a atividade literária de Rilke - andaimes, por assim dizer, que erigem e abrigam sua catedral e outros escritos: da vida monástica, da peregrinação, da morte e da pobreza. Eis aí as partes que subdividem "O Livro de Horas", e que, juntas, permitem entrever o caminho interno que o escritor percorreu desde muito jovem, com uma espiritualidade extracristã, até chegar aos seus últimos sonetos e elegias. Marina Tsvetáïeva, em uma carta enviada ao poeta poucos meses antes de sua morte, em 1926, reconhece nessa síntese de natureza humana "uma topografia da alma" impossível de ser desmembrada, algo que "pode ser visto pelo mais simples camponês - com os seus olhos -, atestado. O milagre: o intocável, o inacessível". 
 
Com efeito, Rilke é um entusiasta da totalidade inseparável da vida e da morte, do terreno e do maravilhoso, do efêmero e do sublime. Toda experiência de queda ou de perda tem para ele uma força atuante que deve ser assimilada e sofrida. Posse e tarefa de cada um, a morte não é falta, e sim abundância, maturação diária, um compromisso do humano com o que lhe é humanamente inapreensível. Apenas a compreensão maior de uma existência que não exclui nem o abjeto, nem o terrível, pode fazer justiça ao amor, em tudo o que nele é também transbordante e partícipe da vida. Cioso dessa tarefa de admirar cada coisa conforme seu peso, e cada vivência de acordo com sua velocidade, Rilke se aferra ao trabalho solitário e cotidiano da escrita, orientado pelo mesmo ímpeto com que Cézanne se dedicou à pintura, colocando a si próprio em risco, sem recuar diante do difícil.
 
 
 
Os episódios de morte, em "Os cadernos", a exemplo da emblemática agonia do Camareiro Brigge, e as marcas do sobrenatural, também constantes nos contos do autor, falam de uma mesma reconciliação com algo prodigioso, que excede a dimensão do inteligível. O relato do herói, quando criança, diante do armário de fantasias traz outra imagem relevante desse encontro com o desconhecido, que, não por acaso, remete aos famosos versos de Álvaro de Campos, no poema Tabacaria: "Quando quis tirar a máscara / Estava pegada à cara". 
 
Além disso, cabe destacar no romance o olhar revelador de Rilke sobre seu tempo, registro de uma modernidade hostil aos valores do passado e expatriada da noção do divino. Entram aí os retratos da juventude parisiense, as reflexões do narrador em tom de missiva, nas quais ecoam as páginas de Cartas a um jovem poeta, e, finalmente, o belíssimo trecho sobre a procura do amor na parábola do filho pródigo ao final do livro. 
 

Atravessando o espaço de quase um século, o ressurgimento de Os cadernos recupera para a atualidade, nas palavras visionárias de Malte Laurids Brigge, a interrogação de um poeta que, mais uma vez, impõe sua urgência e faz pensar: "Quem, hoje, dá valor a uma morte bem executada? Até os ricos, que poderiam dar-se ao luxo de morrer bem, começam a se mostrar relaxados, indiferentes; faz-se cada vez mais raro ter uma morte particular. Mais um pouco e será tão raro quanto ter uma vida particular". 

 

 

© Mariana Ianelli , 2008 - Poeta, autora de Almádena, Fazer Silêncio, Passagens, Duas Chagas e Trajetória de Antes - Iluminuras

Publicado no Blog Prosa On Line

publicado por ardotempo às 16:57 | Comentar | Adicionar

Poema inédito de Mariana Ianelli

Pompéi
 
Étrange matin de Pompéi,
Nous nous embrassons comme une araignée.
Nous avons tout le temps et le temps s’écoule,
Dans une minute le passé élabore
Le musée du futur.
 
Nous pouvons encore aimer la maison,
Remplir les tasses,
Inventer quelque petit désir
Avec l’air d’importance.
 
Quelque gracieuse rêverie
Nous pouvions, s’il faudrait,
Un trou d’oubli
Où toutes les choses cachent la mémoire.
 
Nous avons preferé le moment tout blanc,
L’art bien soignée de la sculpture.
 
N’importe pas le visage effrayé,
Le corps sans occasion de fuite.
Arretera la rafale de poussière,
La fièvre arretera et l’ombre.
 
N’arretera plus ma solitude en secouriant la tienne. 
 
 

© Mariana Ianelli, 2008 

 

 


 

Fotografia de Mário Castello

publicado por ardotempo às 16:01 | Comentar | Adicionar

A página infinita da internet

O blog de José Saramago

 

Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui.
 
Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na “página infinita da Internet”.
 
Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos, me questionava. Seguramente para um blog.
 
José Saramago 

tags: ,
publicado por ardotempo às 13:36 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

O Elefante cruzou o Atlântico

Novo livro de José Saramago

 

A Viagem do Elefante

 

 

De viagem, e não mais do que isso, trata o novo livro do Nobel da Literatura português. A data de lançamento do livro não será alheia ao facto de se comemorarem dez anos sobre o mês em que foi anunciado o nome de Saramago para o prémio, que se lembrou no passado mês de Outubro com numerosas reedições e promoções sobre as antigas edições do autor, nem à estreia nas salas portuguesas da adaptação ao cinema por Fernando Meirelles do Ensaio Sobre a Cegueira que acontece depois de amanhã. Não será, certamente, o livro alheio a isto mas a história é. E, como comecei logo por dizer, a história não é mais do que uma viagem. Uma longa, não tão longa assim, viagem.
 
E aqui, logo após uma pequena introdução ao livro ou ao autor ou ao motivo que me moveu a ler determinada obra, tenho por costume dedicar umas quantas linhas à curta sinopse do enredo. O que neste caso me está a causar celeuma é que as linhas serão ainda mais curtas do que o habitual, e daí este introdutório anormal, porque história tão simples é difícil de encontrar. Talvez por isso o próprio autor se recuse a qualificar A Viagem do Elefante como um romance, preferindo a designação mais modesta, ou não, de conto.
 
Algures pelo século XVI, e aqui começam as dúvidas, é isto um livro de características históricas ou não, digo-vos eu que não, não é, os factos verdadeiros, ou assim descritos pelos documentos que aos dias de hoje, não encheriam nem uma página, nas palavras do próprio Saramago, dizia eu que algures no século XVI, D. João III de Portugal decide presentear o seu primo Arquiduque Maximiliano da Áustria com um elefante indiano que estava há dois anos em Lisboa, vindo de Goa. Feitas as necessárias diligências burocráticas, elefante e restante comitiva, não esquecendo, é claro, o seu tratador, o cornaca Subhro, partem para Figueira de Castelo Rodrigo onde será entregue à comitiva austríaca que aí o iria receber. Em terrenos espanhóis, até Vallaidolid, uma escolta luso-austríaca acompanha o paquiderme à presença real para este ser entregue ao novo dono que estava, até aquela data, em Espanha.
 
Os portugueses voltam à pátria com a sensação de dever cumprido, e Subhro, que agora se chamará Fritz a mando do Arquiduque, tal como Salomão se passará a chamar Solimão, mais os Arquiduques e restante séquito atravessam a Europa em direcção à Viena de destino. Isto é o enredo e, como se vê, não é mais do que uma viagem de um elefante, como tão bem está descrito no título do livro.
 
Incrível é como um livro tão curto, em comparação com outros do mesmo autor, pode ter tanto para ser dito acerca dele. Há quem diga que este é o melhor Saramago dos últimos dez anos, por exemplo aqui, mas pessoalmente sinto-me incapaz de corroborar ou descartar tal afirmação pelo simples facto de que não li todos os livros que o autor escreveu na última década, ou para ser mais preciso, não li nenhum, o que é uma afirmação perigosa da minha parte dado a declarada admiração que nutro pelo senhor de oitenta e cinco anos de idade, mas, enfim, não sendo uma parte maioritária da obra, cinco livros dão-me a força suficiente para arriscar tal admiração.
 
Agora, mesmo não podendo dizer que este é o melhor dos últimos anos, posso dizer que este é um Saramago ao nível do seu melhor (Ensaio Sobre a Cegueira, O Ano da Morte de Ricardo Reis), onde o autor apresenta uma visão singular, bem mais leve e despreocupada, até despretenciosa se quiserem, sobre a vida numa metáfora simples, a viagem de um elefante, do que fez nos últimos tempos. Talvez este seja o livro indicado para calar os críticos que o acusam de escrever sempre a mesma coisa, este é um livro bem diferente do dos cegos, mantendo, no entanto, o discurso tão característico que me apaixonou.
 
 
A metáfora é simples e clara: a vida é um elefante em viagem desde Goa, onde nasceu, até Viena, onde há-de morrer. Na vida temos um cornaca que olha por nós e nos ensina coisas, temos um ou mais senhores com poder sobre nós, e temos a oportunidade de fazer milagres, dependendo da nossa vontade. A viagem é carregada de pessoas que a atravessam. Esta é, para mim, a interpretação não literal mais literal que se pode fazer com o livro amarelo. Não me aventuro em mais do que isto porque nem o adiantado da hora a que escrevo, nem a minha falta de capacidade para penetrar nos muitos recônditos que uma viagem elefantina pode ter, me deixam fazer mais do que isto.
 
Tal como a vida, uns passam e nem se nota que passaram, como as várias populações pelo caminho, outros serviram um propósito, como a tropa austríaca, outros partem e deixam saudades, como o capitão luso. É algo enervante neste livro, com a excepção do próprio elefante e de Subhro, o leitor não consegue criar laços com mais ninguém. Começa o rei por estar debaixo do olho que lê, não tarda o secretário a tomar o seu lugar e a tornar-se alvo da curiosidade do leitor, e quando nos apercebemos, já o capitão português está a desaparecer da trama sem mais voltar, o que é uma pena, diga-se em abono do sentimento, porque este homem era um verdadeiro justo e bom personagem que esvaziou a viagem quando dela saiu.
 
A nível estritamente literário, vou-me limitar aquilo onde me sinto mais à vontade, como se estritamente literário fosse alguma espécie de campo delimitado por linhas concretas, este livro é o que se esperaria de um dos maiores mestres da língua lusa. Nunca vi Saramago como um romancista puro, para mim a sua voz foi sempre mais própria de um senhor que conta histórias à lareira, ao anoitecer, para quem o quiser ouvir, e isso é uma característica que o próprio autor assume quando dispensa o fictício narrador de uma história para se assumir ele próprio como uma espécie de autor-narrador. Saramago distancia-se da norma de que alguém conta através de alguém uma história, ou seja, dispensa o narrador intermediário nas questões da narrativa, para ele mesmo contar directamente ao leitor a história de Salomão. Verdade que esta característica já se vinha notando desde sempre nos seus livros, mas está especialmente clara neste último.
 
Há um sem número de episódios que marcam a viagem, a do livro, agora, como já disse, refiro-me apenas ao livro e não a elações que dele tirei. O homem perdido no nevoeiro será talvez a mais importante, o homem que se salva graças ao grito de Salomão que mais ninguém foi capaz de ouvir só para depois desaparecer com um “Plof” (extracto desse episódio aqui). Há o milagre que não o foi em Pádua, há o milagre que foi-o sem o ser ao chegar a Veneza. E há personagens marcantes para além do pobre cornaca e do seu elefante, refiro-me em especial e com carinho declarado pelo cavaleiro português que lia romances de cavalaria e que se queria tornar num cavaleiro de romance. Azar o dele, porque isto, afinal, é um conto.
 
Alongo-me já, alongar-me-ia muito mais se me sentisse capaz de o fazer, não em resistência, mas em arte para tal. Este livro será alvo de muita atenção em futuro próximo por muita gente, não tenho dúvidas, tal como não tenho dúvidas que quase todos poderão dizer muito mais e muito mais acertadamente do que aquilo que eu disse.
 
A Viagem do Elefante dificilmente chegará ao patamar de importância para os seus leitores que o Ensaio Sobre a Cegueira chegou, não por ser um livro menor mas por ser um livro assumidamente menos marcante (a violência física e psicológica no ensaio marca bem mais facilmente que um divertido conto sobre uma viagem internacional de um paquiderme) e mais conformado, se assim se pode dizer, com a vida e as suas inevitabilidades. No entanto, A Viagem do Elefante está para a literatura portuguesa como um Stradivarius está para os violinos. É um livro practicamente perfeito. E inesquecível.
 
Publicado no Blog Livros(s)emCritério, por Tim James Booth
 
 
O lançamento mundial do novo romance de José Saramago, A Viagem do Elefante, acontecerá hoje 28.novembro em São Paulo (20h30 locais), no SESC de Pinheiros/Teatro Paulo Autran, com organização da Companhia das Letras, editora brasileira de José Saramago. A actriz Sandra Corveloni lerá trechos do livro. Depois de assistir ao lançamento, o Prémio Nobel da Literatura de 1998 assistirá, amanhã 29.novembro, à inauguração da mostra "José Saramago - A Consistência dos Sonhos", no Instituto Tomie Ohtake, onde a exposição que pôde ser vista no Palácio da Ajuda há uns meses ficará até 15 de Fevereiro de 2009.
 
Publicado no Bibliotecário de Babel , por José Mário Silva
publicado por ardotempo às 13:20 | Comentar | Ler Comentários (4) | Adicionar
Sexta-feira, 28.11.08

Retratos Notáveis - 17

 O comediante

 

 

Fotografia: Retrato de Charles Chaplin - 1952

Fotógrafo: Richard Avedon

publicado por ardotempo às 22:05 | Comentar | Adicionar

Xilogravura - Isolde Bosak

Gravura aquarelada

 

 

Isolde Bosak - Sem Título - Xilogravura aquarelada sobre papel, 2008

tags: ,
publicado por ardotempo às 15:55 | Comentar | Adicionar

Bienal do Vazio: a obra, a fotografia

As fotografias de Mário Castello

 

 

 

Bienal do Vazio, SP - 2008 / © Fotografias de Mário Castello, 2008

publicado por ardotempo às 10:31 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Alma Descarnada - uma visita

Mostra de fotografia de autoria

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo

 

François Barré:

 

J’ai rencontré Mauro Holanda, à Porto Alegre il y a quelques mois et découvert la qualité et la force d’un créateur accomplissant une œuvre fraternelle.

 

Ces corps suspendus dans une éternité courte de décomposition et de stupeur, perdus au milieu de rien, encore rassemblés dans leur unité d’écorce ou déjà démembrés ; ces corps dérobés au temps de la liberté du vol et de l’air du matin, Mauro Holanda leur donne une réalité et les sanctuarise dans la magie de l’art.

 

Habitué aux photos de presse accompagnant les recettes et les secrets des bons plats, il en a vu des milliers posés, accrochés, dépenaillés et dépouillés pour la commodité du travail en cuisine et la préparation des découpes et des cuissons. Dans ce chantier de chairs et de plumes où d’autres passent sans voir, comme dans l’espace routinier des désordres du travail, il saisit soudain l’expression tragique du vif rehaussé dans l’objectivité de la mort, figure nouvelle dans le souvenir à jamais perpétué de la chair frémissante, de ses affolements et de ses plaisirs.

 

Posés là sans pose ni leurre, ces corps mutiques  nous font signe et nous disent notre destin. 

 

François Barré (Paris) - Porto Alegre, le 25 novembre 2008

 


 

 

 

 

 

 

 

publicado por ardotempo às 01:16 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 27.11.08

Natureza morta (e pronta pra panela)

 por Roger Lerina - Contracapa Zero Hora

 

 

 

Leia a Coluna de Roger Lerina - Contracapa

Rim - Fotografia de Mauro Holanda - Alma Descarnada

 

Publicado em Contracapa -ZH, 27 novembro 2008

 

 


publicado por ardotempo às 11:20 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quarta-feira, 26.11.08

Emmanuel Tugny sobre ALMA DESCARNADA

 

 

Là ou ça sent la merde

   ça sent l’être.
L’homme aurait très bien pu ne pas chier,
ne pas ouvrir la poche anale,
mais il a choisi de chier
comme il aurait choisi de vivre
au lieu de consentir à vivre mort

 

Antonin Artaud, Pour en finir avec le jugement de Dieu

 

 

 

Ce que propose à l’orée l’oeuvre photographique de Mauro Holanda, c’est la redécouverte violente -et si j’ose dire crue- de cet érotisme étrange de la mort, de cette paradoxale rencontre en soi de l’extase et de l’effroi devant quoi nous avions sans même y prendre garde abandonné Lorrain, Bataille, Zurbaran, Pasolini, Caravaggio, tant d’autres...

 

Or, l’oeuvre de  Mauro Holanda, qui s’incrit dans cette tradition "erothanatique" où s’épousent l’instant de l’échappement  de l’anima et celui de sa relève par une "anima d’art", par l’entéléchie adventice du geste artistique, a ceci de bon qu’elle rend à sa crudité refoulée tout un pan de l’Histoire de l’Art où l’Art ranime, rend vie, érotise l’immobilité, la sidération terminales, dans un geste à la fois insolent et rédempteur.

 

Et cet oeuvre le fait en cuisine, au piano, dans l’antichambre de l’ingestion, il dit ce que Rabelais dit, ce qu’Artaud dit :  il pose l’art comme le résultat d’une chaîne où se font cortège appétence , ingestion , digestion et défécation.

 

Voilà la mort désirée, mâchée et remâchée, rendue, enfin, par l’art, cet organe tubulaire à rendre la nature à la nature, le motif au motif, le paysage au paysage, la vie à la vie.

 

Et voilà que l’on rit, que l’on rit jaune (car les valeurs cèdent alors, qui ordonnent le temps en vie et mort), de voir ces morts avancer depuis une machination, une macération, depuis une conspiration digestive de l’art. Voilà que l’on rit jaune de voir cette danse macabre "rendre à la nature tout ce qu’ensemble elle avait joint " (Baudelaire), faire un pied de nez gargantuesque à l’esthétique des vanités, affirmer la  rigolante et éternelle unité de l’unité en l’Art.

 

L’amateur d’art écoute, respire, mange, embrasse, baise des morts, il voyage en terre passée, sur chemins perdus, aux mains d’absentés "comme pour toujours". L’Art est divination et suscitation d’éternité, il dit la vanité du vivant et dans le temps même rend éternels ses Hamlet au crâne, ses ambassadeurs d’Holbein à l’anamorphose,  ses Marie-Madeleine de chez La Tour: Il dit l’expérience des limites du vivant et celle de son éternité en l’Idée , le nombre et le geste qui sont autant de vorations d’aveugle.

 

Car l’art ne voit pas, il est l’aveuglé ruminant qui engloutit  "au secret " la vie et la rend à la vie, s’en retranchant (Vermeer, Chardin, Rothko), ou y imprimant la marque du faiseur, du facteur, du  "poïète" (Hals, De Staël, Basquiat).

 

Or, voilà la vie toute crue, la vie éternelle et apéritive de la mort décrétée par le bouffeur bouffon aveugle.

 

Voilà en somme ce que la générosité de Mauro Holanda nous offre et nous rappelle,  et ce n’est pas rien : le gros rire franc de l’art comme condition, comme vie de la vie.

 

Emmanuel Tugny, Porto Alegre RS Brasil - Alma Descarnada  le 25 novembre 2008

 

                                                                             

 

 


publicado por ardotempo às 16:18 | Comentar | Adicionar
Domingo, 23.11.08

Testemunho de Lúcia Bettencourt

Sobre as Jornadas Literárias de Passo Fundo

 

 

Thanks Giving

 

Os americanos têm uma festa que admiro – o dia de ação de graças. Um dia quando todos param para agradecer as dádivas que receberam durante o ano. Todos nós, se procurarmos um pouco, temos algo a agradecer a Deus, ou seja lá o nome que preferirmos – Acaso, Jeová, Buda, Alá ou Tupã.

 

Mercedes Sosa, por exemplo, agradece, na bela canção, à Vida, que tanto lhe deu. Eu agradeço, a quem de direito, por algumas das coisas que recebi (Também reclamo das que me foram tiradas, mas isso é assunto para outra conversa.) Um dos agradecimentos mais sinceros que faço é por ter tido a oportunidade de ir à Jornada de Passo Fundo.

 

Somente quem ama a Literatura pode avaliar a emoção que senti quando, naquela noite fria, gelada mesmo, e prateada por uma lua enorme, cheguei ao local em que ela se realizava e descortinei a proporção do projeto. As tendas montadas, enormes, conservavam um pouco de suas cores graças à iluminação. Milhares de pessoas circulavam pelos espaços, centenas de pessoas trabalhavam, todos com um ar de expectativa, de festa, de alegria desmedida.

 

Mesmo antes de entrar na tenda principal, eu podia sentir a vibração, a agitação de pessoas que se haviam deslocado de todos os cantos do país e do mundo, enfrentado nevoeiros e atrasos, para se reunir ali naquele recanto do Rio Grande do Sul, dentro do belo campus da Universidade de Passo Fundo.

 

Cheguei lá após uma viagem de avião, outra de ônibus, e outra de van. Pois, se soubesse o que me aguardava, teria feito como os peregrinos de Compostela, e caminhado até lá, entre cânticos, clamando pelas estradas para que me seguissem e descobrissem as maravilhas da Literatura.

 

Passei todos os dias da Jornada num encantamento e numa alegria de devota que chega ao perfeito local de romaria. Era ali a minha pátria espiritual, o local onde encontrava pessoas com os mesmos interesses, com o mesmo brilho no olhar e, embora com livros diferentes nas mãos, o mesmo desejo de compartilhar e descobrir. Se, na primeira noite, tive a impressão de sonho, os dias que se seguiram confirmaram uma realidade cheia de seiva e vigor. As tendas coloridas, o incessante vai-e-vem de pessoas, as múltiplas atividades, mas sempre a mesma paixão, que impedia que, tangidas pelo frio, a platéia se dispersasse.

 

É preciso ir a Passo Fundo, pois as palavras faltam para descrever as Jornadas. Mas, depois que vamos até lá, descobrimos que nunca mais podemos sair de lá. Algo de nós fica para sempre perdido por lá, e talvez seja nosso coração.

 

Texto de Lúcia Bettencourt - Escritora

 

Veja o blog da escritora: Nadanonada

Foto de Leonid Streliaev

publicado por ardotempo às 23:27 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar

Convite: ALMA DESCARNADA, de Mauro Holanda

Exposição de Fotografia - Centro Cultural CEEE Erico Verissimo 

 

 
O Centro Cultural CEEE Erico Verissimo convida para a abertura 
e exposição de fotografia 
 
Dia 25 de novembro de 2008 (terça-feira)
Abertura da mostra - a partir das 19h30 até 22h
Sala O Arquipélago - 1º andar
Rua dos Andradas, 1223 - Centro - Porto Alegre RS Brasil
 
Exposição de 26 de novembro de 2008 a 31 de janeiro de 2009 - 
Conversa com o fotógrafo no dia 26 de novembro (quarta-feira) às 18h30
 
 

publicado por ardotempo às 17:10 | Comentar | Adicionar

Peixe vivo

"Algo está fora do lugar" - Mauro Holanda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O peixe - Fotografia - Mauro Holanda , da série Alma Descarnada - Mostra de fotografias - Centro Cultural CEEE Erico Verissimo - Porto Alegre) - 2008

 

publicado por ardotempo às 13:41 | Comentar | Adicionar

Fotografia

luz sombra

 

 

Fotografia - Mário Castello (São Paulo) - 2008

publicado por ardotempo às 13:17 | Comentar | Adicionar

Desenho - Georges Noël

Palimpsesto

 

 

Georges Noël - Sem Título - Desenho com lápis de cor sobre folha inteira de papel (grande formato) - 1966

tags: ,
publicado por ardotempo às 12:57 | Comentar | Adicionar

Pintura - Vladimir Velicovic

Subindo a escada

 

 

Valdimir Velicovic - Pintura - Figura XI - Óleo sobre tela em grande formato - 1988

tags: ,
publicado por ardotempo às 12:53 | Comentar | Adicionar

Instalação - Objetos Escultóricos

Robert  Rauschenberg

 

 

Instalação com objetos escultóricos - Robert Rauschenberg

publicado por ardotempo às 12:49 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 17.11.08

Pintura - Desenho - Colagem

Técnica mista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Signos e Colagem - Antoni Tàpies - Pintura, desenho sobre cartão e colagem sobre tela, em grande formato (Barcelona / Paris) - 2003

publicado por ardotempo às 23:10 | Comentar | Adicionar

Retratos Notáveis - 16

Mauro Holanda, o "cozinheiro"

 

 

Fotografia: Retrato do fotógrafo Mauro Holanda (São Paulo) - 2008

Fotógrafo: Marcos Magaldi

publicado por ardotempo às 21:21 | Comentar | Adicionar
Domingo, 16.11.08

Luís Augusto Fischer: Fato Literário 2008

Merecido!

 

 

O professor universitário e escritor Luís Augusto Fischer foi o grande vencedor do Prêmio Fato Literário 2008 na categoria Personalidade. Obtendo 44 dos 78 votos válidos do Júri Oficial, Fischer foi econômico nas palavras de agradecimento.

Dizendo-se emocionado pela premiação, o autor da obra Machado e Borges - e Outros Ensaios sobre Machado de Assis agradeceu a alguns de seus mestres ali presentes, como Sérgius Gonzaga e Zilá Benrd, por terem lhe ensinado um pouco do que ele hoje “tenta fazer”. Fischer foi amplamente aplaudido pela platéia que lotou uma das salas do Clube do Comércio, onde o prêmio foi anunciado.

 

tags:
publicado por ardotempo às 22:31 | Comentar | Adicionar

Mil anos menos cinquenta

Lançamento em Portugal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De Angela Dutra de Menezes

Em Mil Anos Menos Cinquenta, Angela Dutra de Menezes produz uma espécie de romance de aventuras no qual o que sobressai é a história de uma família cujos traços, virtudes e pecados caracterizam a própria história de Portugal. À mistura, há factos verídicos, folclóricos e imaginários…

Entre a Coimbra reconquistada aos Mouros (1064) e o Brasil do século XX, uma família lusa, orgulhoso sangue milenarmente misturado, descobre as suas verdades, enquanto constrói a História portuguesa. No caminho de quase um milénio, entre o partir e o chegar, o medo e a coragem, o clã esbarra com deuses destruidores, guerras. omissões e vinganças – sempre com fé no possível e lutando cegamente pelo impossível.

Mas o tempo, a grande personagem, transforma todos em vencidos e vencedores. A cada passo, homens e mulheres consolam-se na esperança indestrutível e nas paixões furiosas, as marcas de um povo forte que desvirginou o mundo e inventou a geografia.

ISBN  9789722627771
294 páginas - Editora Civilização - Porto - Portugal
 

publicado por ardotempo às 20:52 | Comentar | Adicionar

O ócio de nada para ver

Bienal do Vazio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Talvez até exista alguma obra de arte por lá. Não sei. Mas está mais contundente o imenso vazio a tomar conta de tudo. É a ausência abusiva. Filosoficamente é até motivo válido para reflexão, para os discursos e tomadas de posição. Mas é péssimo para os artistas e para a Arte contemporânea, uma capitulação dessa magnitude, a ausência absurda de obras num espaço tão valioso e tão visível, num conjunto significativo como a Bienal de São Paulo. Uma tristeza. Ali resta o ócio da preguiça de não existir nada para se ver. É um insulto silencioso às centenas de verdadeiros artistas que continuam fazendo seu árduo trabalho diário, intelectualmente honesto e de manufatura consistente, pintores, escultores, gravadores, fotógrafos, cineastas, video-makers, que carecem de espaços expositivos concretos para chegar a um público, que se torna mais refratário e cético frente às possibilidades de interação com a Arte.

 

Arte não é diversão nem entretenimento. Não é negócio nem decoração.

tags:
publicado por ardotempo às 20:43 | Comentar | Adicionar

A sorte muda a História

Jogo de dados


Ferreira Gullar


Quando digo que a vida não é newtoniana e, sim, quântica, sei que não estou fazendo uma afirmação científica, mas, como poeta que às vezes sou, valho-me de uma metáfora para baratinar a cabecinha do próximo e fazê-lo se dar conta de que, muitas vezes, dois mais dois são cinco.


Por exemplo, a eleição de Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos. Isso tem lógica? Está dentro do previsível? Agora, depois que aconteceu, parece ter lógica e deve ter, já que aconteceu, mas não a lógica do dois-mais-dois quatro.


Assim que ele se lançou candidato e lhe vi o rosto, achei que não ia dar. Não apenas porque ele fosse mulato mas porque me parecia frágil, sem aquele maxilar de macho: uma aparência de intelectual recém-saído da adolescência. E disse a mim mesmo: "Os americanos não vão entregar o país a esse rapaz".


Isso sem contar que ele se chamava Barack Hussein Obama. No entanto, ele derrotou Hillary Clinton e, finalmente, John McCain. Vai governar a maior potência econômica e política do planeta.
A impressão que se tem é de que o mundo está contente com a vitória dele. E otimista. Todos esperamos que algum milagre aconteça, que esse jovem mulato, inteligente, informado, brilhante e objetivo faça o mundo mudar para melhor. É esperar muito? Certamente, mas sem esperança não se suporta viver.


Tudo bem, aconteceu, o improvável aconteceu. Mas, se aconteceu, foi porque era possível acontecer, e quem, como eu, temia não ser possível equivocou-se. É que a vida é quântica: a simples lógica não dá conta dela.


Será possível, agora, saber quando tudo começou? Foi com os discursos de Martin Luther King, a afirmar que tinha um sonho e que esse sonho era de uma pátria fraterna, sem discriminação racial? Foi durante a luta dos anos 60 pelo Poder Negro? Esses fatos, certamente, influíram, mas é impossível determinar, na natureza e na história, quando exatamente as coisas começam, mesmo porque o curso da existência, por serem tantos os fatores que sobre ele atuam, resulta produto tanto da necessidade quanto do acaso.


A verdade, porém, é que, se Barack Obama não tivesse nascido, isso não teria acontecido. Surgiria um outro mulato inteligente, orador brilhante, carismático para vencer as eleições norte-americanas de 2008? Dificilmente. E o próprio Obama teria ganhado esse pleito, se ele não tivesse ocorrido depois dos dois desastrosos governos de George W. Bush?


Há quem diga que não, não teria, e, se isso for verdade, devemos concluir que Bush, com suas guerras e mentiras, também concorreu para a vitória de Obama. E a crise financeira que se deflagrou no planeta em plena campanha eleitoral não contribui para a vitória do democrata?


Como se vê, a história não está predeterminada. A não ser para aqueles que acreditam no destino - como os gregos acreditavam -, o fortuito também influi nos acontecimentos mais relevantes. Por isso, vale a hipótese de que, se Obama não tivesse nascido, a história que o mundo iria viver daqui para a frente seria outra. Isso não significa que ele seja um predestinado, que nasceu para salvar o mundo.


Nem sei se o governo dele vai ser tão bom quanto todos nós desejamos. Pode ser, pode não ser. Mas, se ele não tivesse nascido de um negro queniano e uma branca norte-americana do Kansas, com esse charme todo, não teríamos agora um presidente mulato na Casa Branca. Isso significa que nenhum outro negro chegaria a governar os Estados Unidos? Não, mas talvez não acontecesse tão cedo.
Porque assim é a história humana: o que acontece poderia não acontecer. Não pretendo dizer que tudo seja mero produto do acaso, e, sim, que a necessidade tem incontáveis modos de realizar-se.


E que, por isso mesmo, as pessoas, por sua capacidade de ação e inteligência, podem influir decisivamente no destino da humanidade.
O certo é que, durante décadas e décadas, naquele fervilhar de gente que é seu país - pessoas que se amam e se odeiam, ambições e traições, filhos que nascem e viram bandidos ou artistas de cinema, poetas ou campeões de golfe -, essa vitória surpreendente era gestada, sem que ninguém se desse conta.


E assim como numa mesa de sinuca, onde se movessem milhões de bolas (desde a queda das Torres Gêmeas, o escândalo Clinton, as mentiras de Bush e a guerra do Iraque), preparava-se a ascensão de um jovem mulato ao mais alto posto a que um norte-americano pode chegar. E chegou. Agora, les jeux sont faits, os dados foram lançados.

 

 

© Ferreira Gullar - Publicado na Folha S.Paulo / UOL 

 

tags:
publicado por ardotempo às 20:39 | Comentar | Adicionar
Sábado, 15.11.08

O medo e o exercício do poder

Resenha crítica de Luiz Ruffato sobre Carassotaque - Jornal Zero Hora
 
O escritor mineiro Luiz Ruffato escreve sobre a nova obra de ficção do artista plástico Alfredo Aquino
 
 
Os países hispano-americanos construíram, ao longo de sua história, uma verdadeira tradição de romances sobre o exercício do poder. Basta lembrarmos do inaugurador Tirano Banderas, do espanhol Valle-Inclán, seguido pelos não menos famosos Eu, o Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos, O Senhor Presidente, do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, e O Outono do Patriarca, do colombiano Gabriel García Márquez, os dois últimos laureados com o Prêmio Nobel.
 
Estranhamente, os escritores brasileiros pouco se debruçaram sobre o assunto. Sim, temos o monumento que é O Tempo e o Vento, do gaúcho Erico Verissimo, que honra qualquer literatura, mas, o que mais? Jorge Amado tentou, em Os Subterrâneos da Liberdade, erigir uma discussão sobre a ditadura Vargas, mas o resultado estético é canhestro: muito partidarismo, pouca literatura. Quem conseguiu melhores resultados, no caso, foi outro gaúcho, Dyonélio Machado, com O Louco do Cati. Sob a ditadura militar, houve uma profusão de textos, boa parte deles depoimentos de época, importantíssimos como militância política, mas desprovidos de valor literário. Novamente, correndo o risco de sermos injustos, recordaríamos como perenes Incidente em Antares, de Verissimo; O Simples Coronel Madureira, deliciosa sátira de Marques Rebelo; o alegórico A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga, e o sofisticado Reflexos do Baile, de Antônio Callado, entre outros.
 
Tudo isso, para louvarmos Carassotaque (Editora Iluminuras, 144 páginas) título singular da narrativa do artista plástico Alfredo Aquino, recém-convertido à literatura com a publicação do livro de contos A Fenda, em 2007. A opressiva novela se passa num país-continente imaginário, a República de Austral-Fênix, situado sobre a grande placa tectônica do Pacífico Sul, “ocupando um largo espaço entre a Austrália e a Nova Zelândia a oeste, e a América do Sul a leste, com várias ilhas adjacentes”. Portanto, um lugar isolado do mundo, mais ainda se levarmos em conta que lá se fala uma inusual língua, o português. O país passou ainda por uma cruel ditadura militar, nos anos 70 do século passado, quando as feições dos habitantes “começaram a desfocar-se” e, logo em seguida, “houve o desaparecimento generalizado” de suas cabeças.
 
Quando o fotógrafo e jornalista francês Celan Gacilly desembarca no aeroporto de Alma, a capital, a ditadura havia terminado há pouco e as pessoas ainda viviam acossadas pelo medo. Os habitantes não enxergavam a cabeça uns dos outros, mas conseguiam identificar os rostos dos estrangeiros, os carassotaques (que, por isso, por terem “cara” e “sotaque”, eram facilmente distinguíveis na multidão). A esdrúxula condição, de corpos anômalos que se esbarram pelas ruas, é envolta num tabu de silêncios, que torna todos cúmplices do terror. Curiosamente, à medida em que os carassotaques vão se integrando à sociedade, seja por casamentos, seja por hábitos, também eles se dissolvem na multidão incaracterística.
 
Inconformado com os problemas que medram em todos os cantos, Gacilly resolve denunciá-los não na covarde imprensa local, mas nos jornais e revistas europeus, acreditando que, assim, as notícias repercutirão com maior vigor. Começa, então, por escrever sobre a desertificação do país, provocada pela substituição da imensa floresta nativa pelo “fantasma extinto de um megaprojeto de hiperprodução de álcool e de açúcar”, e sobre a extinção do peixe-ouro. No entanto, quando as autoridades locais tomam ciência do teor da reportagem, começam a persegui-lo, e ele descobre que não conta nem mesmo com a complacência da população, que o acusa de tentar denegrir a imagem do país no exterior...
 
Mesmo tendo que contornar todas as vicissitudes, Gacilly não esmorece em sua luta contra a opressão e o medo, que, em última instância, traduzem-se em ignorância. Desenvolve um equipamento fotográfico, ironicamente denominado “Especular Gacilly”, que consegue captar a imagem dos habitantes sem rosto, e, com a ajuda de um jornalista local, Rufino Andorinha, publica um livro bilíngüe, português-inglês, Retratos do Povo de um Lugar, no qual relatam o inusitado fato. Serão incompreendidos, mas percebem, afinal, que sua mensagem alcança o coração de alguns jovens, que, aos poucos, vão readquirindo suas faces e contradizendo, assim, o conformismo de uma personagem como Mestre Cedito, que acreditava que em “em Austral-Fênix, o que desaparece não volta nunca mais, a floresta, os peixes, os rostos das pessoas”. Um grande livro de um grande autor.
 
Fica, no entanto, ainda no ar, a pergunta original: por que será que não temos uma literatura sobre o exercício do poder?
 
Luiz Ruffato - Escritor, autor de Eles eram muitos cavalos (Editora Record, 152 páginas)
Pintura, óleo sobre tela de Siron Franco - Carassotaque, 2008
Publicado em Zero Hora
 
publicado por ardotempo às 14:17 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Sexta-feira, 14.11.08

Receita

 

Receita para matar um homem
 
José Saramago
 
Tomam-se umas dezenas de quilos de carne, ossos e sangue, segundo os padrões adequados. Dispõem-se harmoniosamente em cabeça, tronco e membros, recheiam-se de vísceras e de uma rede de veias e nervos, tendo o cuidado de evitar erros de fabrico que dêem pretexto ao aparecimento de fenómenos teratológicos. A cor da pele não tem importância nenhuma.
 
Ao produto deste trabalho melindroso dá-se o nome de homem. Serve-se quente ou frio, conforme a latitude, a estação do ano, a idade e o temperamento. Quando se pretende lançar protótipos no mercado, infundem-se-lhes algumas qualidades que os vão distinguir do comum: coragem, inteligência, sensibilidade, carácter, amor da justiça, bondade activa, respeito pelo próximo e pelo distante. Os produtos de segunda escolha terão, em maior ou menos grau, um ou outro destes atributos positivos, a par dos opostos, em geral predominantes. Manda a modéstia não considerar viáveis os produtos integralmente positivos ou negativos. De qualquer modo, sabe-se que também nestes casos a cor da pele não tem importância nenhuma.
 
O homem, entretanto classificado por um rótulo pessoal que o distinguirá dos seus parceiros, saídos como ele da linha de montagem, é posto a viver num edifício a que se dá, por sua vez, o nome de Sociedade. Ocupará um dos andares desse edifício, mas raramente lhe será consentido subir a escada. Descer é permitido e por vezes facilitado. Nos andares do edifício há muitas moradas, designadas umas vezes por camadas sociais, outras vezes por profissões. A circulação faz-se por canais chamados hábito, costume e preconceito. É perigoso andar contra a corrente dos canais, embora certos homens o façam durante toda a sua vida. Esses homens, em cuja massa carnal estão fundidas as qualidades que roçam a perfeição, ou que por essas qualidades optaram deliberadamente, não se distinguem pela cor da pele. Há-os brancos e negros, amarelos e pardos. São poucos os acobreados por se tratar de uma série quase extinta.
 
O destino final do homem é, como se sabe desde o princípio do mundo, a morte. A morte, no seu momento preciso, é igual para todos. Não o que a precede imediatamente. Pode-se morrer com simplicidade, como quem adormece; pode-se morrer entre as tenazes de uma dessas doenças de que eufemisticamente se diz que “não perdoam”; pode-se morrer sob a tortura, num campo de concentração; pode-se morrer volatilizado no interior de um sol atómico; pode-se morrer ao volante de um Jaguar ou atropelado por ele; pode-se morrer de fome ou de indigestão; pode-se morrer também de um tiro de espingarda, ao fim da tarde, quando ainda hà luz de dia e não se acredita que a morte esteja perto. Mas a cor da pele não tem importância nenhuma.
 
Martin Luther King era um homem como qualquer de nós. Tinha as virtudes que sabemos, certamente alguns defeitos que não lhe diminuíam as virtudes. Tinha um trabalho a fazer – e fazia-o. Lutava contra as correntes do costume, do hábito e do preconceito, mergulhado nelas até ao pescoço. Até que veio o tiro de espingarda lembrar aos distraídos que nós somos que a cor da pele tem muita importância.
 
 
©José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago

 

publicado por ardotempo às 13:33 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 13.11.08

Aforismo Borgesiano - 44

Reinos

 

"Entre todas as seitas, o cristianismo é a que menos me agrada.

Não existe nela muita religião e sim política, muita política.

Seu reino, certamente, é deste mundo."

 

 

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina

publicado por ardotempo às 18:39 | Comentar | Adicionar

Emmanuel Tugny: livros na Feira de Porto Alegre

Escritor francês em Porto Alegre, RS 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Emmanuel Tugny estará autografando seus dois livros recentes, lançados na França em outubro, nesta quinta-feira, dia 13, as 17h30, na Praça de Autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre, RS Brasil.

 
Corbière le Crevant e Mademoiselle de Biche
 
Os romances foram lançados pela Coleção Laureli - de Éditions Léo Scheer.
 

tags:
publicado por ardotempo às 12:21 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Novembro 2008

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
12
18
19
20
21
22
24
25

Posts recentes

Arquivos

tags

Links