Poética
Desenho
Poética - Desenho de Alfredo Aquino - Tinta china e aguadas a pena e pincel sobre cartão Montval.
Desenho
Poética - Desenho de Alfredo Aquino - Tinta china e aguadas a pena e pincel sobre cartão Montval.
Lançamento do livro CARASSOTAQUE
Editora Iluminuras
Livraria da Vila - Alameda Lorena
16 outubro - 19 horas
CARASSOTAQUE
Os rostos podiam ser vistos, todos sem exceção, pelas lentes e através dos reflexos nos espelhos. Ou seja, nas fotografias, nas imagens das telas, no cinema, nos grandes espelhos públicos e nos de suas próprias casas, nos retrovisores dos carros, nos ecos das vitrines, ali todos tinham as suas respectivas faces, mas nas ruas da realidade, nas esquinas, nos locais de trabalho, nas fábricas, nos escritórios, nos mercados, nas lojas, nos ônibus, dentro dos carros vistos desde fora, não. Ninguém tinha rosto, nem tinha a própria cabeça. Os transeuntes caminhavam por todos os lados, como formigas, sem as cabeças.
Nos jogos de futebol, nos estádios, não havia cabeças nem campo nem nas arquibancadas, a não ser que no jogo e na torcida estivessem presentes os estrangeiros, aí sim, estes tinham as suas cabeças nos devidos lugares e elas eram visíveis por todos, pelos outros jogadores e por todos os torcedores, pela imprensa. Aliás, os estrangeiros sempre viam os rostos e as cabeças de todos, em quaisquer circunstâncias e então, para eles a situação não parecia tão bizarra. Mas a seleção de futebol austral-feneciana não era muito habilidosa, nunca acertara um conjunto solidário e harmônico, não possuía um bom jogo aéreo, jamais fora muito longe na Copa da Oceania e dessa forma, nunca participara de uma Copa do Mundo.
Nos teatros, nas apresentações da orquestra sinfônica ocorria a mesma coisa, nos hotéis e aeroportos, portos de mar. Nesses locais públicos não se via a cabeça de nenhum feneciano, apenas a dos estrangeiros.
Esses, os estrangeiros, ostentavam as suas cabeças, dos nativos nada se via, não se viam as cabeças, tampouco as faces. No cinema, na tela, todos, de qualquer naciona-lidade, fenecianos incluídos, tinham as suas cabeças e seus olhares cheios de significados, bem visíveis.
Lentes.
Aquilo começara, quase repentinamente, primeiro nas grandes metrópoles e logo, de maneira contagiosa, estendera-se por todas as cidades e áreas rurais, as mais distantes, as mais desinformadas, até o deserto fora atingido, durante o tempo demorado da ditadura. Disseram que fôra por causa do medo que tomara conta de todos, ou pela vergonha. Nunca se soube ao certo quais as causas daquilo. Muito estranho.
O país era grande, continental, cercado de mar por todos os lados, uma ilha enorme, sem fronteiras por terra com qualquer outro país, e isso o tornara bem particular.
Quase repentinamente, as pessoas passaram a perder os seus rostos e as próprias cabeças, que foram sendo apagadas dos cotidianos mais triviais, das rotinas e do convívio social. Ninguém via mais a cara de ninguém, era como se os olhares não se cruzassem nunca e, naqueles tempos sombrios e ameaçadores da ditadura de aço inox, que todos os habitantes foram obrigados a suportar, isso ocorrera e perpetuara-se. Todos se acostumaram e a vida continuou como se aquilo fosse normal.
O fato do país ser uma ilha contribuíra para o desespero silencioso daquela população, uma forma de resignação coletiva com o desamparo, com a falta de perspectivas de fuga, com a ausência de alternativas para a salvação, e talvez, para a perda ou matização dos ideais e dos valores.
O medo! O medo fôra um sentimento coletivo, uma inundação pegajosa, morna, repulsiva, que foi tomando conta inclusive dos próprios opressores num momento indeterminado. Todos, sem exceção, por motivos antagônicos, ficaram com medo a um tempo preciso, ninguém mais fôra capaz de encarar ninguém nas ruas, nos lugares públicos, rosto-a-rosto, olhos nos olhos, mesmo em casa, nas famílias. Aos poucos, todos baixaram os olhos, foram desfocando-se, perdendo as feições até que os rostos deixaram de ser vistos, até as cabeças deixaram de ser vistas. Sucedeu uma renúncia coletiva.
Espelhos.
No momento em que a ditadura extingüiu-se em tédio, nada mudou nessa paisagem existencial, as pessoas tinham se acomodado à ausência de identidade pública. Isso facilitara algumas coisas, novos comportamentos e até, naturalmente, as atividades excusas. Um fenômeno conveniente. A surpresa fôra a conformação generalizada, total. Ausência de atitudes discordantes.
Consolidou-se numa espécie de nova cultura de relacionamentos e uma característica peculiar daquela nação, fundamentalmente daquela população.
Sem faces e sem cabeças.
Mas as faces e as cabeças continuaram existindo, estavam lá, apenas não eram mais vistas em público, ao natural. Podiam ser tocadas, sentidas pelo tato, mas isso ninguém ousava fazer.
Elas eram vistas através das lentes. Eram vistas nas publicações, nas emissões de TVs, nas imagens fotográficas, nos cartazes de rua, nos filmes, em tudo que era impresso, portanto, aparentemente tudo se realizava em vida normal, especialmente para quem vinha de fora, que via todo os rostos, sem nenhum problema. As suas faces, estrangeiras, estranhamente, também eram vistas por todos, portanto, havia uma assincronia visual extravagante: os habitantes locais, que não se viam uns aos outros porque aparentavam sem cabeças, identificavam imediatamente os estrangeiros, a sua presença, pelas cabeças, faces e olhos e estes não percebiam claramente o jogo espantoso em que estavam metidos.
Extraído do livro Carassotaque - Iluminuras, 2008
© Alfredo Aquino
Fotografia de Mário Castello