A morte de Soljenitsin
Texto de João Paulo Sousa
Não creio, porém, que o mérito moral da denúncia que Soljenitsine levou a cabo baste para o considerar um grande escritor. Herdeiro de uma atitude estética que encontra em Tolstoï uma das figuras mais relevantes, o autor de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch parece ter atravessado o século XX com as armas artísticas do século XIX (bem ao contrário de dois dos seus antecessores russos, Dostoiévski e Tchékhov, ambos de origem oitocentista, mas cujas obras, graças às formas literárias que assumiram, preservaram a sua força até ao nosso tempo).
Tenho, assim, a impressão de que o entusiasmo suscitado hoje por Soljenitsine em tantos antigos esquerdistas se poderá ficar a dever a uma espécie de má consciência, devida à descoberta tardia do que era, afinal, o paraíso soviético na terra. Na verdade, talvez mais do que o livro sobre a Administração Geral dos Campos, que, quando muito, poderá ter aparecido na altura certa, há de ter sido o esgotamento da crença a conduzir ao afastamento da órbita do PC. Os exemplos da lógica totalitária estavam ao alcance de quem os quisesse ver desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra (estou a ser generoso), e as repressões húngara e checa não foram exactamente brincadeiras infantis.
O problema, como se sabe, é que, em matéria de fé, não há razão que resista.
Publicado no blog Da Literatura