O homem que precisava de um sonho
Estimado Arthur,
Você que é um incansável estudante da condição urbana tem aqui uma historinha a mais. Não sei para que ou o que vai fazer com ela, mas é fundamental que eu conte, para tirar de dentro de mim, repartir com alguém. Para que são as cartas se não para isso, dividir as coisas. Uma carta como esta, com envelope e selos, com destinatário e remetente, escrita em papel pautado de bloco verdadeiro, é coisa rara, admita. O bloco é o Farol, com aquela figura antiga na capa. Ainda existe. Será a mesma gráfica? Tantas coisas mudaram... Mas, veja a historinha, me responda, adoro ler seus comentários. Além do mais, aí onde está, o que mais pode fazer além de receber e responder cartas para não se isolar do mundo?
Estava na confeitaria e vi quando ele se aproximou do balcão. Vestia uma calça surrada e a camiseta estava limpa, mas indicava ter sido lavada e não passada. Tinha o rosto arranhado e os braços estavam lanhados.
— Quanto custa um sonho?
— R$ 2,10.
— Caro! E um copo de groselha?
— Groselha?
— Isso. Groselha misturada com água.
— Não vendemos groselha por copo. Só em litro, o xarope.
— Ah! E o recheio do sonho é do quê?
— Doce de leite ou creme de baunilha.
— Pode deixar um sonho por R$ 1,00?
— Não!
— Nem pedindo pelo amor de Deus?
— Nem pelo amor de Deus nem pelo amor dos meus.
— Por quê?
— Tenho de fazer a comanda e colocar o produto e o preço para você pagar no caixa. O patrão confere tudo no final da noite.
— Diz que era sonho de ontem e você deu abatimento.
— Aqui não existem sonhos de ontem.
— Como não?
— A confeitaria é famosa pelos produtos frescos. No fim do dia, recolhem todos os doces, doce estraga fácil, fermenta.
— O que fazem com os doces recolhidos?
— Não sei, vai tudo numa caixa que o patrão leva. Acho que dá para caridade, distribui à noite para os sem teto.
— Sabe onde distribuem?
— Não, não sei dessas coisas. Qual é, ô meu? Olha a fila! Vai comprar?
— Só tenho R$ 1, 00.
— Pede a alguém para completar!
— Não sou mendigo.
— Qualquer um completa, é pouco!
— O senhor já pediu alguma vez?
— Não!
— Não conhece a humilhação pelo olhar. As pessoas parecem ter nojo.
— O senhor exagera.
— Não. Já pedi. Senti. Dói mais do que a fome. Do que a vontade.
— O senhor é orgulhoso!
— Não, sou gente.
— Para que quer um sonho e um copo de groselha?
— Para minha companheira.
— Onde ela está?
— No hospital. Foi atropelada por um motoqueiro.
— E o senhor? Também foi atropelado?
— Não!
— E esses machucados?
— Apanhei dos motoqueiros. Quando briguei com o motoqueiro que atropelou, pararam cinqüenta motos. Nem quiseram saber, caíram de pau em cima de mim, depois fugiram.
— E sua companheira?
— Está internada e queria comer um sonho, é o que mais gosta. Naquele pronto-socorro do SUS não dão nada, é uma miséria.
O vendedor se afastou, chamado por um mulher de avental impecável.
O homem de rosto lanhado contemplou a vitrine havia bolos de chocolate com cobertura envernizada, tortas mostrando recheios vermelhos, amarelos e brancos, polpudas, sensação de serem macios, desmancharem na boca. A confeitaria era grande e havia mesas nas quais as pessoas tomavam café, comiam sanduíches de pão branco, sem casca, havia pratinhos com minicoxinhas, empadas, croquetes. A mulher de avental branco impecável estava a segui-lo, com olhar desconfiado, mas ele não percebeu.
O que fazer para ter o sonho? Se alguém acabasse, levantasse e deixasse alguma coisa intocada em um daqueles pratinhos, ele teria coragem de apanhar, disfarçando.
Deixariam?
Um homem de terno preto, camisa preta, gravata preta aproximou-se.
— Vamos lá, companheiro! Não vem pedir aqui.
— Não estou pedindo! Não pedi nada!
— Veio comprar, não comprou. O que queria?
— Um sonho.
— Por que não levou?
— Meu dinheiro não dá!
— Então, quando der, volta.
— Preciso do sonho hoje.
— O sonho pode ficar para amanhã.
— Nem sempre! Sonhos precisam ser realizados na hora.
— Cai fora.
O vendedor que atendera o homem lanhado no balcão se aproximou. Fez um sinal para o segurança se afastar.
— Tenho uma idéia. A casa fecha às oito. O senhor fica por aí, faltam duas horas. Antes das oito, volta, fico de olho nos sonhos, se sobrar algum o senhor leva. Sempre sobra, deixa comigo!
— Valeu! Obrigado.
Saiu, escritórios despejavam secretárias e funcionários, pontos de ônibus se enchiam, passavam minivans com os cobradores gritando os destinos, bares se enchiam para a happy hour, cervejas abertas, chopes com colarinhos, cheiro de lingüiça calabresa com cebola, os caça-níqueis se viam rodeados por homens barulhentos.
Quarenta minutos depois, ele voltou, restavam seis sonhos na vitrine. Andou mais um pouco, estava inquieto, entrou em um supermercado para se distrair olhando pessoas comprando, observando o que havia nas gôndolas. Às sete e meia os sonhos eram três.
“Fique calmo”, disse o funcionário que o atendera, “sempre sobra. Estamos começando a fechar, volte em meia-hora”.
Ele entrou em uma locadora de filmes, havia tantos que gostaria de assistir, um dia compraria um vídeo para ver O Pagador de Promessas. Voltou correndo, com medo da padaria fechar, olhou para a vitrine restava um sonho, o funcionário que o atendera fez um sinal e mandou-o encaminhar para o balcão. Ao chegar, havia duas senhoras à frente dele. Uma levou dois pãezinhos de leite. A outra apontou o prato e pediu: “Me dê aquele sonho. Todos os dias preciso de um sonho quando a noite começa”.
© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras, 2004
Foto de Mauro Holanda