Máscara-2 / Ferreira Gullar

Entre o fascínio e o ludíbrio


Ferreira Gullar

Rosto e máscara são temas inesgotáveis. Fui mexer com eles e agora não
consigo me livrar. Eis que, por acaso, deparo-me com um artigo de Roger
Caillois, publicado numa velha "Nouvelle Revue Française" (outubro de 1957),
intitulado "Le Masque".


Como eu, ele também havia sido arrastado a especular sobre o tema, só que
com mais competência e originalidade: partiu da relação entre homens e
insetos, alguns dos quais também "usam" máscara. Caillois se refere,
precisamente, a um tipo de hemípteros chamados "fuegosos" (de fogo), que o
dicionário descreve como "insetos luminosos de países quentes", ou
vagalumes, como os chamamos no Brasil. O principal desses insetos - fulgosa
lanternalia 
- emite uma luminosidade tão intensa que, segundo a lenda, daria
para ler um jornal sob ela. Mas o que importa, para nós, neste caso, é que
sua cabeça se alonga como uma protuberância que fulge igual a uma estranha
lanterna. Os cientistas descobriram, porém, que a função daquela cabeça
desproporcional -que lembra a de um minúsculo crocodilo - é assustar.

 

Mas assustar a quem, se a cabeça, embora monstruosa, é tão pequenina? Caillois, levando em conta o fato de que as asas do inseto são coloridas e lindamente decoradas, conclui que ele, na verdade, se acredita um feiticeiro, oculto sob aquela máscara, e o que pretende não é assustar e, sim, fascinar tanto
as suas vítimas como os seus predadores. Essa é uma tese interessante,
quando mais não seja, porque nos situa na fronteira imprecisa que separa o
medo e o fascínio.


Mas não é a regra. Segundo ele, nas sociedades primitivas, o que importa é
estar mascarado - e fazer medo; ou não estar - e ter medo, muito embora haja
comunidades em que alguns têm medo de uns e fazem medo a outros. Nestes
casos, já se aprendeu que a aparição assustadora do mascarado não é mais que
um truque de alguém que se disfarça para assustar os profanos. Mas é
inevitável que, aos poucos, as máscaras e os outros elementos utilizados
para assustar se tornem com o tempo instrumentos litúrgicos, acessórios de
cerimônia, de dança ou de teatro.

 

 


Ele afirma que talvez a última tentativa de dominação política pelo uso da
máscara tenha sido a de Hakim al-Moquaunâ, o Profeta Velado (ou mascarado)
do Khorassan que, no século 8, derrotou os exércitos do Califa. Hakim
ocultava o rosto sob um véu de cor verde ou, segundo outros, sob uma máscara
de ouro, que jamais tirava. Ele se dizia Deus e garantia que nenhum mortal
poderia ver-lhe o rosto sem ficar instantaneamente cego. Mas alguns de seus
seguidores quiseram provas disso e exigiram que lhes mostrasse a face
oculta. Um antigo texto conta que 50 mil soldados de Moquaunâ se juntaram à
porta do castelo, ajoelharam-se e pediram para ver-lhe o rosto, mas não
receberam resposta. Como insistissem e implorassem, Hakim mandou um servo
dizer-lhes que os atenderia em breve.


Ordenou, então, que cada uma das cem mulheres que o serviam segurasse um
espelho e se postasse em determinada posição no alto do castelo, de modo que
um espelho ficasse refletindo outro, no momento em que o sol brilhasse
intensamente. Quando os soldados chegaram, aquele jogo de espelhos, dada a
luminosidade que provocava, deixou-os cegos por um momento. Hakim então
mandou que lhes dissessem: "Vosso Deus está presente. Contemplai-o". Os
homens, aturdidos, ajoelharam-se.


Mas um dia a farsa se desfez. Hakim, para não se deixar desmascarar,
envenenou suas cem servas, decapitou o seu servo particular, tirou as roupas
e se jogou dentro de uma fornalha acesa.


Essa é a versão de Caillois, mas a de Jorge Luis Borges é outra. Conta ele
que Hakim parecia buscar a morte a cada momento, seja nas batalhas quando as
flechas silvavam em torno de seu corpo, seja abraçando e beijando leprosos
que chamava para dentro do castelo. Mandara cegar as 104 mulheres de seu
harém para que pudessem deitar-se com ele sem lhe ver o rosto proibido.


Ainda na versão de Borges, no ano de 163 da Héjira, Hakim estava cercado por
seus inimigos quando uma mulher do harém começou a gritar que a mão direita
do profeta não tinha o dedo anelar e que os demais dedos não tinham unha.
Dois capitães lhe arrancaram a máscara de ouro, pondo à mostra um rosto
branco como se manchado de lepra e tão deformado que parecia uma careta: uma
úlcera comia-lhe os lábios. Hakim ainda tentou um engano final: "Vosso
pecado abominável vos impede de perceber meu esplendor...
", começou a dizer.
Não o escutaram e o trespassaram com lanças.

 

 

© Ferreira Gullar - publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 02:30 | Comentar | Adicionar