O olhar do escritor sobre seu filme
Charles Kiefer fala sobre o filme criado a partir de seu livro "Valsa para Bruno Stein"
Cinema não é literatura.
Enquanto que um escritor trabalha com palavras, um diretor trabalha, basicamente, com imagens. O escritor faz, sozinho, a sua obra, construindo na própria mente o cenário e a movimentação dos personagens, enquanto que o diretor precisa administrar uma produção coletiva, com todos os problemas que isso acarreta.
O escritor é um solista, num quarto fechado; o diretor é um maestro, diante de uma multidão de atuadores. Assim, não se pode, nunca, comparar livro com filme. Mesmo quando o filme seja extraído de um romance, mesmo quando o diretor utiliza a estrutura narrativa criada pelo escritor. No caso de Valsa para Bruno Stein, o filme, o diretor foi extraordinariamente fiel ao espírito da obra que escrevi. O que resultou, na minha modesta opinião, num filme quase europeu, uma mistura de Bergman com Wenders. Não me causará perplexidade, portanto, se o filme tiver poucos espectadores no Brasil.
A sensibilidade do público brasileiro não está preparada para o andamento sutil e para as complexidades criadas por Paulo Nascimento e sua equipe. Com certeza, o público brasileiro há de preferir as correrias dos Indianas Jones, os tiroteios dos policiais norte-americanos, as facilidades narrativas dos filmes produzidos em série por Hollywood. No entanto, àqueles poucos que ainda buscam no cinema um pouco mais que a simples diversão, o filme de Paulo Nascimento há de agradar, pois é um filme muito instigante.
Ele reproduz os compassos ternários com que estruturei o romance, mas ultrapassa, em muito, minha imaginação em matéria de imagens, paisagens e outros detalhes cênicos. Já nas primeiras cenas do filme, três grandes janelões, que encimam a residência da família Stein, anunciam, semioticamente, que tudo girará em torno de um triângulo, e que a repetição das trincas, tríades e ternos será uma constante no filme, como foi o livro. Estruturalmente, são três núcleos: o da família Stein, o dos empregados da olaria e o da vizinhança (família Wolf).
Como uma valsa, que se compõe de um compasso forte e dois fracos, os personagens se organizam em tríades: Bruno Stein, Arno Wolf e Luís Stein respondem pelo mundo patriarcal, comandado pela ótica machista e proprietária; Nico, Gabriel e Marco representam a ótica do mundo do trabalho; Olga, Valéria e Verônica, representam as transformações sociais sofridas pelo feminino nas ultimas três gerações. A esses três conjuntos principais, articula-se outro, o dos personagens periféricos, capitaneados por Carmen Silva, Yonara Karan e Nicola Siri. Do enredamento desses grupos nasce a delicada e harmônica estrutura montada por Valsa para Bruno Stein, o filme.
A fotografia, dirigida por Roberto Laguna, é de uma beleza extraordinária. Os grandes planos e os closes de rosto dos personagens são magníficos e trabalham, o tempo todo, na construção de uma permanente dialética de fechamento e abertura, reproduzindo no significante o significado geral do livro e do filme, que é a luta interior que trava o velho oleiro entre o desejo e a fé. Enquadramentos, ângulos e tonalidade das cores (em que predomina o amarelo) ajudam a orquestrar, no campo das imagens, as texturas que criei no âmbito das palavras. Assim como o personagem negro (Nico) vai saindo aos poucos da escuridão para a luz, a consciência de Gabriel, o recém-chegado à olaria, com quem contracena, vai se abrindo e compreendendo as muitas relações entre os diversos estratos sociais em jogo naquele espaço e ambiente. Do choque da ingenuidade do "arcanjo" com a acidez crítica do "velho funcionário" vai nascendo a compreensão dos processos históricos. Os três empregados (Marcos Verza, Sirmar Antunes e Leonardo Machado) dão um grande show de atuação, criando uma história tão interessante quanto a principal, a da paixão do sogro pela nora.
Outro espetáculo de atuação é o das três mulheres, Olga, Verônica e Valéria (Araci Esteves, Fernanda Moro e Ingra Liberato), que articulam, de forma suave, mas não por isso menos crítica, os três tipos diferentes de mulheres que povoam o meu romance.
Depois que vi o filme, compreendi o que Walmor Chagas quis dizer quando, na primeira coletiva, no início das filmagens, afirmou: "Bruno Stein sou eu". Sim, Walmor Chagas, na sua atuação perfeita, construiu, efetivamente, um Bruno Stein dilacerado entre o desejo da carne e as ordenações espirituais da fé evangélica, um Bruno Stein que não sairá jamais de nosso imaginário. Walmor Chagas encontrou em Bruno Stein aquele personagem que marca, indelevelmente, uma carreira artística e que coroa uma longa vida de atuações. Ninguém mais será capaz de ler Valsa para Bruno Stein, o romance, sem trazer à memória e ao coração os olhares, o andar, as mudanças de humor e as delicadas transformações que lhe imprimiu esse grande ator chamado Walmor Chagas. Bruno e Walmor, agora, são um só.
Moldar barro, escrever e fazer filme são uma coisa só, na origem etimológica da palavra ficção. Atuar, dirigir e pentear o cabelo são ficções. Afagar, acariciar e fingir, tudo isso é ficção. Sim, tudo é fingo, finxi e fictum, tudo isso é fingere, fingimento. Mas que grande poder tem essa "mentira" que se chama ficção.
O filme inicia com a modelagem do barro, com os ruídos gerados pelos dedos sobre a massa dúctil. Aos poucos, o oleiro vai moldando o universo em que somos jogados, depois de ingressarmos na sala de projeção. Agora, sei que Bruno Stein moldou também a mim, ao Paulo Nascimento e ao Walmor Chagas, pois, como ele mesmo diz, no romance e no filme, "ao ser criada a criatura cria o criador".
Charles Kiefer - escritor Publicado em Zero Hora - 14. 06. 2008