Domingo, 31.08.08

Algemas invisíveis

Os fora-da-lei

Ferreira Gullar

Todo mundo sabe que não sou jurista nem mesmo advogado, que não entendo de leis, mas isso não me impede de perceber que alguma coisa de estranho se passa com a Justiça no Brasil. Tenho dificuldade para definir precisamente o que é e, menos ainda, o que provoca essa estranheza. Não obstante, ela existe e se traduz na opinião mais ou menos generalizada de que a nossa Justiça não funciona.


Um fator que, sem dúvida, gera a impressão de que não há justiça é a demora com que os casos são julgados. Alguns membros do Judiciário dizem que a causa disso é o grande número de processos que chegam aos tribunais e o número reduzido de juízes para julgá-los, o que deve ser verdade, pelo menos em parte. Outros entendidos na matéria, no entanto, apontam também, como causa da inoperância do Judiciário, a possibilidade quase ilimitada de recursos de que os advogados de defesa podem lançar mão, tentando impedir que os julgamentos cheguem ao fim.

 

Mas não é só: em determinados casos, esses recursos, valendo-se do decurso de prazo, devolvem à liberdade criminosos perigosos que, presos, esperavam julgamento. Aí, então, eles desaparecem e, ainda que se chegue a sua condenação, à revelia, de nada adianta, já que ninguém sabe onde eles se meteram.Lembram o caso do famigerado Elias Maluco que, solto por decurso de prazo, pouco depois assassinava de modo brutal o jornalista Tim Lopes? Esse é apenas um entre dezenas, centenas de casos semelhantes. E quando o cidadão comum toma conhecimento disso, a conclusão a que chega é de que não há justiça neste país.

 

Somos tentados a concordar com ele.


Não é que não haja Justiça propriamente, mas a Justiça penal está longe de cumprir o que se espera dela. E volto à indagação de sempre: qual é a causa disso? Se há algo errado por que não se corrige? Absurdo seria admitir que a Justiça esteja mancomunada com os criminosos ou que perdeu a noção de sua finalidade social.


Vou ver se me explico. Por exemplo, na maioria dos países, quem for condenado por crime hediondo não tem direito ao benefício de progressão da pena, terá que cumpri-la integralmente. No Brasil, não; para surpresa geral, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que esse benefício deve ser estendido a todos os condenados indistintamente. Que significa essa decisão? É que, para o STF, não se deve fazer distinção entre condenados? Mas é a própria lei que os distingue, são os próprios juízes, quando os punem com penas diferentes. É impossível convencer a opinião pública de que um sujeito que assaltou um banco represente, para os cidadãos, a mesma ameaça que alguém que tirou a vida de várias pessoas e, às vezes, com requintes de crueldade. Nem creio que os juízes do STF pensem assim.Então, o que os leva a tomar decisões como essa?


E aí surge o caso das algemas, que levou aquela Corte de Justiça a quase proibir o uso delas. É estranho, uma vez que todas as polícias do mundo algemam presos, desde que ofereçam algum perigo. Exigir, como fez o STF, que o policial peça autorização por escrito para algemar alguém, sob pena de ser punido e o preso, libertado, parece demais. Como antever a reação de um marginal ou uma pessoa qualquer? Outro dia, um preso livrou-se das algemas de plástico, tomou o revólver do policial e o matou. Há quem associe a decisão do STF à "democratização" das algemas, que passaram a ser usadas em banqueiros e empresários. Para não descriminar, quase abolira o uso delas, mesmo sabendo que punha em risco a vida de outras pessoas. O argumento é que as algemas humilham o preso.


Concordo, todo cidadão deve ser respeitado em sua dignidade e também -atrevo-me a acrescentar- na preservação de sua vida. Pergunto: está certo, em nome da dignidade do preso, pôr em risco a vida dos demais? E alguém perguntará: está certo em nome da vida dos demais, humilhar o preso, algemando-o?


São respostas difíceis, num país que quer tanto ser justo, como o nosso. De uma coisa me convenci, porém: a recente decisão do STF oferecerá ao advogado de defesa novas possibilidades de recursos para soltar criminosos e adiar ou até anular as decisões judiciais.Ele deve estar certo, já que sua tarefa é impedir a punição, coisa antiga. Afinal de contas, por que punir, se, mais que as algemas, a cadeia humilha o condenado? Uma nova era se abre diante de nós, quando, enfim, chegaremos à penitenciária virtual.

 

Enquanto não chegamos lá, vejo que o esforço que fiz para entender nossa Justiça não foi em vão: a lei está certa, e os juízes, também. Nós é que nos sentimos fora da lei. 

 

© Ferreira Gullar - publicado na Folha de S. Paulo / UOL

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Sábado, 30.08.08

Catedral

Mário Castello

 

 

Fotografia - Catedral de São Paulo - Mário Castello, 2008

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Mia Couto

Idéias de Bartolomeu Sozinho

 

"Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam idéias próprias.
Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com idéias.
Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem idéias.
Aos 40 anos achamos que as idéias dos outros são todas nossas.
Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter idéias.
Aos 60 anos ainda temos idéias mas esquecemos do que estávamos a pensar.
Aos 70 só pensar já nos faz dormir.
Aos 80 só pensamos quando dormimos.
"

© Mia Couto (Venenos de Deus, remédios do Diabo, 2008)

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Sexta-feira, 29.08.08

Fischer e Coelho

Luís Augusto Fischer e Marcelo Coelho

Foi um sucesso o lançamento de Machado e Borges na glamourosa Livraria da Vila, na Alameda Lorena, em São Paulo. Com direito a uma brilhante explanação de Marcelo Coelho acerca do ensaio do escritor (constante no livro ora lançado) sobre os elos reflexivos machadianos e borgesianos, sobre as suas respectivas consciências literárias de inserção sistêmica nos contextos de formação dos universos da literatura brasileira e argentina – ambos os escritores pensadores refratários aos andaimes do regionalismo e do nacionalismo. 

 

 

Na seqüência, uma suave complementação (quase afônica) por parte de Luís Augusto Fischer, combalido por uma gripe mas fortalecido em refinado bom-humor e na alegria pelo sucesso conquistado na noite paulistana de autógrafos ao livro, lançado pela Arquipélago Editorial.

 

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Quinta-feira, 28.08.08

Quente e frio

O fim da teoria do leão

 

Os números finais das Olimpíadas costumam provocar o que pode ser chamado de sociologia de resultados. Surgem teses sobre as causas sociais e políticas de triunfos e fracassos e a quantidade de medalhas ganhas passa a ser um medidor de virtudes nacionais. Mas, como toda sociologia instantânea, esta tem dificuldade em lidar com o que não é óbvio. É óbvio que ganham mais medalhas os países mais bem alimentados e ricos, que podem investir mais em esportes e preparação de atletas.

 

Se uma Cuba ganha medalhas em desproporção ao seu poderio econômico e à sua dieta alimentar, a explicação também é óbvia. Países socialistas tradicionalmente usam o esporte como propaganda, seu investimento desproporcional é na competição ideológica. Mas outras exceções ao óbvio desafiam as teses. E muitas vezes levam a fantasias, como a teoria do leão.

 

 

Sociólogos de ocasião desenvolveram a tese de que o sucesso de atletas africanos em corridas de fundo devia-se ao fato de terem se criado num ambiente em que poder fugir do leão era condição para a sobrevivência. Uma condição que se sobrepunha a todas as outras. O leão predador, claro, quando não era um leão de verdade, era uma metáfora para todos os perigos da floresta que obrigavam as pessoas a terem pernas ligeiras, e agilidade para não morrer.

 

Havia vestígios da teoria do leão na velha idéia de que a ascendência africana explicava a habilidade dos brasileiros para o futebol, que ninguém no mundo igualava. Qualquer jogada do Pelé teria, entre os seus antecedentes remotos, um meneio para escapar do leão.

 

A teoria do leão, que é uma teoria sobre a inevitabilidade, pois diz que um certo tipo de ambiente só pode produzir um certo tipo de atleta, sofreu um duro golpe quando apareceu, numa Olimpíada de inverno, aquela equipe de trenó — da Jamaica! A importância do leão na vocação para o futebol é desmentida cada vez que se vê um Messi fazer em campo o que se esperava que o Ronaldinho fizesse. E se ainda fosse preciso um dado para mostrar como a teoria do leão é furada, basta lembrar que o país que tem a maior costa contínua e algumas das piores estradas do mundo produz mais campeões de automobilismo do que de natação.

 

Não fomos tão mal assim nas Olimpíadas. Nos casos em que poderíamos ter ido melhor, perdemos para o nosso emocionalismo. E ganhamos de todos nas categorias choro convulsivo e lamentação em equipe. No fim — esta é a minha teoria — os Jogos Olímpicos são entre os de sangue quente e os de sangue frio. Os de sangue frio ganham sempre, mas os de sangue quente são muito mais simpáticos.

 

Luis Fernando Verissimo

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Quarta-feira, 27.08.08

Conto-Carta: Ignácio de Loyola Brandão

 
O homem que precisava de um sonho
 
 
Estimado Arthur,
 
Você que é um incansável estudante da condição urbana tem aqui uma historinha a mais. Não sei para que ou o que vai fazer com ela, mas é fundamental que eu conte, para tirar de dentro de mim, repartir com alguém. Para que são as cartas se não para isso, dividir as coisas. Uma carta como esta, com envelope e selos, com destinatário e remetente, escrita em papel pautado de bloco verdadeiro, é coisa rara, admita. O bloco é o Farol, com aquela figura antiga na capa. Ainda existe. Será a mesma gráfica? Tantas coisas mudaram... Mas, veja a historinha, me responda, adoro ler seus comentários. Além do mais, aí onde está, o que mais pode fazer além de receber e responder cartas para não se isolar do mundo?
 
Estava na confeitaria e vi quando ele se aproximou do balcão. Vestia uma calça surrada e a camiseta estava limpa, mas indicava ter sido lavada e não passada. Tinha o rosto arranhado e os braços estavam lanhados.
 
— Quanto custa um sonho?
— R$ 2,10.
— Caro! E um copo de groselha?
— Groselha?
— Isso. Groselha misturada com água.
— Não vendemos groselha por copo. Só em litro, o xarope.
— Ah! E o recheio do sonho é do quê?
— Doce de leite ou creme de baunilha.
— Pode deixar um sonho por R$ 1,00?
— Não!
— Nem pedindo pelo amor de Deus?
— Nem pelo amor de Deus nem pelo amor dos meus.
— Por quê?
— Tenho de fazer a comanda e colocar o produto e o preço para você pagar no caixa. O patrão confere tudo no final da noite.
— Diz que era sonho de ontem e você deu abatimento.
— Aqui não existem sonhos de ontem.
— Como não?
— A confeitaria é famosa pelos produtos frescos. No fim do dia, recolhem todos os doces, doce estraga fácil, fermenta.
— O que fazem com os doces recolhidos?
— Não sei, vai tudo numa caixa que o patrão leva. Acho que dá para caridade, distribui à noite para os sem teto.
— Sabe onde distribuem?
— Não, não sei dessas coisas. Qual é, ô meu? Olha a fila! Vai comprar?
— Só tenho R$ 1, 00.
— Pede a alguém para completar!
— Não sou mendigo.
— Qualquer um completa, é pouco!
— O senhor já pediu alguma vez?
— Não!
— Não conhece a humilhação pelo olhar. As pessoas parecem ter nojo.
— O senhor exagera.
— Não. Já pedi. Senti. Dói mais do que a fome. Do que a vontade.
— O senhor é orgulhoso!
— Não, sou gente. 
— Para que quer um sonho e um copo de groselha?
— Para minha companheira.
— Onde ela está?
— No hospital. Foi atropelada por um motoqueiro.
— E o senhor? Também foi atropelado?
— Não!
— E esses machucados?
— Apanhei dos motoqueiros. Quando briguei com o motoqueiro que atropelou, pararam cinqüenta motos. Nem quiseram saber, caíram de pau em cima de mim, depois fugiram.
— E sua companheira?
— Está internada e queria comer um sonho, é o que mais gosta. Naquele pronto-socorro do SUS não dão nada, é uma miséria.
 
O vendedor se afastou, chamado por um mulher de avental impecável.
        O homem de rosto lanhado contemplou a vitrine havia bolos de chocolate com cobertura envernizada, tortas mostrando recheios vermelhos, amarelos e brancos, polpudas, sensação de serem macios, desmancharem na boca. A confeitaria era grande e havia mesas nas quais as pessoas tomavam café, comiam sanduíches de pão branco, sem casca, havia pratinhos com minicoxinhas, empadas, croquetes. A mulher de avental branco impecável estava a segui-lo, com olhar desconfiado, mas ele não percebeu.
 
         O que fazer para ter o sonho? Se alguém acabasse, levantasse e deixasse alguma coisa intocada em um daqueles pratinhos, ele teria coragem de apanhar, disfarçando.
 
 Deixariam?
 
         Um homem de terno preto, camisa preta, gravata preta aproximou-se.
 
— Vamos lá, companheiro! Não vem pedir aqui.
— Não estou pedindo! Não pedi nada!
— Veio comprar, não comprou. O que queria?
— Um sonho.
— Por que não levou?
— Meu dinheiro não dá!
— Então, quando der, volta.
— Preciso do sonho hoje.
— O sonho pode ficar para amanhã.
— Nem sempre! Sonhos precisam ser realizados na hora.
— Cai fora.
 
O vendedor que atendera o homem lanhado no balcão se aproximou. Fez um sinal para o segurança se afastar.
 
— Tenho uma idéia. A casa fecha às oito. O senhor fica por aí, faltam duas horas. Antes das oito, volta, fico de olho nos sonhos, se sobrar algum o senhor leva. Sempre sobra, deixa comigo! 
— Valeu! Obrigado.
 
   Saiu, escritórios despejavam secretárias e funcionários, pontos de ônibus se enchiam, passavam minivans com os cobradores gritando os destinos, bares se enchiam para a happy hour, cervejas abertas, chopes com colarinhos, cheiro de lingüiça calabresa com cebola, os caça-níqueis se viam rodeados por homens barulhentos. 
 
Quarenta minutos depois, ele voltou, restavam seis sonhos na vitrine. Andou mais um pouco, estava inquieto, entrou em um supermercado para se distrair olhando pessoas comprando, observando o que havia nas gôndolas. Às sete e meia os sonhos eram três.
 
         “Fique calmo”, disse o funcionário que o atendera, “sempre sobra. Estamos começando a fechar, volte em meia-hora”.
 
           Ele entrou em uma locadora de filmes, havia tantos que gostaria de assistir, um dia compraria um vídeo para ver  O Pagador de Promessas. Voltou correndo, com medo da padaria fechar, olhou para a vitrine restava um sonho, o funcionário que o atendera fez um sinal e mandou-o encaminhar para o balcão. Ao chegar, havia duas senhoras à frente dele. Uma levou dois pãezinhos de leite. A outra apontou o prato e pediu: “Me dê aquele sonho. Todos os dias preciso de um sonho quando a noite começa”.
 
 
 
 
 
 
© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras, 2004 
Foto de Mauro Holanda
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Mário Castello, fotógrafo

 Fotografia

 

 

 

Mário Castello - Fotografia - Catedral de Florença - Florença, Itália 

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Tratados de paz

Avanços e recuos no Oriente Médio – tratados assinados, tratados rompidos, nada muda e tudo se calcifica no mesmo ponto: em estado precário e beligerante entre Israel e Palestina

 

 

 

Israeli Poster Artist - Yossi Lemel - Artista gráfico especializado na comunicação visual do cartaz.

Veja o blog do artista: Yossi LemelPublicado no blog Der Terrorist

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Saudações ao Der Terrorist

 

 

 

 

 

 

Boa leitura aos contos de A Fenda.

O lançamento de Carassotaque pela Iluminuras acontecerá em São Paulo, Brasil - Livraria da Vila (Lorena) no dia 14 de outubro. Você receberá seu livro em breve.

 

Blog Der Terrorist

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Poema de Vinicius de Moraes

 

O escândalo da rosa

 

Oh rosa que raivosa


Assim carmesim


Quem te fez zelosa


O carme tão ruim?



 

Que anjo ou que pássaro


Roubou tua cor


Que ventos passaram


Sobre o teu pudor



 

Coisa milagrosa


De rosa de mate


De bom para mim



Rosa glamourosa?


 

Oh rosa que escarlate:


No mesmo jardim!

 

 

Vinicius de Moraes

  

 

 

© Vinicius de Moraes – Antologia Poética 

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Terça-feira, 26.08.08

Fotografia de Leopoldo Plentz

 Arlequim

 

 

Fotografia - Leopoldo Plentz - Porto Alegre, 2008

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Mariana Ianelli - Leitura em Lisboa

 Callema nº 05 - publicação em novembro de 2008

 

 

 

A poesia de Mariana Ianelli, lida por Paulo José Miranda, em Lisboa. 

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Formada em Jornalismo, mestre em Literatura e Crítica Literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 - Finalista dos Prêmios Bravo! e Jabuti) e Almádena (2007), todos pela editora Iluminuras. Como resenhista, colabora para os jornais O Globo (RJ) e Rascunho (PR). Agraciada com o Prêmio Fundação Bunge de 2007, na categoria Juventude (Poesia), prepara um novo livro de poemas.

Publicado pelo blog Cooperativa Literária

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Aforismo Borgesiano - 36

Psicanálise

 

"É uma ciência alicerçada na vaidade das pessoas. Todos gostam de falar de si mesmos, que sejam levados a sério." 

 

 

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires  Argentina

René Magritte - Madame Recamier, por David - Pintura, óleo sobre tela - 1951

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Bronze

Arcangelo Ianelli

 

 

Escultura - Múltiplo-escultórico em bronze - Arcangelo Ianelli

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Fachadas

Fotografia

 

 

Fachadas de Brasília - Mário Castello - Fotografia

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Segunda-feira, 25.08.08

Luís Augusto Fischer: na Livraria da Vila

Autógrafo imperdível, livro precioso

 

Convite para o dia 28 de agosto

LIVRARIA DA VILA (Lorena - Jardins SP)

 

Para quem aprecia Machado de Assis, para quem admira Jorge Luis Borges, para quem gosta da lucidez, da criatividade e do excelente texto de Luís Augusto Fischer, este é o livro que não se pode deixar de ter e de ler.

Com uma conversa do autor com o crítico literário e jornalista Marcelo Coelho, na noite do lançamento.

 

MACHADO E BORGES, de Luís Augusto Fischer

 

Dia 28 de agosto (quinta-feira), às 19 horas,

na Livraria da Vila - Jardins (Alameda Lorena, 1731 - São Paulo SP

Arquipélago Editorial

 

 

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Saúde

 

 

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Domingo, 24.08.08

Pragmatismo

Auto-retrato falado

Ferreira Gullar

 

De uns tempos para cá, não sei por que, comecei a me perguntar o que nos caracteriza, quem somos nós, brasileiros. E para ver se achava uma resposta fui relembrar como tudo começou.

 

Verifiquei que custou a começar talvez porque nossos descobridores, os portugueses, não contavam com isso: de repente, caiu-lhes no colo uma terra selvagem quando o que buscavam era um caminho mais fácil para as Índias.

 

Tomaram posse da terra, mas a deixaram de lado, até descobrirem que havia aqui uma preciosa madeira de cor vermelha, que os piratas franceses levavam para vender na Europa, sem nada pagar ao rei português. Isso deu origem a guerras sucessivas, que se estenderam por mais de meio século. 
As duas grandes nações indígenas tomaram partido: os tupinambás aliaram-se aos franceses, e os tupiniquins, aos portugueses, até que em 1559, Villegaignon, depois de tentar implantar aqui a França Antártica, se deu por vencido e foi embora. Mas em nenhum momento Portugal deu a entender que via o Brasil como uma extensão de nação portuguesa. Nada disso: pensava apenas em extrair da nova terra o que lhe desse lucro, e só.


 

Trinta e dois anos após a descoberta, o rei português decidiu dividir a costa brasileira em capitanias para impedir que os invasores continuassem a saquear sua propriedade ou até mesmo ocupá-la. Mas quase nenhum fidalgo quis vir para a selva, cheia de mosquitos, serpentes e índios antropófagos. Vieram alguns membros da pequena nobreza, afora os condenados à morte, os degredados e alguns aventureiros, que se tornariam o outro componente do futuro povo brasileiro: desclassificados socialmente, sem família, eles se juntaram às índias e geraram os primeiros mestiços que, criados pelas mães, falavam tupi-guarani e se portavam como indígenas. O número desses mestiços foi crescendo à medida que, com a ocupação do território, os brancos passaram a prear índios e levá-los para trabalhar nas fazendas. Dá para entender por que, até meados do século 18, o idioma de quase todos era a língua geral do Brasil, ou seja, a língua dos índios.

 

 

A certa altura, Portugal se dá conta de que estava se formando aqui um país que pouco tinha de português, e então surgiram decretos proibindo que se falasse tupi-guarani nas cidades e tornando obrigatório falar português.
Ao lembrar esses tempos, verifica-se o total desinteresse de Portugal por oferecer formação cultural à nação que surgia. Pelo contrário, a impressão de jornais e livros era proibida. A atividade intelectual só a exerciam os jesuítas, que, para catequizar os índios, ensinavam-os a ler, mas tudo o que liam era o catecismo.


 

 

Após perceberem que a melhor maneira de preservar os ganhos da coroa com a nova terra era povoá-la, surgiu a necessidade do escravo negro, mais facilmente dominável que o índio. Com a vinda dos negros e a miscigenação que aos poucos se deu, integrava-se no processo de nossa formação o terceiro elemento étnico e cultural. Mas até então, não havia a noção de que nascera aqui uma nação, de que todos pertenciam a uma mesma pátria. Segundo Capistrano de Abreu, isso ocorre pela primeira vez, quando brancos, negros, índios e mestiços se unem para expulsar os holandeses de Pernambuco.


 

Com o crescimento das atividades econômicas, particularmente do comércio, surgiu uma classe média, cujos filhos iam estudar em Coimbra. Conquanto, já desde 1551, os colonizadores espanhóis fundavam uma universidade no México e, em seguida, outra no Peru, no Brasil, isso não ocorre nem mesmo depois da vinda de d. João VI, no começo do século 19. Assim, chegamos atrasados à civilização -o que não foi de todo ruim.


 

Colonizado por nobres de segunda classe e meliantes de primeira, livramo-nos dos fidalgos, o que facilitou a mistura. Mas devemos muito a Portugal: um Portugal pragmático, sem metafísica.

 

Conhece você algum outro rei que, para escapar ao invasor e salvar o reino, tenha fugido com as jóias e os móveis da Corte? Vão-se os princípios, fiquem os anéis.

 

Herdamos essa "objetividade" que às vezes se traduz em sensatez. Aqui, não floresceu uma literatura do absurdo nem onírica, e até a ditadura, que nos oprimiu, torturou e matou bem menos que as dos chilenos e dos argentinos; só o necessário... E, depois, diferente da deles, terminou numa anistia que abarcou todo mundo, perseguidores e perseguidos. O que passou, passou, bola pra frente. É cinismo, amoralidade ou uma concessão realista pela volta à democracia?

 

Berço de Macunaíma, aqui, pelo menos, jamais surgirá um Bin Laden.

 

  

© Ferreira Gullar - publicado na Folha de São Paulo / UOL

 

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Sábado, 23.08.08

(bip) José Mário Silva (bip)

 Atendedor de chamadas

 

(bip) Olá Alfredo, não sei se te lembras de mim, sou a Teresa, aquela miúda avantajada com quem tu gozavas, no terceiro ano de Medicina. Estudávamos juntos em casa do Rodrigo, lembras-te, rodeados pelos calhamaços de Anatomia, eu a ouvir os The Cure e a curtir uma depressão, vocês a beber gin e a fumar ganzas. A verdade é que já não nos vemos há uns anitos e entretanto deixei de ser miúda, embora continue avantajada. Hmmmm, por que é que estou a falar disto? Desculpa, Alfredo, acho que não me sinto à vontade a falar para uma máquina, acabo por nunca dizer as coisas como queria, baralham-se-me as ideias, sabes como é. Conseguir o teu número foi uma odisseia porque não vens na lista, meu safado, mas isso agora não interessa. A razão do meu telefonema é muito simples: queria convidar-te para um jantar dos antigos colegas de faculdade. E adivinha lá quem é a organizadora de tão distinto evento? Acertaste, that’s me, imagina só, a gaja que abandonou o curso no quarto ano para se dedicar à pintura, a degenerada, a ovelha negra. Resumindo, se puderes estar presente, dia 20, às oito da noite, num restaurante do Bairro Alto a confirmar, diz-me qualquer coisa. Espero que o meu número ainda conste da tua agenda. E se me puderes arranjar os contactos de alguma malta, era óptimo. Que é feito do Rodrigo, o maluquinho dos carros? E a Magda, a nossa menina de ouro, a nossa promessa, já estará perto do Nobel? E a Ana Maria? Sempre casaste com ela? Tiveram filhos? Diz-me qualquer coisa. (bip)

 

 

(bip) Alô big boy, daqui fala o Rodrigo. Ouvi dizer que estavas de férias em parte incerta, sem telemóveis e sem morada, longe do mundo civilizado. Só espero é que tenhas escolhido um sítio porreiro, tipo cabana debaixo das palmeiras no Havaii ou um iglo redondinho no pólo Norte. Desde que haja uma rapariga com flores ao pescoço por perto, ou uma esquimó insaciável, estás no Paraíso. Olha, quando chegares apita. Com sorte, ainda te levo a passear na minha nova máquina, um BMW descapotável que é uma bomba que até faz impressão. Esta semana vou fazer a rodagem do bicho para Espanha, a ver se impressiono nuestras hermanas com o fulgor do turbo. Mas depois volto, está descansado. Há muito álcool na tua casa, muita conversa para pôr em dia, muito jogo do Benfica na SportTV. Até breve, um abração. (bip)

 

(bip) Alfredo Manuel, fala a tua mãe. Tu só sabes é apoquentar-me, é o que é. Então havia alguma necessidade de desapareceres assim, de um momento para o outro, sem dizer água vai? Só me dás arrelias, filho. Lá na clínica, disseram que foste de férias. Pois, pois, foste de férias e não me disseste nada. Tanto podes estar no Tibete como nas Ilhas Maurícias, a morrer de sede no deserto ou de fome numa prisão turca. Um dia ainda me matas, é o que é, com as ralações. Sim, que o meu coração anda fraquito, com sopros e coisas dessas, mas tu, que és médico, nem te dás ao trabalho de telefonar-me a perguntar como estou. Andei eu a criar um filho para isto. Ai Alfredo Manuel, Alfredo Manuel, quando é que ganhas juízo? Beijos da mamã. (bip)

 

(bip) Olá querido, fala a Cristina. É só para dizer que adorei, adorei, adorei. Foi tudo perfeito. A viagem, as montanhas, a pousada, a manhã de domingo, a compota de morango no pão quente, os miminhos, os abraços, as palavras, tudo, tudo, tudo. Só não percebo porque não estás em casa há três dias. E porque não disseste nada desde o regresso a Lisboa. Acho que precisamos de beber um café e reflectir um pouco sobre a nossa relação. (silêncio). Isto é, se na realidade tivermos uma relação. Liga-me, por favor. Muitos beijos da tartaruguinha. (bip)

 

(bip) Alfredo, sou eu, a Ana Maria. Falei há pouco com a tua mãe, que também não sabe por onde tu andas. Afinal, o que é que se passa contigo? Na semana passada parecia tudo em ordem e agora está tudo de pantanas. Ou muito me engano ou deu-te outro amock, outra pancada na cabeça, e fugiste para Marrocos, à procura do sentido da vida nos cumes do Atlas. Se assim foi, espero que faças bom proveito da tua loucura e que voltes depressa. Daqui a pouco, só falta a polícia procurar por ti. Aliás, já que vem a talhe de foice, chegaste a pagar aquelas multas de quando andaste com o meu carro, a fazer as mudanças para o novo apartamento? E a miúda, a que dias é que vens buscá-la, afinal? É a tua filha, lembras-te? Como a tua mãe costuma dizer, e olha que nunca pensei dar-lhe razão, tu não tens remédio, Alfredo. Vê se te dignas a aparecer, ok? (bip)

 

(bip) Senhor doutor Alfredo Barros, é o seu contabilista. É só para dizer que surgiram umas dúvidas em relação às suas contas de Fevereiro, nomeadamente no que concerne às facturas de táxi e de refeições. Lembro também que está na altura de passar o cheque do IVA e de pagar mais uma prestação da dívida à Segurança Social. Fico a aguardar uma resposta da sua parte, espero que tão rápida quanto possível. Com licença. (bip)

 

(bip) Alô big boy, é Rodrigo quien habla. Estou a ligar de Valência. A Espanha é um espanto, meu amigo. E as espanholas nem se fala. Digo-te uma coisa: se tivesse que pagar por todos os pecados que cometi nestes últimos dias e nestas últimas noites (sobretudo nas noites), já era meu o lugar mais quentinho do inferno. Isto é que é vida, amiguito. Liberdade absoluta, uma estrada pela frente, dinheiro no bolso. É o Easy Rider em versão de luxo e só para um gajo, estás a ver? Olha, tenho que desligar. Estou num motel com uma pantera a precisar de festas, compreendes. Amanhã sigo para os Pirenéus. Talvez telefone quando chegar a Paris. Tchauzesku até Brejnev. (bip)

 

(bip) Alfredo, é a Cristina outra vez. Assim não dá, Alfredo. Não pode ser assim. Sempre que passamos um fim-de-semana juntos, foges de mim logo a seguir. Da outra vez compreendi, ainda estavas muito fragilizado com a separação, essas coisas todas. Mas desta vez não compreendo. Posso parecer forte e decidida, mas também tenho as minhas fraquezas, as minhas crises de auto-estima. E assim não pode ser. Já fui abandonada demasiadas vezes e não quero entrar noutra espiral de sofrimento, entendes, não quero. Pensa nisto tudo e fala comigo. Depressa, está bem? Um beijo. (bip)

 

(bip) Eh, Alfredo, lembras-te do Joaquim Veloso, o especialista-mor em traqueotomias? Sou eu, rapaz. Estás por cá? Gostava de falar contigo e de saber como é que montaste uma clínica tão próspera em tão pouco tempo. Sabes quem é que me deu o teu contacto? Nem vais acreditar: foi a Teresa, aquela maluca gordinha que abandonou o curso e foi para Belas Artes. Lembras-te? Ela está a organizar uma jantarada com a malta e não pára de falar em ti. Sabes que mais, encontrei-a no cocktail de uma exposição com quadros dela, na galeria Vértice Negro. A série intitula-se Obsessão e é composta por uns trinta e tal retratos de um mesmo homem, pintados em vários estilos: hiperrealista, abstracto, pontilhista, à la Warhol, cubista. Uma coisa muito pós-moderna. E olha, posso estar enganado, mas o homem é a tua cara chapada. Se não nos virmos antes, até dia 20. Um abraço. (bip)

 

(bip) Alfredo, nunca estás quando as coisas se tornam difíceis, não é? Só queria avisar que a menina está com sarampo e pergunta de três em três minutos pelo pai. Fala a Ana Maria, claro, para o caso de já teres esquecido a minha voz. (bip)

 

(bip) Está lá? Está lá? Não estás mesmo em casa, Alfredo? É a Magda. Preciso muito de falar contigo. O Rodrigo morreu. E eu acho que fiz um grande disparate. (Choro convulsivo). Porquê? (bip) 

 

(bip) Olha, Alfredo, daqui é o Joaquim, quatro da tarde, dia 21. Nem tenho palavras. Costumavas dizer que o destino é o mais irónico e cruel dos juízes. Tinhas razão. Em vez do jantar de reencontro, o velório do Rodrigo, estupidamente morto numa curva perto de Bordéus. E tu, o melhor amigo, ausente. Depois, a Magda internada de urgência, com duas caixas de comprimidos no estômago e uma carta em cima da cama, explicando a paixão antiga pelo colega de curso. Parece que aconteceu tudo de uma vez. O Rodrigo metido num caixão; a Magda no hospital, a soro. E até o desaparecimento da Teresa, hoje de manhã. Ela não disse nada a ninguém, limitou-se a partir sem deixar rasto. Mas sabes, eu era capaz de apostar que foi à tua procura. Até sempre. (bip) 

 

 

 

 


 

© José Mário Silva - Efeito Borboleta e outras histórias, edições ardotempo, 2010

Salvador Dali - Telefone-Lagosta - Objeto escultórico, 1936

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Instante Decisivo

Centenário do nascimento de Cartier-Bresson (1908 - 2004)

 

Henri Cartier-Bresson foi um dos pioneiros do foto-jornalismo, fundador da agência Magnum Photos e criador do conceito do instante decisivo: a determinação do fotógrafo em fazer coincidir o cérebro (conhecimento técnico e sabedoria), o olho (a eleição estética) e o coração (a sensibilidade).

 

"Para mim a câmera (no caso, sempre uma Leica) é o caderno de esboços, o instrumento da intuição e da espontaneidade, a mestre do instante. Para representar o mundo é necessário estar comprometido honestamente com o que se captura através do visor, essa atitude requer concentração, sensibilidade e senso de geometria."

- Cartier-Bresson

 

 

M, 1967 - Paris, Fotografia - Henri Cartier-Bresson

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Sexta-feira, 22.08.08

Mia Couto - Recomendado

Venenos de Deus, Remédios do Diabo

 

Texto crítico de Mariana Ianelli

 

Tons mais sóbrios marcam a paisagem de Venenos de Deus, Remédios do Diabo, o romance recém-lançado de Mia Couto. Sob uma névoa que agora batiza e cobre uma vila africana, as intimidades dos habitantes silenciam, debaixo de pequenas mentiras, saberes que não mentem. Cada sonho é um modo de esquivar-se de um presente de poucas distrações. São breves os arredores de Vila Cacimba, porém, dentro da casa de D. Munda e Bartolomeu Sozinho, uma geografia se desdobra em distâncias. Além dos devaneios da memória, que adoecem de melancolia esse universo entre quatro paredes onde se concentra a narrativa, uma epidemia contamina as redondezas da vila, convertendo os soldados em "tresandarilhos".

 

Encarregado de conter a doença, que os moradores do lugarejo atribuem a um "mau-olhado", o médico português Sidônio Rosa esconde outro motivo para estar ali, uma saudade chamada Deolinda. O nome dessa mulata atravessa o livro como uma segunda neblina, uma sombra que acompanha seus personagens, miscigenando lembranças de um passado cujo verdadeiro nome é o de uma terra perdida. Sidônio não esquece o caso de amor que teve com a mulata durante um congresso em Lisboa, e viaja à sua procura, no fundo, para resgatar a si mesmo. Os velhos Bartolomeu e D. Munda tampouco esquecem Deolinda, que partiu "para fora" deixando na casa a ausência de uma filha. Aqui tem início a travessia do romance, nas visitas diárias que Sidônio faz a Bartolomeu, para tratá-lo de tristezas tão venenosas quanto a epidemia da vila.

 

Na casa dos Sozinhos, as janelas estão sempre fechadas. Bartolomeu e D. Munda também se fecham, repetindo a escuridão do ambiente, doentes de "saudade da Vida". Bartolomeu, trancado no quarto, vive de remoer nostalgias da época do colonialismo, quando trabalhava a bordo do transatlântico Infante D. Henrique. A queda do regime colonial inaugurava o fim das viagens, um novo tempo sem "partida nem chegada", por isso os cravos vermelhos de 1974, para ele, nunca foram símbolo de festa, mas sinal de despedida. D. Munda, fechada em si mesma, chora ritualmente todos os dias, e "arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela", na tarefa de enterrar as alegrias. Sidônio Rosa, apesar de médico, não tem a cura para essa doença de "solitária lonjura" dos velhos; ele próprio, aliás, sofre de uma saudade parecida, uma espécie de inexistência para a qual o único remédio é voltar a sonhar. 

 

Em Venenos de Deus, Remédios do Diabo, diferentes identidades se embaralham, dissolvem pressupostos históricos e preconceitos de raça, familiarizam-se na solidão. O estrangeiro não se traduz mais como aquele que vem de fora, senão como quem perdeu seu convívio com a terra – o reconhecimento, em si mesmo, de uma pátria. "Afinal, os homens também são lentos países. E onde se pensa haver carne e sangue há raiz e pedra." Sidônio Rosa se esquiva do abraço de D. Munda para evitar "um trânsito de alma", Bartolomeu Sozinho simplesmente desiste, porque o "amor envelheceu". Amigos de infância, Bartolomeu e Alfredo Suacelência, administrador da Vila Cacimba, agora rivalizam, por razões políticas já cansadas de guerra.

 

Com a mentira a serviço da fábula, a mestiçagem de corpos e de almas, viagens e cartas inventadas, Mia Couto recupera, neste e em seus outros livros, o poder do sonho e a necessidade do mito, questionando noções de pertença e ilusões de pureza de raça. Como disse em sua intervenção na cerimônia do Prêmio Internacional dos 12 melhores Romances de África, para o qual foi selecionado com seu romance Terra Sonâmbula, em 2002: "Os escritores moçambicanos cumprem hoje um compromisso ético: pensar este Moçambique e sonhar um outro Moçambique. (...) Estamos aguardando pelo renovar de um estado de paixão que já experimentamos, esperamos pelo reacender do amor entre a escrita e a nação enquanto casa feita para sonhar. O que queremos e sonhamos é uma pátria e um continente que já não precisem de heróis".

 

 

 

Venenos de Deus, Remédios do Diabo

Mia Couto

Romance - 188 páginas 

Editorial Caminho (Portugal)

ISBN nº 978-972-21-1987-0

Companhia das Letras (Brasil)

ISBN nº 85359125 68

 

 

© Mariana Ianelli - Publicado no Rascunho

publicado por ardotempo às 00:14 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 21.08.08

Mãos da terra - 17

Arcanjo

 

 

Peça de artesanato - Anjo de Presépio para festejos natalinos, em grande formato, talhado e pintado, num bloco maciço de madeira - procedente do interior de Minas Gerais

 

© Mãos da Terra - Mostra de artesanato popular brasileiro

publicado por ardotempo às 23:31 | Comentar | Adicionar

Clarins

Lembrando Caymmi

 

Luis Fernando Verissimo

 

Lembrança remotíssima do Dorival Caymmi: ele na nossa casa. Naquela época, pré-televisão, pré-cadeias de rádio, os artistas viajavam e faziam programas nas rádios locais. Ele foi nos visitar depois de um programa numa rádio de Porto Alegre. Levou o violão e cantou. Lembro de alguém que o tinha ouvido no rádio comentar: ele tem a cara da voz. Aquela cara não podia ter outra voz, aquela voz não podia ter outra cara. Nunca ouvi voz parecida - até conhecer outro baiano, o João Ubaldo Ribeiro. A voz do João Ubaldo é plágio da voz do Caymmi. Agora o João Ubaldo tem um dever para com a nação: falar, falar mais do que fala, e até cantar de vez em quando, pra gente ter a ilusão de que ainda é o Caymmi.

Lembrança não tão remota (só 44 anos) do Dorival Caymmi: Lucia e eu num sítio em Araras emprestado ao jovem casal para sua lua de mel pelo escritor Vianna Moog. Na eletrola, durante toda a nossa estada, rodou um long-play do Caymmi. Faixa mais repetida: Dora. A rainha do frevo e do maracatu. Que contém uma daquelas frases musicais do compositor guardadas no arquivo especial das grandes frases musicais que cada um tem no peito. Para muitos o trecho definitivo do Caymmi é o “ah insensato coração, por que me fizeste sofrer”, da “Só louco”. Para outros é o “e assim adormece esse homem”, de “João valentão”. Pra mim a frase musical declaratória sem igual do Caymmi é “os clarins da banda militar, tocam para anunciar, que a dona Dora agora vai passar...

Nos nossos poucos dias no sitio de Araras os clarins não pararam de tocar e a dona Dora não parou de passar.

______________________________________________________________

Essa questão de julgar ou não os crimes dos anos ruins que agita os militares e divide o governo é, no fundo, uma briga pela nossa História. A quem pertence a História daqueles anos? Quem tem a exclusividade de interpretá-la e o poder de dizer o que aconteceu e o que não aconteceu, ou o que convém e não convém lembrar? Nem a velha sentença cínica de que a História é sempre a versão dos vencedores cabe. No fim quem venceu não foi o arbítrio, foi a democracia, mas a versão democrática da História daqueles anos ainda está para ser escrita. É boicotada por quem devolveu o país aos seus donos mas ainda pretende mandar na sua memória.

_______________________________________________________________

Da série “Poesia numa hora destas?!"

 

Abri a velha gaveta

com meus poemas guardados

- anos de amor rimado

e odes ao espírito alado

- e descobri, abismado

que tinha tudo azedado!

 

 

© Luis Fernando Verissimo 

publicado por ardotempo às 18:19 | Comentar | Adicionar

Marcos Magaldi, fotógrafo

Elevador Lacerda - Salvador, Bahia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fotografia - Marcos Magaldi - Salvador, 2006

publicado por ardotempo às 13:20 | Comentar | Adicionar

Poética

Desenho

 

 

Desenho - Alfredo Aquino - Tinta china e aguadas a pincel sobre cartão Montval 

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publicado por ardotempo às 12:51 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Aforismo Borgesiano - 35

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"Vivemos num tempo muito, muito ingênuo. Por exemplo, as pessoas compram produtos cuja excelência é anunciada pelos mesmos que os vendem. Isso me parece uma prova de ingenuidade."

 

 

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires  Argentina

publicado por ardotempo às 12:37 | Comentar | Adicionar

Mia Couto, por Mariana Ianelli

O Guardador de Sonhos

 

Texto crítico de Mariana Ianelli

 

Nasce mulata a poesia moçambicana, em meados do séc. XIX, no casamento do poeta Tomás Antônio Gonzaga, de sangue luso-brasileiro, com Juliana de Sousa Mascarenhas, da Ilha de Moçambique. A respeito desse rico intercâmbio de culturas falava o escritor Mia Couto, quatro anos atrás, em uma comunicação na Academia Brasileira de Letras. Foi assim que, estreitando laços de vizinhança, entre 1950 e 1970, as vozes de Manuel Bandeira, Drummond, Graciliano Ramos, Jorge Amado e tantos outros aportaram em Moçambique, para semear ali a gênese de uma identidade lingüística ainda carente de matizes que pudessem distingui-la do português colonial.

 

Dessa partilha que transcende a dimensão da língua e toca o fundo de um parentesco mágico, deriva o encontro de alma especialíssimo de Mia Couto com Guimarães Rosa. Em um sertão que desemboca em savana, levanta-se agora, mais uma vez, a flor mestiça, re-encantada em cores de beleza universal. Tudo o que Mia Couto reconhece marcar a experiência de recriação da escrita em Guimarães, podemos também reconhecer em seu trabalho, bem entranhado nos sais da terra moçambicana: o uso de "neologismos, da desarticulação da frase feita, da reinvenção dos provérbios, do resgatar dos materiais da oralidade". Poetas por excelência, ambos são feiticeiros da linguagem, desbravadores de uma pátria mítica em que nos descobrimos antes unidos por um sonho que separados por diferenças de raça.

 

Onde paira a névoa e, desde logo, qualquer prerrogativa de certeza se desfaz, é o sonho justamente que aparece e se propaga como elemento fundador das viagens nos livros de Mia Couto. Em Terra Sonâmbula, a névoa está por toda parte. Uma estrada arrasada pela guerra, a carcaça de um automóvel incendiado, uma misteriosa mala ao lado de um cadáver: eis toda a paisagem, ou quase. Um baobá ali de pé dá sinais de que a terra não definhou completamente, que ainda serve de refúgio. Nesse lugar, a meio de um caminho, instalam-se Muindinga e Tuahir, sobreviventes de um país em luto. Nada se move enquanto eles não enterram seus mortos.

 

Dentro da mala, uma herança os aguarda: os cadernos manuscritos de Kindzu, um menino nascido no seio da guerra, cujo nome é o mesmo "que se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias". Com efeito, as palavras dessa criança lançam raízes e plantam no pequeno Muindinga a memória de um passado que lhe falta, desabrocham no velho Tuahir sua capacidade de sonhar. Começa aqui a viagem. Das águas para a terra, desde as páginas de uma ilíada, os dois andarilhos empreendem sua odisséia da estrada para o mar, traçando, sem saber, um itinerário de volta a casa: o pertencimento a uma nação que por muito tempo esteve esquecida, oculta sob o sono e sob as armas.

 

Tal como Kindzu recebe de um adivinho o "amuleto dos viajeiros" para começar sua jornada e curar-se "das leis, mandos e desmandos", Muindinga e Tuahir recebem a palavra fabulosa que os vai libertando da "miséria de existir pouco". E quanto mais avançam na leitura dos cadernos, mais a paisagem em torno deles se transforma. É a estrada que caminha, enevoada, diluindo os contornos de uma dura realidade, por dentro se fazendo fértil para a colheita do futuro. Povoam-se de árvores as estórias de Kindzu – canhoeiros, massaleiras, cajueiros, djambalaueiros – e o mato à beira da estrada viceja, "num moçambique de verdes". O sagrado se abastece de forças na genealogia poética do filho das águas, da filha do Céu, e já Tuahir passa a sofrer de uma outra fome se o pequeno Muindinga demora a retomar o diário – uma fome que só a fantasia satisfaz. O garoto lê as páginas, o velho lê as folhagens, um alimenta no outro os motivos de estar vivo. No desfile dos espectros da guerra, nas imprecações dos espíritos, põem-se "os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências", e o tempo presente se resolve. Finalmente, os mortos podem ser sepultados pela segunda vez, com as devidas cerimônias.

 

Um cadáver abandonado a céu aberto, um elefante agonizando na savana, em Terra Sonâmbula, são variações do mesmo retrato de um país acometido pelo fantasma da guerra bem depois de a guerra haver terminado. Tuahir diz ao pequeno Muindinga: "eu vivi num tempo em que o amor era uma coisa perigosa. Tu vives num tempo em que o amor é uma coisa estúpida". Órfão de pai e mãe, Muindinga cumpre o destino de escapar de muitas mortes, e ser, como Kindzu, um portador da paz. Com o corpo doente de "mantakassa", o veneno da mandioca apodrecida, é salvo de sua primeira agonia pelo velho Tuahir quando está prestes a ser atirado a uma vala. Sua tarefa tem o peso de uma raça: escapar da terra contaminada e proteger-se das enfermidades da alma, que se abrem nas feridas invisíveis do medo, da loucura, da desesperança. Trata-se também de outra orfandade, esta contra a qual luta o pequeno Muindinga: a perda do encanto das tradições, a derrocada de um país pelo império da violência, o desprezo dos homens por um sentido de comunidade.

 

No livro, a proclamação da Independência de Moçambique torna-se um de seus personagens fantásticos: Vinticinco de Junho, o Junhito, irmão menor de Kindzu. Para ser poupado da morte que o pai lhe sentencia em uma de suas predestinações, Junhito é encerrado em um galinheiro, disfarçado com um saco de penas, e aos poucos vai desaprendendo a falar. Desaparece certa manhã, sem deixar rastro, para ressurgir aos olhos de Kindzu em uma capoeira improvisada dentro de um tanque militar. Apenas concretizada a travessia, na última fábula do diário, Junhito finalmente se humaniza, embalado pelo som de uma canção. 

 

Merece um destaque à parte, no romance, a estória de Nhamataca, filho de um amor durante a "estação das brumas" entre um homem e uma mulher, em margens opostas de um rio, que as águas acabam por unir em uma jangada. Mia Couto narra um episódio familiar no conto "Nas águas do tempo", de Estórias Abensonhadas: um velho que ensina seu neto a enxergar por trás do nevoeiro o vulto que lhes acena um pano branco. O avô segreda a lição: "nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem". Como diz Kindzu, em Terra Sonâmbula: "O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos". É então, para voltar a ver, que o menino guarda suas fantasias no bojo de uma viagem, as páginas do seu diário transformadas em páginas de uma estrada.

 

 

 

 

© Mariana Ianelli - Publicado no Rascunho

publicado por ardotempo às 04:15 | Comentar | Adicionar

Salomés, de Mauro Holanda

Fotografia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Salomés, da mostra "Alma Descarnada" - de Mauro Holanda - Fotografia, 2008 

publicado por ardotempo às 00:13 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 20.08.08

Cadeira Favela

Design

 

 

Favela - Design: Irmãos Campana (Brasil) - Conceito do acúmulo de materiais e reutilização de rejeitos úteis de madeira para estruturação de um objeto utiltário (a cadeira-escultura) - A seriação industrial do móvel é realizada com fragmentos de madeiras novas, com certificação ambiental.

publicado por ardotempo às 13:13 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Terça-feira, 19.08.08

1obrax1frase - 13

 

 

 

 

 

 

"Entre aqui, amigo de coração."

 

EMMANUEL TUGNY

 

 

© Emmanuel Tugny, Éditions Léo Scheer, Paris, 2008

Caixa de morar - Jorge Pardo - Casa da Luz, 2002 - Estrutura articulada de policarbonato colorido. Proposta de mini-espaço de habitação, micro arquitetura, células e caixas de moradia. 

 

publicado por ardotempo às 19:12 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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