Sábado, 14.06.08

O olhar do escritor sobre seu filme

Charles Kiefer fala sobre o filme criado a partir de seu livro "Valsa para Bruno Stein"

 

Cinema não é literatura.

 

Enquanto que um escritor trabalha com palavras, um diretor trabalha, basicamente, com imagens. O escritor faz, sozinho, a sua obra, construindo na própria mente o cenário e a movimentação dos personagens, enquanto que o diretor precisa administrar uma produção coletiva, com todos os problemas que isso acarreta.

 

O escritor é um solista, num quarto fechado; o diretor é um maestro, diante de uma multidão de atuadores. Assim, não se pode, nunca, comparar livro com filme. Mesmo quando o filme seja extraído de um romance, mesmo quando o diretor utiliza a estrutura narrativa criada pelo escritor. No caso de Valsa para Bruno Stein, o filme, o diretor foi extraordinariamente fiel ao espírito da obra que escrevi. O que resultou, na minha modesta opinião, num filme quase europeu, uma mistura de Bergman com Wenders. Não me causará perplexidade, portanto, se o filme tiver poucos espectadores no Brasil.

 

A sensibilidade do público brasileiro não está preparada para o andamento sutil e para as complexidades criadas por Paulo Nascimento e sua equipe. Com certeza, o público brasileiro há de preferir as correrias dos Indianas Jones, os tiroteios dos policiais norte-americanos, as facilidades narrativas dos filmes produzidos em série por Hollywood. No entanto, àqueles poucos que ainda buscam no cinema um pouco mais que a simples diversão, o filme de Paulo Nascimento há de agradar, pois é um filme muito instigante.

 

Ele reproduz os compassos ternários com que estruturei o romance, mas ultrapassa, em muito, minha imaginação em matéria de imagens, paisagens e outros detalhes cênicos. Já nas primeiras cenas do filme, três grandes janelões, que encimam a residência da família Stein, anunciam, semioticamente, que tudo girará em torno de um triângulo, e que a repetição das trincas, tríades e ternos será uma constante no filme, como foi o livro. Estruturalmente, são três núcleos: o da família Stein, o dos empregados da olaria e o da vizinhança (família Wolf).

 

Como uma valsa, que se compõe de um compasso forte e dois fracos, os personagens se organizam em tríades: Bruno Stein, Arno Wolf e Luís Stein respondem pelo mundo patriarcal, comandado pela ótica machista e proprietária; Nico, Gabriel e Marco representam a ótica do mundo do trabalho; Olga, Valéria e Verônica, representam as transformações sociais sofridas pelo feminino nas ultimas três gerações. A esses três conjuntos principais, articula-se outro, o dos personagens periféricos, capitaneados por Carmen Silva, Yonara Karan e Nicola Siri. Do enredamento desses grupos nasce a delicada e harmônica estrutura montada por Valsa para Bruno Stein, o filme.

A fotografia, dirigida por Roberto Laguna, é de uma beleza extraordinária. Os grandes planos e os closes de rosto dos personagens são magníficos e trabalham, o tempo todo, na construção de uma permanente dialética de fechamento e abertura, reproduzindo no significante o significado geral do livro e do filme, que é a luta interior que trava o velho oleiro entre o desejo e a fé. Enquadramentos, ângulos e tonalidade das cores (em que predomina o amarelo) ajudam a orquestrar, no campo das imagens, as texturas que criei no âmbito das palavras. Assim como o personagem negro (Nico) vai saindo aos poucos da escuridão para a luz, a consciência de Gabriel, o recém-chegado à olaria, com quem contracena, vai se abrindo e compreendendo as muitas relações entre os diversos estratos sociais em jogo naquele espaço e ambiente. Do choque da ingenuidade do "arcanjo" com a acidez crítica do "velho funcionário" vai nascendo a compreensão dos processos históricos. Os três empregados (Marcos Verza, Sirmar Antunes e Leonardo Machado) dão um grande show de atuação, criando uma história tão interessante quanto a principal, a da paixão do sogro pela nora.

 

Outro espetáculo de atuação é o das três mulheres, Olga, Verônica e Valéria (Araci Esteves, Fernanda Moro e Ingra Liberato), que articulam, de forma suave, mas não por isso menos crítica, os três tipos diferentes de mulheres que povoam o meu romance.

Depois que vi o filme, compreendi o que Walmor Chagas quis dizer quando, na primeira coletiva, no início das filmagens, afirmou: "Bruno Stein sou eu". Sim, Walmor Chagas, na sua atuação perfeita, construiu, efetivamente, um Bruno Stein dilacerado entre o desejo da carne e as ordenações espirituais da fé evangélica, um Bruno Stein que não sairá jamais de nosso imaginário. Walmor Chagas encontrou em Bruno Stein aquele personagem que marca, indelevelmente, uma carreira artística e que coroa uma longa vida de atuações. Ninguém mais será capaz de ler Valsa para Bruno Stein, o romance, sem trazer à memória e ao coração os olhares, o andar, as mudanças de humor e as delicadas transformações que lhe imprimiu esse grande ator chamado Walmor Chagas. Bruno e Walmor, agora, são um só.

Moldar barro, escrever e fazer filme são uma coisa só, na origem etimológica da palavra ficção. Atuar, dirigir e pentear o cabelo são ficções. Afagar, acariciar e fingir, tudo isso é ficção. Sim, tudo é fingo, finxi e fictum, tudo isso é fingere, fingimento. Mas que grande poder tem essa "mentira" que se chama ficção.

O filme inicia com a modelagem do barro, com os ruídos gerados pelos dedos sobre a massa dúctil. Aos poucos, o oleiro vai moldando o universo em que somos jogados, depois de ingressarmos na sala de projeção. Agora, sei que Bruno Stein moldou também a mim, ao Paulo Nascimento e ao Walmor Chagas, pois, como ele mesmo diz, no romance e no filme, "ao ser criada a criatura cria o criador".

 

Charles Kiefer - escritor          Publicado em Zero Hora - 14. 06. 2008

 

publicado por ardotempo às 23:58 | Comentar | Adicionar

Porto Alegre, de Vitor Ramil

 Ramilonga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vitor Ramil canta Ramilonga, sobre Porto Alegre - Veja o vídeo

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publicado por ardotempo às 22:41 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

As Negas Malucas de Mia Couto

Entrevista de Mia Couto

Os moradores da Vila Cacimba, onde se passa o novo romance do escritor moçambicano Mia CoutoVenenos de Deus, remédios do Diabo – poderiam viver parede e meia com os da Vila do Meio-Dia, do lendário musical Gota d'água, de Paulo Pontes e Chico Buarque. Poderiam até ter organizado protestos em grupo. Fosse Atlântico o oceano que banha o lado da África onde fica Maputo, Deolinda, a mulata do romance africano, poderia até ter trocado segredos com Esmeralda, a mulata de Mar morto, de Jorge Amado. A familiaridade das histórias contadas pelo escritor, em que um médico, Sidónio Rosa, apaixona-se pela bela Deolinda, em meio à sua conturbada ausência, é instantânea. Faz lembrar a proximidade que há entre Brasil e os países lusófonos, não só pela língua – agora ainda mais, pelo acordo ortográfico – mas também pelos temas. Mia Couto venceu a guerra civil moçambicana e evolui em uma trama repleta de universalidade: incesto, política, religião, dores de saudades.

 

JB: De onde vieram Bartolomeu, Munda, Sidónio Rosa, Deolinda... Como as histórias sopraram-lhe o ouvido?

Mia CoutoNunca sabemos onde se localizam os personagens que criamos. São vozes, são ecos que moram no fundo de nós, moram na fronteira entre sonho e a realidade. No meu caso, estes personagens corporizam alguns fantasmas relacionados com o sentimento do tempo e o facto de, pela primeira, tropeçar naquilo que se chama "idade".

 

JB: A aproximação com a oralidade, neste Venenos de Deus, remédios do Diabo, é o traço mais forte da sua literatura, hoje?

Mia CoutoA oralidade é dominante na sociedade moçambicana. Mas não é o território da oralidade, em si mesmo, que me interessa. È a zona de fronteira entre o universo da escrita e a lógica da oralidade. Essa margem de trocas é que é rica.

 

JB: Você diz que já é mais velho que o próprio país independente. Neste romance, o tema colonial é o pano de fundo das "incuráveis vidas da Vila Cacimba". A colônia deixou de ser personagem?

Mia CoutoA colônia nunca foi personagem. Eu creio que, não apenas na literatura, mas no imaginário dos moçambicanos, esse passado colonial foi bem resolvido. É preciso pensar que a independência de Moçambique se deu como resultado de uma luta armada que criou rupturas de cultura bem sedimentadas.

 

JB: O tema da guerra civil esgotou-se? (Não é uma cobrança, só uma provocação...)

Mia CoutoJá antes a guerra civil se havia esgotado. No O Outro pé da sereia ele já surge.

 

JB: No fundo, você sempre escreve sobre o mesmo tema?

Mia CoutoEscrevi 23 livros, todos tratam de temas diversos. Existe, sim, uma preocupação central em toda a minha escrita: é a negação de uma identidade pura e única, a aposta na procura de diversidades interiores e a afirmação de identidades plurais e mestiçadas.

 

JB: De que maneira percebe o ranço colonial na literatura dos países lusófonos?

Mia CoutoNão há ranço. O passado está bem resolvido.

 

JB: O romancista é o historiador do seu tempo?

Mia CoutoEm certos momentos, sim. Por exemplo, depois da guerra civil os moçambicanos tiveram um esquecimento colectivo, uma espécie de amnésia que anulava os demônios da violência. Os escritores visitaram esse passo e resgataram esse tempo, permitindo que todos tivéssemos acesso e nos reconciliássemos com esse passado.

 

JB: "As formas de expressão usam-se quando se tem medo de dizer a verdade", diz a sabedoria bruta de Munda, personagem do livro. O escritor diz a verdade?

Mia CoutoO escritor é um mentiroso que apenas diz a verdade. Porque ele anuncia como uma falsidade aquilo que é a sua obra.

 

JB: Um brasileiro, ao ler um romance de Moçambique, ganha riquezas sobretudo de linguagem. Você acha que a língua portuguesa tem a perder com o acordo ortográfico?

Mia CoutoAs línguas nunca perdem. Os acordos apenas tocam numa camada epidérmica, num lado convencional que não é o coração do idioma.

 

Entrevista de Mia Couto concedida a Mariana Filgueiras - publicado no JB Online - 14.06.2008

publicado por ardotempo às 21:23 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

1obrax1frase - 07

 

 

 

 

  


 

"A matéria é o buraco de uma sombra."

 

EMMANUEL TUGNY

 

 

© Emmanuel Tugny, Éditions Léo Scheer, Paris, 2008

Pierre Yves Refalo - Série Olivério Girondo - Fotografia, sem data

 

publicado por ardotempo às 21:04 | Comentar | Adicionar

Os autores dos olhos da Arte

Artistas

 

 

 Detalhe de pintura (óleo sobre tela) de João Fahrion

 

 

 Detalhe de pintura (óleo sobre tela) de João Fahrion 

 

 

 Detalhe de pintura (óleo sobre tela) de João Fahrion

 

 

 Detalhe de auto-retrato (óleo sobre tela) de Lucian Freud

 

 

 Detalhe de pintura (óleo e serigrafia sobre tela) de Andy Warhol

 

 

 Detalhe de pintura (óleo e serigrafia sobre tela) de Andy Warhol

 

 

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 Detalhe de pintura (óleo sobre tela) de Paul Klee

 

 

 Detalhe de retrato fotográfico de Pablo Picasso, por Irving Penn 

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Olhos da Arte


 

 

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