Pesqueiro, de Luís Augusto Fischer
Número apagado
Luís Augusto Fischer
Faz anos eu li um livro que me comoveu muito. Ele se chama, em português, Enterrem-me em pé — A longa viagem dos ciganos (Cia. das Letras, tradução de José Rubens Siqueira). A autora se chama Isabel Fonseca, e com esse nome muito latino ela é norte-americana, com ascendência, diz a orelha do livro, hispânica e húngaro-judaica. Trata-se de um livro jornalístico sobre os ciganos, um relato de viagem feita pela autora para as remotas regiões dos Bálcãs, aquela região da antiga Iugoslávia, hoje em dia uma pulverizada em Macedônia, Sérvia, Croácia, mais Romênia, Albânia e outros países. (Quando estourou a guerra genocida do senhor Milosevic, o Luis Fernando Verissimo fez a piada de que nos Bálcãs a história fica parada, enquanto a geografia se mexe.)
Eu lembrava muitas coisas esparsas sobre o livro, histórias de muita pobreza e ao mesmo tempo de muita intensidade. A edição brasileira é de uns dez anos atrás, 1996 (e, oh, má qualidade dos livros brasileiros, já está com as páginas manchadas, como se tivesse 50 ou cem anos o volume).
Uma das histórias havia ficado na minha lembrança, também de forma imprecisa, o que me fez retomar o volume para tentar localizá-la agora. Trata-se um momento de sublime patético, ou de patético sublime, relacionado a uma senhora cigana que, como a maioria das mulheres de sua condição étnica, não sabia ler. Retomado o livro, agora posso contá-la com mais precisão.
Ocorreu que a jornalista Isabel Fonseca estava convivendo por uns tempos com uma família de ciganos em Tirana, na Albânia, para conhecer seu cotidiano (o que já vale a leitura do livro), e o chefe da família resolveu visitar uns parentes seus que viviam mais retiradamente ainda, numa região rural, na cidade de Mrostar. Para os ciganos da capital, tratava-se de uma viagem ao passado, por assim dizer: os parentes de Mrostar eram muito mais pobres do que os já pobres habitantes de Tirana.
Tratava-se na verdade de um campo de cabanas e choças muito precárias, algumas das quais sequer permitiam que o habitante ficasse de pé dentro delas. Os que ali viviam nem tinham notícia clara de pertencerem a um grupo étnico que contava com milhares e milhares de componentes que viviam em localidades bastante próximas; era como se os habitantes daquela aldeia vivessem isolados, sem contato, sem referência, sem mesmo as práticas tradicionais dos ciganos. Uma tristeza, uma desolação, para todos os que ali estavam de visita, e muito particularmente para a jornalista norte-americana.
Na hora das despedidas, uma senhora bem velha, magra, extremamente pobre, pendura-se na manga da Isabel, fazendo sinal de que queria mostrar-lhe alguma coisa. O que seria? A cigana mexe no bolso do avental que trajava e tira dali um papel velho, um pedaço já pequeno de papel, que ela trazia muito dobrado, reduzido ao tamanho de uma unha. Ela o pega e desdobra parte por parte aquele amarrotado; quando está todo aberto, ela o coloca na altura adequada para a leitura da visitante, perto dos olhos.
Diz Isabel, desolada: “Não vi nada — talvez uma mancha de sujeira. Peguei o papel de sua mão e verifiquei o outro lado. Nada. A não ser por algumas marcas de dedos, estava em branco.” A velha cigana, então, chateada, dobra de novo o papel e o coloca no mesmo fundo de bolso do avental.
Isabel Fonseca não falava com total destreza o dialeto da velhinha, mas foi capaz de entender o que ela dizia com auxílio dos outros ciganos. E soube, então, que ali, naquele papel, ela dizia que estava escrito o número do telefone de seu filho que tinha se refugiado na Itália.
“Se ela era analfabeta, o que parecia provável, jamais havia lido os números, e o que tinha visto ali já era uma abstração”, comenta a jornalista. De todo modo, a velhinha desejou boa sorte à visitante que não havia sabido ler o tesouro que naquele papel ela guardava com tanto zelo: “Te xav ka biav”, o que literalmente significa “Que eu possa comer em seu casamento”. Era todo um bom futuro, com casamento e festa, o que a idosa cigana desejou para a moça.
O relato do livro dá conta do estado de espírito de Isabel nessa hora. Ela quase chorou ao presenciar a cena. Assim também eu, quando li pela primeira vez essa história. O que a história guarda é qualquer coisa de muito estranho, misturado com algo de muito familiar. Uma mãe lembrar do filho ausente e desejar restabelecer contato com ele, que agora está no estrangeiro batalhando pela vida, é coisa que qualquer um de nós entende e sabe sentir; por outro lado, uma analfabeta que sequer sabe distinguir entre coisas escritas e não-escritas (ou apagadas), numa total inaptidão para o que nós podemos considerar como um mínimo da civilização, é de arrepiar, de tão distante de nossa vida.
Eu nunca me imaginei sem saber ler. Só um dia, depois de adulto, senti algo parecido, quando por algumas horas estive na cidade de Tânger, no Marrocos — vai-se de barco desde Algeciras, no extremo sul da Espanha (por sinal a terra natal do grande violonista Paco de Lucía), perto de Cádiz, pela manhã, e volta-se à tarde, numa viagem turística regular.
Na velhíssima cidade árabe, eu me senti acossado pela impossibilidade de entender o que se falava e pela incapacidade de ler as placas, quase todas escritas em árabe (se bem que muitas vezes, em atenção aos turistas, com tradução para o espanhol, o francês ou o inglês). Mas eu sabia que logo estaria de volta ao planeta das línguas conhecidas, que me permitiriam me movimentar sem dificuldades.
Qual o valor de saber ler, então? Nós, que sabemos ler e escrever quase tanto quanto sabemos respirar, jamais saberemos aquilatar o valor de tal conhecimento. Mas isso mesmo deveria nos alertar para a necessidade absoluta de oferecer alfabetização para todo mundo, em qualquer idade, e escola decente para todas as crianças e os jovens. Nem que seja para que qualquer pessoa, em qualquer circunstância, possa anotar o telefone do filho distante e, depois, telefonar para ele.
Publicado no blog Pesqueiro