Domingo, 01.06.08

Consistência

Texto de António Lobo Antunes

 

 

 

Quem inicia um trabalho sabendo o que vai fazer faz mal. Faz idêntico ao anterior. Faz previsto. Faz aquilo que a preguiça do leitor espera.

 

Escrever

                (ou pintar, ou compor)

                é ser vedor de água. Caminhar com a varinha, à procura, até que a vara se inclina e anuncia

                - Aqui

                e então a gente pára e cava. E existe tudo, lá no fundo, à espera.

 

Escrever

               (ou pintar, ou compor)

                consiste em trazer para cima. Se a gente apanha o que está em cima  faz o que se vê nas livrarias e nas galerias, que apresentam o óbvio. O óbvio tem sucesso enquanto o hoje é hoje. Mal o hoje é ontem ganha ranço. As livrarias vendem livros rançosos, as galerias expõem quadros rançosos. Claro que tranquiliza comprar coisas com prazo de validade. Claro que não são boas, e isso, por estranho que pareça, é tranquilizador também. Se tivermos à frente Tolstoi aqui à esquerda e o jornal à direita, começamos sempre pelo jornal. O problema é que o jornal da semana passada é o jornal da semana passada e Tolstoi o jornal de todas as semanas, de modo que o jornal da semana passada se deita fora e Tolstoi fica.

 

Quero que o leitor esteja comigo. Que venha comigo. Que seja vedor de água também. Por isso recuso antologias, colecções, embaixadas, grupos: prefiro estar sozinho, ao acaso no campo, com a minha vara. Ela há-de inclinar-se, e os meus leitores e eu com ela, enquanto os outros discutem, lá em cima, dissertando sobre os ontens, louvando-se, invejando-se. É que, honestamente, só há grupos onde há fraquezas individuais.

 

                 ...os únicos livros que podem vir a ser bons

                 (e nunca é certo)

                 são aqueles que a gente tem a certeza de não ser capaz de escrever. Só essa luta contra a resistência do material, das frases, das cores, nos pode permitir, com alguma sorte pacientemente conquistada, entrar, nem que seja por um bocadinho, no coração da vida. E só assim a arte é, não apenas a nossa condenação, mas a única possibilidade de salvar-nos, ou seja deitar a cabeça em paz, quando chegar a hora, sem vergonha nem remorso.

 

 

© António Lobo Antunes - "Explicação aos paisanos"

Extraído de Quem me assassinou para que eu seja tão doce? - Dom Quixote, Lisboa, 2008

Pierre Alechinsky - Jeu, Litogravura, 2002

               

publicado por ardotempo às 22:57 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Multidões

Manifestações e quietude

 

Com um intervalo de poucos dias, uma multidão de adeptos da igreja Renascer em Cristo e uma multidão de gays e simpatizantes encheram as ruas de São Paulo, recentemente. Fora a sua proximidade no tempo e o número impressionante de participantes das duas, uma manifestação nada tem a ver com a outra.

 

Não servem para nenhum tipo de sociologia rápida e, juntas, não dizem nada sobre o momento do país e do mundo, além de renovarem nosso espanto com a diversidade humana.


Há paradas gay como a de São Paulo em várias outras grandes cidades e a força das seitas neopentecostais no Brasil também não é novidade.

 

Gente marchando pela sua fé ou pela sua opção sexual está exercendo sua liberdade; desde que as marchas não coincidam e dê confusão, como num encontro de torcidas, nada a comentar.

 

Salvo, talvez, no caso, o fato de as duas manifestações terem um caráter de desafio ostensivo.


Os homossexuais chamam o seu desfile de gay pride, orgulho gay, e
embora o preconceito contra gays seja uma coisa cada vez mais remota o
ressentimento persiste, e até os excessos da parada são uma forma de
compensar os anos de discriminação e segredo. O tamanho da
manifestação dos fiéis da Renascer em Cristo teve muito a ver com o
fato de a igreja ter estado no noticiário, com a prisão dos seus
líderes nos Estados Unidos. Também foi um desafio, uma proclamação de
que a fé e o orgulho não dependem do noticiário, ou da culpa ou
inocência dos líderes. O que também não deixa de ser um exercício de
liberdade.


No fim, só nos cabe especular que outras causas levariam tanta gente
para a rua no Brasil, hoje. Mas isso é o ressentimento falando.


Li num livro fascinante chamado "Mr.Wilson's Cabinet of Wonder", sobre
um museu de excentricidades em Los Angeles, escrito por Lawrence
Weschler, que um armênio chamado Hagop Sandaldjian emigrou para os
Estados Unidos e levou consigo a arte de fazer arte em miniatura, que
aparentemente era uma tradição na sua terra. Mas Hagop não fazia
pinturas em cabeças de agulha — fazia esculturas em cabeças de agulha.
Usando coisas como grãos de areia e fiapos de tecido, com instrumentos
que ele mesmo inventara — alfinetes com rubi abrasivo ou pó de
diamante na ponta — esculpia as figuras de Chapeuzinho Vermelho,
Napoleão, Pato Donald, o Papa João Paulo II todo paramentado e
abanando para os fiéis, Branca de Neve com todos os sete anões, ou
minianões, que depois pintava com pincéis feitos de um único fio de
cabelo.


Weschler descobriu com um filho dele, chamado Levon, que Hagop era
provavelmente o único microescultor do mundo, e que costumava
trabalhar tarde da noite, quando os filhos dormiam, a casa silenciava
e o trânsito nas auto-estradas de Los Angeles diminuía. Então se
debruçava sobre seu microscópio e fazia suas esculturas, segundo
Levon, entre as batidas do seu coração. Como o menor tremor da sua mão
impossibilitaria o trabalho, Hagop não podia arriscar nem a
microvibração do sangue pulsando em suas veias. Sincronizava os
movimentos dos seus alfinetes e pincéis de um só fio com os movimentos
do coração e fazia a sua arte nos rápidos intervalos de quietude
absoluta.


A história do filho provavelmente não é verdadeira mas há uma metáfora
aí, em algum lugar, nesse espaço picotado da criação particular. Essa
idéia de uma quietude perfeita que carregamos conosco sem saber por
que o pulsar da vida nos distrai. Ou a idéia de que sístole e diástole
todo o mundo tem mais ou menos parecido, mas o microinstante no meio é
de cada um.
 

Luis Fernando Verissimo

Foto de Carles Santos

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publicado por ardotempo às 22:54 | Comentar | Adicionar

Mademoiselle canta Brel

Patricia Kaas

 


 

 

 

 

Veja aqui

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publicado por ardotempo às 20:07 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar

Um blog para se ler todos os dias

O blog Bibliotecário de Babel, de José Mário Silva é formidável: tem indicações literárias úteis, pequenas notícias, dicas, resenhas, bons comentários sobre livros e outros assuntos. Um blog para se visitar sempre. É bem bacana.

 

 

 

Ver o Blog

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publicado por ardotempo às 18:35 | Comentar | Adicionar

O Corpo da Luz

(Poema inédito de Maria Carpi)

 

 

 

Na imensidão do universo,

para a luz descer, um corpo basta.

A multidão ficará saciada

e recolherá em cestos e cântaros,

as sobras do incerto. Quando,

porém, um corpo é homem

e outro corpo é mulher, há

uma dolência nas pedras.

Um homem e uma mulher

recíprocos, é a extrema inocência.

 

II

 

Ide, pois, de dois em dois,

externa e internamente, na luz

e na sombra, no direito e no avesso.

E que haja revezamento. Muitas

vezes, o dentro dá os passos

ao aberto e intensifica-se fora.

E o que conduz as circunstâncias,

como um estofo, um propósito

seco, recolhe-se aos aposentos.

Os versos sempre são soltos

e inacabados. Ide, pois, de dois

em dois a servir-lhes de elo.

A vida sempre vem entornada.

Ide de dois em dois, soldar

a bilha quebrada com os próprios

fragmentos. À página um velo

cobre que a dupla andadura aclara.

 

 

 

 

 

© Maria Carpi, (poema inédito) do livro O Corpo da Luz, 2008

Pintura de Gracia Barrios, óleo sobre tela, 2007

 

 

publicado por ardotempo às 18:12 | Comentar | Adicionar

Um brinde ao amigo HERON

Palavraria

 

Ao grande livreiro Luiz Heron da Silva, dono juntamente com seus dois sócios (Carla e Carlos) da simpática e atuante Palavraria, a livraria do Bom Fim, localizada na Rua Vasco da Gama, 165 (em Porto Alegre), que organiza saraus literários, apresentações musicais, palestras e debates como os recentes sobre Maio 68, é palco para concorridos lançamentos de livros, é local de estudos sistemáticos com suas oficinas literárias, recebe diariamente os escritores da cidade, do País e do exterior e ainda vende uns ótimos livros que não se encontram em outras livrarias da cidade.

A este admirável e dedicado profissional, leitor, músico e compositor, um brinde com a melhor que há, pois melhor não há.

 

 

 

A mítica Havana, de Anísio Santiago, proveniente da mítica região de Salinas, Minas Gerais. Foto de Mauro Holanda

publicado por ardotempo às 17:36 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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