Domingo, 05.10.08

Uma história da TV, meio século atrás

Experiência narrada

 

Quando começaram as primeiras transmissões de TV para o interior profundo do Rio Grande do Sul, num certo dia o fazendeiro ordenou instalar um aparelho de TV no galpão da fazenda, com uma antena externa fixada numa haste sobre o telheiro antigo, para que os peões também vissem e desfrutassem a novidade assombrosa - os programas de humor, o noticiário televisivo e as séries de enlatados, trasmitidas em preto e branco...

 

Os gaudérios observaram em absoluto silêncio a novidade, por entre alguns chiados e alguma perda momentânea de sinal.

 

No final, o fazendeiro perguntou a eles o que achavam do que estavam vendo, se estavam gostando... Um deles, o porta-voz menos tímido do grupo, falou com franqueza:

 

 

 

 

Contribuição da poeta Ana Mariano, comentando um caso veridico contado por seu pai, ocorrido na região rural de Santa Maria da Boca do Monte - RS.

publicado por ardotempo às 23:00 | Comentar | Adicionar

Sol LeWitt

Gravura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sol LeWitt - Serigrafia (Paris)

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publicado por ardotempo às 22:19 | Comentar | Adicionar

Conto-Carta, de Ignácio de Loyola Brandão

 

 

O horror de minha autópsia

 

 

Minha mais do que adorada, amada Luisa

 

O que me deixa apreensivo é a perspectiva de, por qualquer razão, ter de sofrer uma autópsia. Não sei os motivos que levam a lei a exigir uma autópsia. Morte em circunstâncias suspeitas.

 

Sempre que leio essa frase em jornais, me delicio. Agora, a possibilidade me deixa consternado. Ser estendido em uma mesa de mármore — ao menos é mármore nos filmes e romances, mas acho que no Brasil ninguém vai gastar mármore com defunto. Digamos ser estendido em uma mesa de granito, pedra, madeira, fórmica. Branca, não muito limpa, que nada é limpo nesses lugares, com restinhos de sangue, talvez excremento — Deus me livre de tal inglória — ou pedacinhos de vísceras secas. Eu nu. Indefeso, exposto, a pele amarela, cheirando mal sobre o tampo repelente. Situação incomoda, estarei à mercê do legista insensível que vai me cortar com bisturis e serras, sem se incomodar com o que fui, pensei, sonhei.

 

Jamais passou pela cabeça dele que o corte possa doer em um morto, porque os mortos não podem reclamar, comprovado está que não falam. Certeza de que serei — ele fez milhares de autópsias e as executa com frieza, automaticamente — um objeto qualquer, ele vai me cortar como se estivesse abrindo a boca de um saco de carvão, uma lata de sardinhas, uma lata de comida de gato, jamais como uma latinha de precioso caviar. Não importa que esteja frio ou faça calor, ou que moscas voem ao redor, pousando sobre meu corpo impotente, quem sabe me fazendo cócegas. Nenhuma preocupação com a higiene ou a assepsia. Não poderei mais ser contaminado, não estarei sujeito a infecções. Parece que a morte traz imunidade, o cadáver fica isento de perigos corriqueiros em hospitais.

 

Pode ser que o legista trabalhe com música, tomara que goste de Brahms, não vou suportar o rock vulgar, barulhento, odioso, rotineiro em nossas cidades, em qualquer lugar, em todos os lugares, nos bares, supermercados, restaurantes, salas de espera, elevadores, garagens, lojas, igrejas (bem, não sei, há tanto tempo não entro e uma, apesar dos cinemas todos estarem se transformando em igrejas. São boas essas novas religiões, minha cara?). Não podemos mais fugir do som, ele está à nossa volta, incessante, qual peste negra, grudando-se em nossa pele, invadindo as cabeças.

 

O legista estará fumando, enquanto corta. É impossível que não o faça, o cheiro da fumaça é um modo de desviar o nauseabundo odor de um cadáver. Não é improvável que tendo as duas mãos ocupadas, o cigarro ou o charuto, ou a cigarrilha, fique o tempo inteiro na boca, sem que ele possa bater as cinzas. Assim, é cem por cento provável que a cinza caia dentro mim, sobre meus pulmões, cubra meu coração rígido, inutilizado. De que adianta um coração que não bate mais?

 

Tenho pavor que seja um velho médico pachola, funcionário público em vias de se aposentar, com alguns dentes podres e que, ao trabalhar de boca aberta, babe dentro de mim. Mesmo morto, posso vomitar, não suporto baba viscosa. Ou que, ao tossir, injete perdigotos nos meus pulmões abertos. Logo eu que me cuido tanto! Penso nesse homem serrando minhas costelas, arrancando meu estômago, abrindo, verificando o que comi. Por isso quero ter uma última refeição decente, boa. Devo estudar o que pode ser agradável ao paladar e tenha bom aspecto, quando os ácidos da digestão atuarem. Para que ninguém tenha nojo. Para que me admirem como um gourmet, apreciador do melhor.

 

Vão me extirpar o pâncreas, a vesícula, pedaços do intestino, os rins, examinar o fígado. Será possível, antes de morrer, ir ao banheiro esvaziar meus intestinos? Como evitar que a minha autopsia seja envolvida pelo cheiro pestilento da carne putrefata, fezes envelhecidas, gases e tudo o que está num corpo em decomposição? Recuso-me a morrer, enquanto a ciência não encontrar meios de me proteger desse repugnante pós-final. Não quero participar dessa cerimônia horrenda e sem sentido, caso morra em circunstâncias suspeitas. Vou pesquisar, saber se é possível deixar um documento pedindo: mesmo que as circunstâncias sejam suspeitas, deixem correr. É excitante morrer no mistério insolúvel, participar de um caso não esclarecido. Assim, vou estar sempre lembrado, presente, citado. Nunca morto definitivamente, um mito solidificado. Morrer naturalmente nunca trouxe glória pra ninguém, é passagem rápida para o esquecimento.

 

Ao pensar na autópsia, fico a supor o que farão com o que retirarem de dentro de mim. Tudo será recolocado, junto com serragem, como ouvir dizer? Ou guardam em vidros, dentro de formol? E se algum dia alguém, por descuido, ou sacanagem — porque existe muita corrupção nos hospitais, estão sempre comprando corações, fígados, rins, órgãos para transplante, vendem crianças, há contrabando de córneas — e se alguém apanha aqueles vidros e vende a um desses caminhões que percorrem o Brasil, com exposições pseudo-científicas de anormalidades em parques e pavilhões? Até perdi o fôlego.

 

Ou após os exames e análises serei colocado em um saco plástico, desses de lixo, e jogado, dado aos cachorros, abandonado em terrenos baldios, vendido aos quilos em circos para alimentar as feras? Outro dia, li que no quintal de uma casa próxima a um hospital foram encontrados dezenas de corações humanos, atirados fora sem mais nem menos.

 

Se recolocam tudo em meu corpo, não ajustarão cada coisa em seu lugar, devem imaginar que não há necessidade. Farão suturas, me enviarão ao túmulo. As suturas serão bem feitas ou costuras apressadas, com agulhas para se fechar sacos de feijão ou soja? Nada de grande cuidados com o pobre defunto vilipendiado. Não exijo cirurgias plásticas, mas tenham a bondade de me fechar com atenção, reconstituindo este corpo que me será necessário no Juízo Final. Não posso comparecer estropiado diante do Senhor, com as costuras arrebentando. Imaginem o bom Senhor me olhando e vendo o coração invertido, os intestinos mal enrolados, a pequena vesícula fora de lugar!

 

Cavaleiro de triste figura, eu, que as pessoas admiram tanto, com tão belo físico, bem cuidado, musculado, massageado, pele tratada com cremes magníficos, perfeito exemplo do metrossexual, eu, logo eu, sendo objeto de escárnio, sarcasmo, galhofa, o próprio Senhor não poupando um riso zombeteiro, como se me censurasse: “não disse sempre que as vaidades humanas eram tolices?” Triste espetáculo no último instante da humanidade, momento que marcará o fim do ciclo do ser humano. Fim.

 

Se existe o Juízo Final, existe uma data para tudo se encerrar, fazer o balanço, avaliar o que se passou, se valeu a pena. E o Senhor — ou quem quer que seja que iniciou tudo isso e se tornou o âncora do show  — decidir se continua ou não com suas velhacas experiências. Ou se tenta um nova, porque esta aqui não está adiantando nada.

 

 

Com todo o meu imenso carinho te beijo

 

 

 

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(Não assino, quero ver se você adivinha o remetente)

 

 


 

© Ignácio de Loyola Brandão – CARTAS, Iluminuras, 2005

Cigarros – Fotografia de Irving Penn – 1972

publicado por ardotempo às 19:42 | Comentar | Adicionar

Flores Meridionais

Cleonice Bourscheid e Anelise Nunes

 

 

 

 

Em breve, um novo livro de poemas de Cleonice Bourscheid com a temática das flores do Sul do Brasil. Com ilustrações de Anelise Nunes

 

Rabo-de-gato e Bela-emília – Imagens em desenhos aquarelados de Anelise Nunes, 2008

publicado por ardotempo às 18:41 | Comentar | Adicionar

1 voto = 1 voto

Reflexão sobre o óbvio

 

Ferreira Gullar

 

Não tenho nenhuma dúvida de que o homem é, mais que tudo, um ser cultural e, conseqüentemente, sustentado pelos valores que inventou e nos quais acredita e segundo os quais se comporta. Esses valores, por sua vez, determinam as semelhanças e diferenças entre os indivíduos, ainda que, em geral, os valores fundamentais sejam idênticos. Por exemplo, o sentido de justiça é um valor comum a todas as culturas.

 

Dizer que o homem é um ser cultural não significa que todos os membros de determinadas sociedades sejam igualmente cultos. Basta lembrar-se do Brasil, onde a disparidade dos níveis culturais das pessoas é enorme, pois vai desde aqueles que têm curso universitário até os que mal sabem ler e que são a maioria.


 

Se o homem é um bicho cultural, que vive num mundo cultural, a diferença de conhecimento entre os indivíduos - sem falar na capacidade intelectual que é também desigual - os situa diferentemente na sociedade, ou seja, quanto mais conhecimento, quanto mais competência, melhores ganhos, maiores possibilidades de enriquecer e melhor posição na hierarquia de poder dentro da sociedade.
A conclusão lógica a tirar daí é que a capacidade intelectual e o grau de conhecimento são fatores de desigualdade entre os membros de qualquer comunidade humana.

 

E essa desigualdade se expressa, não apenas no desempenho técnico e profissional, como em todas as demais atividades e opções que a vida social oferece ou exige de cada um.
As pessoas são iguais em direito - ou deveriam ser - mas não em qualidades. Dizer isso equivale a afirmar o óbvio, uma vez que todos sabem que, dos muitos jovens que se dedicam, por exemplo, a jogar futebol, raríssimos se tornam um Pelé ou um Ronaldo; dos muitos que se dedicam à música, raríssimos se revelam talentosos como Tom Jobim ou Pixinguinha - e o mesmo se pode dizer dos que se dedicam às diferentes atividades profissionais. Isso é sabido de todo mundo, mas, em certas circunstâncias, se faz por ignorá-lo ou quase se torna proibido dizê-lo.


 

A tese de que os homens são iguais é sagrada e se disseminou de tal modo que até a vanguarda artística chegou a afirmar que "todo mundo é artista", como se as qualidades inatas que tornaram Da Vinci e Van Gogh pintores geniais fossem apenas preconceitos classistas que a burguesia inventou, para também aí impor a discriminação e a desigualdade.


 

A tese da igualdade, que nasce com a Revolução Francesa e se aprofunda na pregação de Rousseau, Diderot e Babeuf, radicaliza-se com a exploração selvagem que o capitalismo industrial impõe à classe operária durante o século 19. Em contraposição à desigualdade que levou os trabalhadores ao desamparo e à miséria, surgiu um conceito de igualdade que tanto tem de generoso quanto de irreal, cuja formulação mais extremada é a utopia da sociedade sem classes, em que a riqueza social seria distribuída, não mais "a cada um segundo sua capacidade" e, sim, "segundo a sua necessidade", o que implicaria num tipo de organização social que o próprio Marx não se atreveu a definir.


 

Na prática, essa concepção utópica de igualdade - que desconhece as qualidades individuais distintas - implicaria em nivelar as pessoas por baixo, já que o talento e a operosidade não se encontram igualmente em todos. Se é correto entender que tais qualidades não fazem de seus detentores seres superiores aos demais, ignorá-las resultaria tratá-los injustamente e, ao mesmo tempo, impedir a sociedade de desfrutar da contribuição que lhe dariam.
Mas, mesmo se se põe de lado os indivíduos superdotados, não seria justo remunerar igualmente o operário eficiente e o relapso. Se as pessoas devem receber não por capacidade e, sim, segundo a necessidade, não há por que empenhar-se em alcançar excelência do desempenho.


 

A noção equivocada de igualdade contradiz até mesmo o propósito da sociedade de estender a educação e o conhecimento a todos os indivíduos. Chega-se a ponto de desconhecer a diferença entre o voto consciente do eleitor informado e o voto de quem mal conhece os problemas sociais.

 

Levantar essa questão é visto como preconceito, muito embora todos saibam que é mais fácil perceber o que diz respeito a seu interesse imediato do que compreender as necessidades mais complexas da cidade ou do país.
Por isso, o voto desinformado favorece o demagogo, o político que só visa suas próprias vantagens, enquanto alija da vida política aqueles que agem com espírito público. Essa é uma grave ameaça à democracia, e só pode ser superada elevando-se o nível cultural e o grau de consciência dos cidadãos.

 

 

 

© Ferreira Gullar – Publicado no UOL

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publicado por ardotempo às 14:03 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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