Terça-feira, 07.10.08

Pintura de Mark Rothko

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Mark Rothko - Pintura - Número 207 - Óleo sobre tela - 1961

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publicado por ardotempo às 23:52 | Comentar | Adicionar

Poema inédito de Ana Mariano

 

Poema do amor sem ninguém

 

Este poema de amor

é  bilhete sem destino

Não sei a quem entregá-lo

Não há nome no envelope

nem rua, nem direção

Ternura jogada fora

saudade apenas, sem fatos

que se possam recordar

este poema de amor

reincidente e insano

joga sal no oceano

transpira lençóis de insônia

esboça os traços de um rosto

traceja a forma de um corpo

apaga, torna a fazer

Vento vago que levanta

e  logo depois deposita

palavras soltas, papel

este poema

eu mesma

este poema é ninguém.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

© Ana Mariano - 2008

Fotografia de Robert Mapplethorpe - Mão no fogo - 1985

publicado por ardotempo às 15:13 | Comentar | Adicionar

Dia 09 de outubro: António Lobo Antunes

 

Arquipélago da Insónia

 

António Lobo Antunes

 

De onde me virá a impressão que na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta? As divisões são as mesmas com os mesmos móveis e os mesmos quadros e no entanto não era assim, não era isto, fotografias antigas em lugar da minha mãe, do meu pai, das empregadas da cozinha e da tosse do meu avô comandando o mundo, não a presença, não ordens, a tosse, um lenço saía-lhe do bolso e desarrumava o bigode, o meu pai prendia o cavalo na argola e a seguir apenas o restolhar da erva que esse sim, mantém-se, embora seco e duro até depois da chuva, na varanda os campos que conheço e não conheço, o renque de ciprestes que conduzia ao portão e além do portão com um dos pilares tombado os sobreiros e o trigo, a vila cada vez mais distante onde as luzes acentuam o escuro, um sítio de defuntos em cujas ruas trotava abraçado ao meu pai, assustado com os postigos vazios e a certeza que nos espreitavam dos amieiros da praça no tempo em que nada faltava na casa, a minha mãe no andar de cima a perfumar baús, a chávena da minha avó no pires e ela fixando-me com um olhar de retrato que atravessava gerações vinda de um piquenique de senhoras de bandós e cavalheiros de colarinho de celulóide comigo a pensar se toda a gente continuaria aqui em conversas que o relógio de pêndulo afogava no coração pausado, uma tarde encontrei a chávena e o pires num canto da camilha e a cadeira sem ninguém, uma outra tarde os baús do andar de cima cessaram de cheirar só que dessa ocasião automóveis no pátio, senhores que me despenteavam numa lástima amiga

- O órfão

enquanto as empregadas da cozinha amontoavam flores na carreta onde me deu ideia que o cheiro dos baús se evaporava devagar, o meu avô de gravata ele que não usava gravata, usava um botão de cobre a fechar-lhe o pescoço e o meu pai a desprender as rédeas da argola, vi-o parado numa crista antes de trotar de novo, deram por ele do lado

de fora do cemitério a assistir às flores mas o que lembro melhor é um tordo num anjo de gesso e a chuvinha de outubro, gotas que não caíam, trocavam de posição sob um céu de barrela, homens com enxadas, as cruzes dos soldados que morreram em França num talhão onde os arbustos cresciam sem que os aparassem e se diria gemerem e o meu pai campos fora acuado por latidos de cachorros e esparvoando galinhas ele que não falava com a minha mãe, não a cumprimentava sequer, dormia no compartimento ao lado da cozinha culpando-a da indiferença do meu irmão que continua comigo nesta casa em que apesar de igual quase tudo lhe falta, as mesmas escadas, os jarrões, as sanefas, o cavalo que não montaram mais e o meu pai no degrau das traseiras, ao fim da tarde, a disparar sobre os coelhos bravos à medida que a vila ia fervendo de espectros e o perfume dos baús substituído pelo grelado da roupa, o meu avô faleceu anos antes e ninguém nos visitou excepto um ou dois homens da sua idade com um botão de cobre a fechar o pescoço que por seu turno ninguém visitava e empurrariam sem flores para o cemitério que os sujeitos das enxadas desertaram deixando-nos no meio do trigo murcho e da aveia crestada e o meu pai sem se preocupar com a aveia, um estranho para mim como eu um estranho para ele semelhantes aos parentes dos retratos no que teimo em chamar casa por não lhe achar outro nome, demasiado grande para nós com duas ou três palmeiras e a minha avó

- O jardim

um hálito de pólvora subia das cruzes dos soldados quando as criaturas da vila, há tantos anos finadas, principiaram a cercar-nos, nos meses da revolução a tropa e os camponeses tentaram furtar-nos a casa

(a chávena da minha avó a tremelicar no pires, não a minha avó, a chávena, a minha avó impassível na cadeira)

queimando o celeiro, degolando a criação e quebrando as patas aos borregos e às vacas

(a chávena contra o pires, a chávena sem cessar contra o pires)

a minha mãe escondida no andar de cima suponho que a chorar como quando o meu pai

- O que me deu na cabeça para te tirar do fogão?

trabalhava na cozinha com as outras até que ele a caminho do

armazém

- Leva as tuas coisas para o andar de cima amanhã

e a minha mãe a não entender, a entender, obedecendo a carregar

uma caixa pequena pelas escadas acima enquanto as colegas a espiavam caladas com ciúme ou pena não sei, imaginando-a entre baús grávida do meu irmão, de mim e depois num banquinho à espera, não me lembro de nos tocar, lembro-me do pente a descer o cabelo conforme me lembro

(mas serão lembranças ou episódios que invento, provavelmente não passam de episódios que invento)

do meu avô a desafiar a tropa e os camponeses e o meu pai a galopar com a caçadeira, de cavalo arrepiado de medo que se notava pelo suor do pescoço ao mesmo tempo que derrubavam a segadora e o depósito da água, o depósito a jorrar no chão e o cavalo encabritando-se no jorro, uma das empregadas da cozinha

- Os comunistas

que ocupavam herdades e quintas vindos da planície onde as perdizes esvoaçavam gritando e eu supunha a minha mãe no meio delas a esquivar-se ao meu pai

- Leva as tuas coisas para o meu quarto amanhã

uma empregada a quem o meu avô, sem se ralar connosco, filava

o pulso

- Chega cá

trancava-se com ela na despensa numa avidez de canário e saía

a compor o botão de cobre sem lhe saber o nome ou se importar com

a chávena da minha avó contra o pires, os tucanos giravam em busca do vento da fronteira e a gente no meio das leiras devastadas na casa em que apesar de igual tudo principiava a faltar-lhe, as criaturas dos retratos

 

- Quando é que morres tu?

 

 

 

Extraído de Arquipélago da Insónia © António Lobo Antunes – Dom Quixote, 2008

 

 

Dia 09 de outubro, em Lisboa, será lançado o mais recente livro de António Lobo Antunes.

Dia 09 de outubro, em Estocolmo,…

 

 

publicado por ardotempo às 11:51 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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