Quarta-feira, 06.08.08

A morte de Soljenitsin

Texto de João Paulo Sousa

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
A propósito da morte de Soljenitsine, aqui recordo o número 45/47 da revista Nova Renascença, referente à Primavera e ao Outono de 1992, onde José Augusto Seabra (JAS) escreveu sobre os entraves postos à publicação em Portugal do Arquipélago de Gulag. Convirá lembrar que JAS colaborou na tradução do volume, apurando, como ele mesmo referiu, "o estilo em português da versão feita directamente a partir do russo", por Francisco Ferreira, dissidente do PCP, e pela sua mulher, Maria Llistó. Como é sabido, o livro, em edição da Bertrand, só saiu entre nós em 1975, perto do fim do "gonçalvismo". Nas palavras de JAS, tal apenas foi possível, apesar da pressão exercida pelo Partido Comunista ou pelos sectores que lhe eram próximos, porque se alertaram "os meios políticos e a opinião pública para essa tentativa censória" (p. 348).
No citado número da Nova Renascença, precisamente dedicado à análise e à desmontagem do totalitarismo comunista, consta também um excerto do volume (em concreto, retirado do capítulo "História da nossa Civilização"), que se detém em considerações sobre o artigo 58 do Código Penal soviético de 1926, exemplo pertinente e assaz significativo da lógica repressiva da (entretanto) extinta União Soviética.

Não creio, porém, que o mérito moral da denúncia que Soljenitsine levou a cabo baste para o considerar um grande escritor. Herdeiro de uma atitude estética que encontra em Tolstoï uma das figuras mais relevantes, o autor de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch parece ter atravessado o século XX com as armas artísticas do século XIX (bem ao contrário de dois dos seus antecessores russos, Dostoiévski e Tchékhov, ambos de origem oitocentista, mas cujas obras, graças às formas literárias que assumiram, preservaram a sua força até ao nosso tempo).

 

Tenho, assim, a impressão de que o entusiasmo suscitado hoje por Soljenitsine em tantos antigos esquerdistas se poderá ficar a dever a uma espécie de má consciência, devida à descoberta tardia do que era, afinal, o paraíso soviético na terra. Na verdade, talvez mais do que o livro sobre a Administração Geral dos Campos, que, quando muito, poderá ter aparecido na altura certa, há de ter sido o esgotamento da crença a conduzir ao afastamento da órbita do PC. Os exemplos da lógica totalitária estavam ao alcance de quem os quisesse ver desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra (estou a ser generoso), e as repressões húngara e checa não foram exactamente brincadeiras infantis.

 

O problema, como se sabe, é que, em matéria de fé, não há razão que resista. 

 

Publicado no blog Da Literatura

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publicado por ardotempo às 20:13 | Comentar | Adicionar

Utopia Realizada

 Jornada de Passo Fundo, RS - Brasil

 

A Jornada tem uma extraordinária ambivalência: ela é um megaevento que reúne milhares de interessados em literatura (professores, alunos, leitores leigos, escritores, editores, jornalistas) em poucos dias efusivos, mas é também um processo, que se estende pelas escolas e bibliotecas de uma larga região (uns 200 kms de raio em torno de Passo Fundo, RS) na forma de incentivo à leitura, debates, formação continuada, teatralização, etc, durante o ano todo. Não é uma espécie de utopia realizada, neste nosso país de poucos leitores? É sim.”

 

Luís Augusto Fischer

 

publicado por ardotempo às 14:10 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

"Um chops e dois pastel"

É a palavra de ordem no boteco
 
Pode-se afirmar que é uma expressão coloquial paulistana clássica. Acontece em várias rodas e em todos os botequins de São Paulo, sempre que existe a oportunidade de ser falada e, na seqüência, invariavelmente, claro, todos sorriem, solidários com a "originalidade" do viés repetitivo. 
 
Uma expressão espontânea que se insere na brejeirice da tradição poética boêmia, disseminada talvez, pela forma peculiar da fala de Adoniram Barbosa, compositor do Bixiga (Bela Vista), de acentuado sotaque do bairro, autor de sambas nacionalmente conhecidos como o Samba do Arnesto, Trem das Onze e Saudosa Maloca
 
Dessa raiz brasileirinha que gerou alguns achados preciosos “...frechada de tiro ao álvaro...,” “... cada táuba que caía...”, poderia ter vindo igualmente o pedido arisco e bem humorado que tanto se utiliza nas mesas mais populares, para a solicitação da bebida e dos salgadinhos.
 
Nela repousa (inconscientemente ou não) uma espécie de senha revelada do cosmopolitismo paulistano, antídoto atávico e sofisticado contra o provincianismo que passa bem à distância da grande metrópole. E é com essa expressão de auto-ironia e alegre ingenuidade que o paulistano brinca de forma recorrente, com modéstia e ausência de soberba, neutralizando e atribuindo consistência à sua condição de habitante descontraído de uma das cidades mais populosas do mundo e a mais rica e pujante da América Latina.
 
Um chops e dois pastel é a esgrima rápida e acumpliciada de todas as idades, nos divertidos e animados bares das happy-hours, nas vilas madalenas e marianas, no velho centro da cidade, de boêmia atualmente revigorada. Nos bares anônimos e singelos de todas as esquinas da grande cidade e seria também nas feiras-livres (que produzem todos os dias desde cedo, disputados pastéis, aos milhares, fritos na hora, fumegantes, de queijo, carne, palmito e tantas outras versões bem ao gosto do consumidor) se ali se vendesse também o chope ou a cerveja “estupidamente gelada”.
 

Os pastéizinhos são deliciosos em harmonia com o chope de barril e tudo isso forma um cenário corriqueiro e familiar aos habitantes da cidade de São Paulo, de custo acessível e prazer garantido aos protagonistas, que transitam felizes entre seus bares preferidos, desde os mais simples aos mais requintados. Naturalmente, isso se os pastéis não estiverem excessivamente gordurosos, e o chope estiver na temperatura adequada e com o seu colarinho perfeitamente bem tirado. Bom apetite

 

 

 

 

© Palavras da Cidade - São Paulo, 2008

Texto de Alfredo Aquino

Foto de Pierre Yves Refalo 

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publicado por ardotempo às 13:47 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

O buquê da sereia

"Saudáveis peixes frescos embrulhados em folhas do jornal do dia"


 


 

"O buquê da sereia" - Mauro Holanda - Fotografia

publicado por ardotempo às 13:44 | Comentar | Adicionar

Coringa

Ricardo Noblat

 

 

 

Foi ontem à noite, na última sessão de uma sala de cinema aqui perto de casa. De tanto insistir, André, o filho roqueiro petista, que já assistira o filme três vezes, conseguiu me arrastar para assistir ao novo Batman.

 

Sou do tempo de Marcelino Pão e Vinho, produção espanhola exibida entre nós no final dos anos 50 do século passado; de Lili, Bambi e Dez Mandamentos - esse, de tão longo, era interrompido no meio para que pudéssemos ir ao banheiro e beber água.

 

Sou do tempo também de Faca na Água, incompreensível filme do francês Roman Polansky que no final dos anos 60 fez muito sucesso entre intelectuais e estudantes que por aqui imaginavam mudar o mundo para melhor.

 

Gosto muito de cinema, mas não assisti à série Guerra nas Estrelas, Harry Porter e a nenhum filme sobre super heróis. Não colecionei gibis. André coleciona e é especialista em super heróis. Garantiu-me que o Batman em cartaz é o melhor feito até hoje.

 

O que observei:

 

As calças jeans das adolescentes que estavam na fila do cinema continuam rasgadas na altura dos joelhos. Há mais de um rombo às vezes. E elas pagam mais caro por calças jeans rasgadas. Provoquei uma delas: "Ih, você rasgou sua calça..." Ela me olhou com pavor como se temesse ser atacada. Depois relaxou e respondeu: "É assim mesmo, tio". (Detesto ser chamado de tio pelas amigas de minha filha.)

 

Permanece alto o percentual de falsas louras, todas elas de cabelos escovados. Como tem feito frio à noite em Brasília, casacos de pele foram resgatados dos armários e as botas estão em alta. O que torna essas meninas inalcançáveis para quem mede menos de 1 metro e 70 como eu. Bem, não é isso que as torna inalcancáveis.

 

Havia muitos rapazes tatuados e com piercing nos lábios, orelhas, narizes, e sei lá mais aonde. Um deles exibia uma Sakura no alto do braço direito. Sakura é a flor nacional do Japão. Depois de comprar no Rio minha primeira bicicleta e de pedalar pela primeira vez depois de 40 anos, comentei outro dia com Rebeca que estava pensando em me tatuar. Ela nem respondeu.

 

Sim, o filme. Não leve crianças para vê-lo. Vá você. É para adultos. Talvez seja o filme mais bem feito sobre terrorismo. Qualquer ator razoável seria capaz de fazer o papel de Batman. De máscara e metido naquela roupa soturna, o herói não exige um grande ator para vivê-lo. O Coringa, esse não. Só um excelente ator seria capaz de interpretá-lo. 

 

E sei que chovo no molhado: mas será muito difícil vir a existir outro Coringa tão bom quanto o concebido por Heath Ledger. O Coringa anterior de Jack Nicholson era gaiato, quase diria inocente. O de Ladger é a própria encarnação do mal. Você passa o filme inteiro querendo ver Ledger na tela - e até se irrita com Batman e os demais personagens.

 

 

Publicado por Ricardo Noblat, no Blog do Noblat

publicado por ardotempo às 13:33 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Poema de Leonard Cohen

Cansados

Leonard Cohen

 

Estamos cansados de ser brancos

e estamos cansados de ser pretos

e não vamos continuar a ser brancos

e não vamos continuar a ser pretos

nem por um segundo mais.

Agora vamos passar a ser vozes,

vozes desencarnadas no céu azul,

harmonias agradáveis

nas cavidades do nosso tormento.

E permaneceremos assim até perceberem,

até o seu sofrimento os acalmar,

e poderem acreditar na palavra de Deus

que disse excessivas vezes,

e de várias maneiras,

para se amarem uns aos outros,

ou pelo menos para não torturarem

e assassinarem em nome da estupidez

e do vômito de uma qualquer idéia humana

que faz com que Deus se afaste de vocês

e escureça o cosmos com um desgosto inconcebível.

Estamos cansados de ser pretos,

e não vamos continuar a ser brancos

e não vamos continuar a ser pretos

nem por um segundo mais.

 

 

Leonard Cohen, Livro do Desejo - Tradução de Vasco Gato.

Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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publicado por ardotempo às 12:59 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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