ArtenaRua-10
Tigre
Graffiti em muro Autor: Banksy, Londres, Inglaterra UK - 2008
Na questão da imigração, os governos da França e da Espanha insistem em soprar velhas brasas adormecidas.
Os adversários entrarão no ringue, pela primeira vez, no dia 15 de julho. Acontece a partir do dia 15 de julho, em São Paulo, a maior exposição da obra do artista francês naturalizado americano Marcel Duchamp já realizada na cidade (e no Brasil), e que marca os 60 anos do MAM Museu de Arte Moderna de São Paulo.
MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo
Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portão 3 - Ibirapuera -
São Paulo SP - Brasil
De 15 de julho a 21 de setembro.
De terça a domingo e feriados, das 10h às 18h
A exposição, que tem o título Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra "de arte", está focada na produção do artista de 1913 até sua morte, em 1968, período em que, segundo a curadora da mostra Elena Filipovic, se concentra a produção mais radicalmente questionadora do artista.
"Ele pode ter feito muitos trabalhos antes, muitas pinturas, na verdade, mas é nesse momento que ele se torna o Marcel Duchamp em que pensamos hoje", explica Filipovic, que é especializada no artista e conclui este ano um doutorado na Universidade de Princeton (EUA) sobre ele.
Por "Marcel Duchamp em que pensamos hoje", entenda-se o artista que expôs como arte, por exemplo, um urinol assinado e uma roda de bicicleta, ou que desenhou um cavanhaque na "Monalisa", atitudes provocadoras que redefiniram para sempre o conceito de obra de arte.
Para Filipovic, Duchamp (1887-1968) seria o primeiro 'artista-pensador', para quem a própria idéia é a obra de arte. Depois dele, ela prossegue, "o mais importante não é a técnica do artista, mas a idéia contida pela obra", noção que influenciou gerações de artistas posteriores com trabalhos tão diversos como o americano Andy Warhol ou o brasileiro Cildo Meireles.
A última exposição sobre Duchamp em São Paulo, de tamanho mais modesto, aconteceu há mais de 20 anos. Em 1987, a cidade recebeu, numa sala especial da 19ª Bienal Internacional de Arte, uma mostra com 75 obras do artista, com curadoria do colecionador italiano Arturo Schwarz.
A exposição que chega agora traz trabalhos inéditos no país, fundamentais para o pensamento duchampiano, como a réplica do "Grande Vidro", assinada pelo próprio Duchamp nos anos sessenta.
"Duchamp estava sempre pensando no espaço expositivo, e em como criar uma nova obra de arte com a maneira como o trabalho era exibido", conta a curadora, "e o fato de que Duchamp estivesse pensando na conceituação de seu trabalho e do espaço expositivo nessas circunstâncias, ficou meio que à margem da história, pois esses espaços são efêmeros".
A consciência do entorno da obra e sua maneira de exibição são preocupações do artista que a exposição explorou na seleção de trabalhos e na arquitetura da montagem. "A forma de exibição nem sempre é uma preocupação do artista. Ele, às vezes, simplesmente cria 'algo' que é o que é, mas que não considera seu entorno e sua exibição".
"Partimos do princípio de que o próprio Duchamp era um exímio pensador dos espaços de exposição, e era importante que a exposição fosse inovadora em sua maneira de pensar o espaço", avalia Filipovic.
Publicado na Folha de São Paulo - UOL - 29 junho 2008
Possível
"Todo o real começou sendo meramente o possível. No caso das façanhas humanas isso está muito claro. E talvez se pudéssemos penetrar no abismo prévio à divindade, anterior ao próprio tempo, veríamos que o mundo, antes de ser uma dolorosa e compartilhada realidade foi, casualmente, um capricho ou, quem sabe, uma distração da mente divina."
©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina
Mural
Painel urbano com múltiplas intervenções / criação coletiva, Chicago, 2004
Autores: Michael Genovese / Juan Ángel Chávez / Cody Hudson
Somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós
Uma prosa "límpida, quase transparente", onde a naturalidade dos encontros chega a ser sedutora, preenche, segundo José Saramago, as páginas da mais recente obra de Mia Couto, Venenos de Deus, Remédios do Diabo, ontem apresentada em Lisboa.
Escrito num "assalto pelo sentimento do tempo", como o próprio moçambicano descreve, o romance conta a história de um jovem médico português que parte para Vila Cacimba, em Moçambique, em busca de uma mulata por quem se apaixonou sob a "luz branca" de Lisboa. Em terras africanas, o médico depara-se com mistérios e histórias nunca contadas e acaba por partir numa viagem de palavras e reflexões sobre o próprio sentido da vida, durante a qual se confronta com o pensamento de que "somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós". Durante a apresentação da obra, numa livraria da capital, Mia Couto explicou que o tempo - ou a falta dele - era um assunto que precisava e ainda precisa de resolver mas que, não sendo "resolvível", tem de ser transformado em história, em poesia, em "não assunto".
"O estilo a que geralmente um escritor é associado pode ser também uma prisão e pensei que me apetecia desfazer essa amarra. Apetecia-me não saber como escrever, então mergulhei no vazio", conta o escritor, que assinou já cerca de vinte títulos, entre romances, contos, poesia e crónicas. Mia Couto tentou mas José Saramago garante que não conseguiu.
Para o Nobel, não existem diferenças significativas no estilo de Venenos de Deus, Remédios do Diabo e dos restantes livros do seu amigo e "camarada de trabalho", o que acaba por ser uma sorte para quem, como ele, admira todo o percurso do escritor moçambicano.
"Acho que ele fez o mesmo - e isso parece-me uma virtude - contando outra história",afirmou Saramago. "Estou a gostar do livro, a gostar muito. Tem uma prosa límpida, quase transparente. Encanta-me e quase me seduz a forma como o Mia desenvolve situações que envolvem encontros. É tudo tão natural", descreveu. José Saramago referiu que Mia Couto foi um dos escritores que melhor soube reagir às mudanças trazidas pelo 25 de Abril, respondendo com uma enorme "liberdade criativa" às dúvidas que então surgiram entre os autores, habituados a enfrentar a censura.
Publicado no Blog deJosé Saramago
Conversa de fantasmas no museu
Na penumbra noturna do museu de Nova York, apenas as luzes pontuais de segurança testemunham o encontro das duas fantasmagorias. Silenciosamente alheias ao anterior rumor diurno dos sussurros e ao, agora inexistente ecoar dos passos estalados pelos saltos de sapatos dos visitantes nas salas expositivas, antes generosamente iluminadas e apinhadas de gente. No momento existe apenas o silêncio dos túmulos e o frescor da climatização do ambiente controlado.
© Alfredo Aquino - Publicado pela revista GETULIO, São Paulo
A fotografia vernacular
Há dias, o historiador de fotografia Geoffrey Batchen defendia que a fotografia vernacular, a snapshotcaseira, devia entrar nas histórias de fotografia clássicas porque essas imagens "condensam alguns dos nossos valores mais preciosos: as nossas noções de identidade, de relação com os outros". Para Batchen, as relações familiares, por exemplo, podem ser melhor compreendidas se se olhar de outra maneira para esta prática fotográfica que é quase sempre ignorada pelos grandes tratados da imagem fotográfica. E no entanto é a mais praticada.
Com propósitos diferentes dos do investigador australiano, o Museu de Arte Contemporânea de Estrasburgo, na França, abriu a porta às fotografias que estiveram coladas em velhos álbuns de cartão, que se espalharam pelo chão de feiras da ladra ou que andaram escondidas em caixas de sapatos. Instants Anonymes reúne 800 imagens captadas por amadores naquela que é, segundo o comissário Sylvain Morand, a primeira exposição de fotografia vernacular num museu de arte contemporânea.
"Toda a gente pode fazer fotografia. Talvez seja essa a especificidade deste meio", disse Morand ao Le Monde. O comissário justifica a iniciativa da exposição com a ideia de que este género popular "mostra a fotografia na sua primeira natureza". As imagens foram reunidas a partir de arquivos de família, colecções privadas e institucionais. Não estão identificadas com data, local, autor ou qualquer outro dado. O conjunto convoca a ideia de um grande álbum de família e pretende-se que "o observador faça um investimento sentimental" no momento em que estiver a "folhear" estas páginas de "ícones domésticos".
Publicado em Arte Photográphica - 24 junho 2008
Imagem - "Fotografia Anônima", Acervo © Coleção Azevedo Moura
Não importa onde você parou...
Em que momento da vida você cansou...
O que importa é que sempre é possível recomeçar.
Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo...
É renovar as esperanças na vida e, o mais
importante...
Acreditar em você de novo.
Sofreu muito neste período? Foi aprendizado...
Chorou muito? Foi limpeza da alma...
Ficou com raiva das pessoas?
Foi para perdoá-las um dia...
Sentiu-se só diversas vezes?
É porque fechaste a porta até para os anjos...
Acreditou que tudo estava perdido?
Era o início da tua melhora...
Onde você quer chegar? Ir alto?
Sonhe alto... Queira o melhor do melhor...
Se pensarmos pequeno... Coisas pequenas teremos...
Mas se desejarmos fortemente o melhor e, principalmente, lutarmos pelo
melhor...
O melhor vai se instalar em nossa vida.
Porque sou do tamanho daquilo que vejo, e não do tamanho da minha altura.
© Carlos Drummond de Andrade
Foto de Mário Castello
Bolsa Tilápia
Peça de artesanato, bolsa feita de pele de peixe (tilápia), por artesãs-pescadoras do Projeto Mulher Peixe, procedência do Pantanal - Mato Grosso do Sul
© Mãos da Terra - Mostra de artesanato popular brasileiro
Curativos
Intervenção urbana - Adesivos em formato de "curativos" aplicados sobre objetos nas ruas e sobre equipamentos urbanos, avariados.
Autor: ON_LY, Caracas, Venezuela - 2005
Fé
"Tenho observado que as pessoas que têm fé não se sentem particularmente felizes... pelo contrário. Vivem num mundo cheio de escrúpulos, possuem uma idéia terrível sobre a justiça divina e, além disso, esperam por prêmios e castigos que não merecem."
©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina
Pintura (triptico) de Piet Mondrian - Evolução, óleo sobre tela, 1910
Objeto escultórico de Farnese de Andrade
Farnese de Andrade - Objeto escultórico de madeira, com colagens de fotografias, imagens em esmalte e em madeira policromada (técnica mista)
Um conto de José Mário Silva
CAMA
Ela dormia sempre no lado direito da cama
e ele dormia sempre no lado esquerdo.
Ela tinha sonhos agradáveis. Ele, pesadelos.
Decidiram trocar.
Agora ela dorme sempre no lado esquerdo da cama
e ele dorme sempre no lado direito.
De manhã, não se lembram de nada.
Aldyr Garcia Schlee - Escritor
Aldyr Garcia Schlee é um dos escritores mais importantes do Rio Grande do Sul e do Brasil. Romancista e contista de fôlego, várias vezes premiado, escreve em português e em espanhol, mora bem ao ao sul do País, em local bastante próximo à fronteira com o Uruguai (Capão do Leão) e transformou tudo isso (vivência, cenários originais e diversidade cultural) em rica matéria-prima para sua literatura. É o designer criador do mítico uniforme da seleção brasileira de futebol (1953).
ARdoTEmpo: Caro Aldyr Garcia Schlee: você não está morando no eixo Rio-São Paulo, que é o mais influente na esfera cultural e econômica, no país. Como isso está sendo possível e qual a relevância desse fato para sua criação literária?
Aldyr Garcia Schlee: Longe do eixo Rio−São Paulo, um pouco longe até mesmo de Porto Alegre e de Montevidéu, eu me sinto, de certa forma, preservado (como uma múmia − dirá um gaiato).
Aqui, não corro o risco de envolver-me na chamada vida literária; não tenho que arranjar desculpas educadas para excluir-me de lances de marqueteleria. Mas, evidentemente, não fujo do diálogo; nem da briga.
Estou quieto, no meu canto − onde entendo que possa produzir mais e melhor.
Morar como escritor no Capão do Leão não só é possível como é preferível, porque é o lugar que descobri e escolhi para escrever. Já vivi como desenhista no Rio de Janeiro e como jornalista em Porto Alegre; e nessas duas cidades aprendi que, por mais que elas me atraíssem, por mais amigos que nelas fizesse, por mais experiência e realização profissional que elas me oferecessem, eu não podia viver longe de Jaguarão e sem estar às voltas com o Uruguai. No Capão do Leão, perto de Jaguarão, a um passo da fronteira, eu pude encontrar e me dedicar a construir, enfim, o meu mundo literário.
AT: Então, estar no Capão do Leão, nas proximidades da fronteira meridional do Brasil, junto ao Uruguai, significa algo especial para o autor que você é. Como explica isso? É verdade que você escreve tanto em português como em espanhol, com igual fluência?
AGS : Aqui, no sul do Sul, quase sobre a fronteira uruguaio-brasileira, tenho a gostosa e permanente ilusão de estar com meus leitores e personagens dentro de um particularíssimo mundo ficcional − fiel a mim mesmo e a eles −, com a sempre renovada certeza de que assim posso melhor me dedicar honesta e autenticamente à execução de meu projeto literário, atento ao que de melhor se faz por aí afora, mas sempre com a disposição de não querer competir com ninguém.
É verdade que eu também escrevo em espanhol, com muito gosto e aparente facilidade (mas com alguma “desprolijidad” − como dizem meus editores uruguaios). Três de meus livros de contos (El día en que el Papa fue a Melo, Cuentos de Fútbol, Cuentos de Verdades) foram escritos originalmente em espanhol; os dois primeiros, publicados no Uruguai antes de serem editados no Brasil, em português. Don Frutos, o romance, eu o concluí em português; mas já tenho adiantado o seu texto em espanhol (até por razões editoriais, pois é mais fácil, para mim, publicar no Uruguai − onde conto, proporcionalmente, com muito mais leitores).
AT:. Existe uma expectativa grande acerca desse seu último livro, o romance "Don Frutos". O que você pode nos dizer a respeito?
AGS: O romance DON FRUTOS é uma longa e apaixonada narrativa de quase seiscentas páginas, cujo conteúdo vinha me encantando e cuja forma fui tornando possível desde que soube e pude comprovar que o Brigadeiro General Don Fructuoso Rivera, inexcedível caudilho pampeano e primeiro Presidente constitucional do Uruguai, passara os últimos meses de sua vida em Jaguarão, ao regressar para nunca mais ao seu país, na ilusão de uma terceira presidência, depois de um longo desterro no Rio de Janeiro.
Não se trata, evidentemente, de uma biografia de Rivera, mas da tentativa de envolver o leitor numa trama ficcional tão real quanto suficiente para corresponder ao que tenham sido as andanças, as idéias e os tempos de Don Frutos, na recriação de um protagonista verdadeiramente literário, cuja memória possa ser recuperada, recomposta e, talvez, preservada pelo leitor.
A história da edição desse romance já está quase tão comprida quanto a de sua feitura. DON FRUTOS inicialmente ficou encalhado numa grande editora brasileira que, depois de uma eternidade, optou por não publicá-lo − apesar de admitir que “livros como esse são cada vez mais raros no atual panorama da literatura brasileira”; e de reconhecer que o romance impressiona pela qualidade do texto, pelo fôlego do autor, pela reconstituição histórica e pela construção de uma estrutura narrativa consistente.
Que fazer? Agora, o livro aguarda publicação em outra editora do eixo Rio-São Paulo; enquanto a Editora Banda Oriental, do Uruguai, dispõe-se a editá-lo tão logo eu conclua sua versão para o espanhol (que já tem quase 300 das 594 páginas totais).
AT: Você tem outros planos literários imediatos? Existe algum projeto em desenvolvimento? Você pode antecipar algo a respeito ou seria prematuro neste instante?
AGS: Neste instante meus planos literários passam por três livros de contos em execução, o que pode parecer um exagero, mas decorre de um desafio que me impus, depois parar um pouco com o conto e de trabalhar por quatro anos, paralelamente, na feitura de DON FRUTOS e na preparação de minha edição crítica de CONTOS GAUCHESCOS e LENDAS DO SUL, de Simões Lopes Neto.
Estou com um livro de contos quase pronto − que comecei a escrever em português, mas que já está e será concluído em espanhol, pois há alguma pressa, no Uruguai em conhecê-lo. Ainda está sem título e reúne um punhado de histórias escabrosas sobre o pretendido nascimento de Carlos Gardel em Tacuarembó, fruto de estupro e incesto. Por isso, esses eu estou chamando por enquanto de “contos gardelianos”.
Outros dois livros também estão em andamento. Um, mais adiantado, constrói-se em cima de situações, objetos, atividades, ocupações que perderam o sentido e a razão de ser, devido à passagem do tempo, às mudanças sociais e o desenvolvimento tecnológico. O último, que foi o primeiro a ser imaginado e projetado, centra sua atenção em episódios relacionados com o tráfico de mulheres, a prostituição de encomenda e o aparecimento de fulgurantes cabarés e rasteiros puterios ao longo de nossa fronteira.
AT: Você tem uma história pessoal que às vezes se aproxima da legenda constitutiva de uma personagem literária − incluindo a própria história de sua família, nos anos 30; a criação da “camiseta canarinho”, nos anos 50; a posição destemida que teve ao enfrentar a ditadura militar, nos anos 60; a defesa de sua tese de doutoramento, em 1977, doze anos depois de ela ter sido apreendida e recolhida a um quartel. Mas o que mais impressiona quem toma conhecimento de sua biografia é saber que você é um colecionador de importantes prêmios nacionais, seja como desenhista (o Prêmio para a escolha do uniforme da seleção brasileira de futebol), como jornalista (o Prêmio Esso de Jornalismo) e como escritor (pelo menos os Prêmios de duas Bienais de Literatura Brasileira). O que pode contar e explicar dessas suas experiências tão peculiares?
AGS: Não há muito que contar; nem muito do que me orgulhar (talvez haja mais o que justificar). Ganhei meus primeiros prêmios literários − os da Bienal − quando concorrer a prêmios era a tentativa de ser editado que mais se adequava a minha maneira de ser. Ganhando um prêmio, a edição estava praticamente assegurada; sem prêmio, seria preciso oferecer o livro a um editor − coisa que até hoje prefiro não fazer, porque me constrange muito. Hoje, prefiro o constrangimento de negociar com editores ao constrangimento de receber prêmios, muitas vezes de valor e de escolha duvidosos.Por isso, não concorro mais; pelo menos, no Brasil.
Quanto aos prêmios que ganhei como jornalista e como desenhista são coisas do passado; e me fazem rir um pouco.
Vê só: ganhei o prêmio Esso com uma longa reportagem-campanha propondo o aproveitamento do xisto-betuminoso do Rio Grande do Sul como combustível. Houve tal entusiasmo com o assunto que o presidente Jango (que entrevistei, na ocasião), mandou iniciar imediatamente a prospecção do minério; mas imagina que o engenheiro encarregado de iniciar os trabalhos veio para cá, apaixonou-se pela filha do fazendeiro dono das terras; e fim de papo (até hoje há quem me pergunte se tudo não terá passado de uma ironia).
A verdade é que, ironias à parte, do prêmio que ganhei como desenhista restou a famigerada “camiseta canarinho” − tão bonita e tão vilipendiada − que, além de vestir nossa discutível e muitas vezes vitoriosa seleção de futebol, foi transformada em símbolo nacional brasileiro: hoje habita e povoa todos os cantos do planeta, remetendo-nos a uma necessidade de manifestação de “patriotismo” que me desagrada e com a qual não posso concordar.
AT: Você se dedicou por quase cinqüenta anos ao ensino da literatura, tendo atuado até recentemente como professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Letras da PUCRS e como pesquisador do CNPQ. Que importância teve essa experiência na sua carreira literária?
AGS: Mais que professor ou pesquisador − e antes e sempre − eu fui e sou um leitor, um leitor apaixonado pela literatura. Nunca fiz curso de Letras; e só cheguei ao magistério através de um raro e gostosíssimo "exame de suficiência" , na Universidade do Rio Grande do Sul. Minha longa experiência didática, eu a tenho na conta de algo inesquecível e valioso, que talvez tenha me ensinado mais do que eu cheguei a ensinar; e que me deixou uma certeza: é o leitor que faz o escritor.
Penso que, independentemente do conhecimento da literatura, o que importa é o leitor/escritor passar consciente e competentemente da leitura para a escritura, no pleno domínio da palavra − para que possa usar a palavra como uma forma de tocar o leitor/leitor, de fazê-lo sentir, de induzi-lo a imaginar, de ajudá-lo a pensar e recriar o mundo.
Por isso que a literatura não é para diletantes. É para quem tem e sabe o que dizer, tem e sabe por que dizer, tem e sabe quando dizer, tem e sabe para quem dizer. Mas tudo não se esgota num simples processo de comunicação, pois literariamente não basta contar: é preciso mostrar, fazer ver; ou seja: o texto, como forma de concretização da criação literária, deve se impor entre a invenção do autor e a imaginação do leitor − entre aquilo que talvez pudesse ter sido e aquilo que bem poderia ser. Aí, a palavra precisa ser posta a serviço do texto como mediadora entre o inventar e o imaginar, impondo-se e valorizando-se também pela sonoridade que possa oferecer e pela imagem que ajude a construir.
Parece simples: afinal, a literatura se faz com palavras; mas, lidar literariamente com palavras não é coisa vã (como brincava o poeta): é ofício duro e sério − de se dizer, de se redizer, de se desdizer, de se contradizer o que seja, sempre bem e da melhor maneira; é ofício alegre e divertido − de se fazer de conta, de se imaginar, de se admitir que tudo é verdade e que não se está mentindo nem inventando; é ofício apaixonante e mágico − de se recriar o mundo, de se ordenar e desordenar vidas, de se interferir na realidade e na irrealidade.
Entrevista concedida por Aldyr Garcia Schlee a ARdoTEmpo em junho 2008.
© Museu da Pessoa- Entrevista concedida por Yoani Sánchez , desde Havana, ao jornalista Mauro Malin do Museu da Pessoa (escute a íntegra em áudio, gravado em espanhol)
"CUBA ME DÓI" - Yoani Sánchez
Família humilde num bairro popular
Museu da Pessoa – Fale-nos de seu nascimento, por favor.
Yoani Sánchez – Me chamo Yoani Sánchez, tenho 32 anos, nasci na cidade de Havana de uma família muito humilde. Meu pai se chama Willy e é ferroviário. Foi maquinista em estrada de ferro até a crise econômica dos anos 90, quando todo o sistema ferroviário em Cuba entrou em colapso, e agora ele conserta bicicletas. Minha mãe, Maria, também trabalha nos transportes, táxis. Tenho uma família pequena, com uma irmã um ano mais velha.
MP – Os seus pais têm irmãos?
YS – Não. Minha família é muito pequena, porque meus avós são imigrantes da Espanha, das Ilhas Canárias e de Astúrias, chegaram a Cuba no início do século XX. Não tenho uma família grande em Cuba. Também não tenho contato com minha família na Espanha. Em Cuba, a família está muito espalhada e não temos contato.
Nasci num bairro de Havana que se chama Centro Havana. Um bairro que não é turístico, é um bairro muito popular. É a zona de Cuba com mais habitantes por quilômetro quadrado. E nesse bairro muito humilde, com uma mistura de marginalidade e gente do povo, cresci até os 15 anos.
Meus pais são pessoas muito jovens. Minha mãe nasceu em 1957, tem 51 anos. E meu pai tem 54 anos.
MP – Nasceram, portanto, já quase chegando o momento da mudança de regime em Cuba.
YS – Meus pais pertencem à geração das pessoas que eram muito crianças ou que nasceram depois do triunfo da revolução e, de alguma maneira, deram seus melhores anos, seu tempo e sua energia para a construção de um projeto social que nunca chegou a se concretizar tal como o haviam imaginado.
Sempre, desde pequena, gostei muito de literatura. Ler, procurar e colecionar livros. Foi um hobby que herdei de meu pai. Meu pai não tem uma formação universitária, mas é muito bom leitor.
Quando terminei o ensino médio, quis estudar jornalismo. Mas não foi possível. Então, fui para o Instituto Pedagógico e aí estudei dois anos para ser professora de espanhol e literatura. Mas a pedagogia não era meu mundo. Preferia a literatura. E assim, em 1995, mudei para outra especialidade, a de filologia hispânica.
Nesse momento tive meu filho, que agora tem 12 anos e se chama Teo. Me graduei na universidade em 2000, com uma tese chamada “Palabras bajo opressión – Un estudio sobre la literatura de la dictadura en Latino América”. Essa tese me trouxe muitos problemas na universidade e na minha subseqüente vida profissional.
Leitura, de pai para filha
MP – Qual foi sua escola primária?
YS – Eu estudei numa escola primária, regular, normal, que se chamava República Popular Chinesa, num bairro relativamente marginal. Mas fui feliz. No meu primário tive muitos amigos e bons professores. Depois passei a uma escola secundária que se chama Protesta (Protesto) de Baragua(á). O nome vem de uma data histórica importante da Guerra de Independência de Cuba. Depois fiz o pré-universitário numa escola chamada Romênia, num momento em que a Romênia já não era uma república socialista.
MP – A escola deu a você uma base de alfabetização e de interesse pela leitura?
YS – O gosto pela leitura me vem fundamentalmente de meu pai. Na escola aprendi muitas coisas, mas creio que em geral a educação em Cuba é um pouco mais passiva. As pessoas tomam o conhecimento dos livros que o professor dá, mas tem muita importância a orientação que os pais dão em casa. E graças a meu pai, que me interessou muito no mundo na literatura, li muito em menina. Isso me ajudou também a passar longas horas de aborrecimento na infância. A literatura me ajudou a sair desse aborrecimento.
MP – Por que seu pai gosta tanto de ler?
YS – Penso que meu pai gostava de ler também por uma questão de trabalho. Tinha que ficar muito tempo fora de casa, quando trabalhava na ferrovia, talvez longas horas esperando dentro da locomotiva para partir em viagem, e adotou a literatura como divertimento, como compensação para as horas de espera de sua profissão. E tinha uma boa coleção de livros em casa, sobretudo muitos clássicos. Minha literatura da infância não era uma literatura moderna. Era a literatura dos clássicos – Dostoiévski, Vitor Hugo, os clássicos gregos. E era uma época em que a produção de livros em Cuba era maciça. Imprimiam-se muitos exemplares de cada título e também se traziam muitos títulos impressos na União Soviética. Isso fazia com que o preço dos livros fosse acessível para qualquer pessoa. Não é mais assim. Agora os livros são bastante caros, e as pessoas talvez não comprem tantos livros como nos anos 70 e 80.
Adolescência com gosto de privação
MP – Como foi sua adolescência?
YS – Tive uma adolescência feliz, tranqüila. Vivi em Havana, nessa época. Mas o fundamental de minha adolescência foram as aflições materiais, produto da crise econômica cubana. Em 1990 eu tinha 15 anos. Um ano antes havia caído o Muro de Berlim e uns meses depois se desmembrava a União Soviética. E isso marcou toda a minha geração. A mim, particularmente, porque me marcou muito materialmente.
Meu pai perdeu seu trabalho. O trabalho de minha mãe, que era vinculado ao transporte, também sofreu muito devido à questão do petróleo e da ausência de gasolina. Assim, recordo minha adolescência mesclada com as limitações materiais. Saber que não havia muitas coisas, justo no momento em que um adolescente quer começar a exibir a moda, a música, os penteados. As pessoas de minha geração passamos por momentos muito extremos de carestia e de ausência de produtos.
MP – Você teve festa de 15 anos?
YS – Não tive. Em Cuba é uma tradição celebrar a festa de 15 anos, mas na época em que me coube, em 1990, a crise era tamanha, e meus pais não tinham recursos, me disseram que em outro momento se faria a festa, e nunca se fez. Para mim, pessoalmente, não foi um problema, porque as festas de 15 anos em Cuba normalmente são muito kitsch, as adolescentes fazem fotos com roupas, com unhas de plástico, muita maquiagem, e eu nunca gostei disso. Senti, na verdade, um alívio ao saber que não havia festa de 15 anos...
Mãe aos 20 anos, na faculdade
MP – Como foi a sua faculdade?
YS – Foi um período ao mesmo tempo difícil e lindo. Aos 17 anos conheci aquele que até hoje é meu marido, o jornalista Reinaldo Escobar, e comecei na faculdade de pedagogia para ser professora de literatura, mas não gostei do método de estudo: pedagogia em excesso e muito pouco de espanhol e literatura. Então decidi mudar para a especialidade de filologia. E bem nesse momento fui mãe, o que complicou muito as coisas, porque a crise econômica em Cuba permanecia forte, eu tinha um bebê, e tive que fazer um pouco de mágica para poder estudar na universidade e criar meu filho.
MP – Eu queria que você falasse um pouco da maternidade.
YS – Sou uma mãe muito feliz com meu filho. Ele se chama Teo, é um garoto muito esperto, gosta muito de ler, como eu. Herdou o vício da leitura de sua mãe e de seu pai. Sempre encarei a maternidade com muita alegria. Mesmo nos momentos mais difíceis na universidade, quando estava totalmente em desvantagem em relação a meus colegas, que não tinham filhos, de todo modo eu era muito feliz por ser mãe. E agora estou muito mais feliz porque já tenho um filho de 12 anos com quem posso conversar, com quem posso entender-me perfeitamente. Agora que minhas amigas que esperaram tantos anos se decidiram a ser mães, já sou mãe de um filho adolescente. Tenho um filho muito lindo, que parece um taíno cubano – taíno é o nome dos indígenas cubanos que viviam aqui antes da chegada de Colombo...
MP – Os taínos foram praticamente exterminados...
YS – Sim, mas sobraram alguns. Meu marido é descendente de índios cubanos e meu filho parece um taíno, é um taíno típico... muito taíno.
MP – Onde ele estuda?
YS – No secundário. Em alguns dias vai terminar o sétimo grau e ainda não sabe que profissão quer seguir. Gosta muito de literatura, mas também de informática. Quem sabe termina sendo blogueiro, como sua mãe...
Para voltar a morar em Cuba, passaporte destruído
MP – Fale de suas viagens dentro e fora de Cuba.
YS – Gosto muito de viajar dentro de Cuba, mas nós, cubanos, temos muitas limitações para viajar dentro do nosso país. Primeiro porque viajar dentro de Cuba implica longas filas para comprar passagem de ônibus, avião ou trem. O transporte em Cuba está atualmente num estado catastrófico e passou por anos muito difíceis. Por isso viajamos pouco dentro do nosso país, devido a todas essas limitações de transporte. De todo modo, tenho amigos no Oeste, em Pinar del Río, onde vou freqüentemente. Também gosto muito do Centro da Ilha, as montanhas de Escambray, acampei aí com amigos. Em geral, gosto muito da natureza do meu país, das pessoas.
Para fora de Cuba viajei em 2000, para a Alemanha. Tenho muitos amigos na Alemanha, porque sempre gostei da língua alemã, graças a minhas leituras de adolescência, quando li Thomas Mann, Hermann Hesse. Me veio daí muito prazer com o alemão e continuei estudando alemão. Isso fez com que eu tenha muitos amigos em países de língua alemã, como Alemanha, Suíça e Áustria.
Meus amigos, quando terminei a universidade, em 2000, me convidaram para um mês de férias na Alemanha. Foi uma viagem muito importante para minha vida. Estive também na França.
MP – Em que cidades?
YS – Na Alemanha, muitas cidades. Berlim, Frankfurt, Hamburgo, Heidelberg. Na França, Paris.
Em 2002, a asfixia econômica em Cuba e também a sensação de asfixia pela falta de liberdade me levaram a emigrar para a Suíça, graças, igualmente, a amigos que me ajudaram nesse projeto. Lá vivi dois anos. No último ano, com meu filho, que pude levar comigo. Mas depois de dois anos, por problemas familiares, tive que regressar a Cuba.
Voltei em 2004 de uma maneira muito louca. Quando nós, cubanos, vivemos mais de onze meses fora do país, já não podemos voltar a residir em nosso próprio país. Por isso, em 2004, tive que entrar como turista em Cuba e destruir meu passaporte para poder ficar. É algo muito raro. Não conheço muitos casos em que se tenha feito algo similar. Normalmente os cubanos fazem ações desse tipo para emigrar, não para imigrar.
Mas não estou arrependida do que fiz. Aqui tenho meus amigos, minha pequena família e muitos projetos. Então, no momento, sou feliz aqui. Queria viajar em maio, à Espanha, para receber o Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo, mas não me deram a permissão para sair. Para viajar para fora de Cuba, nós, cubanos, necessitamos de uma carta que nos autoriza a viajar, e o governo cubano negou essa solicitação de viagem.
MP – Seu marido viajou com você?
YS – Meu marido também viajou à Alemanha, mas não viajamos juntos.
MP – Em que cidade da Suíça você ficou?
YS – Vivi dois anos em Zurique, que fica na parte alemã.
Universidade da tolerância
MP – Você pode falar um pouco de sua filosofia de vida?
YS – Eu me considero uma pessoa feliz. Tenho uma família creio que muito harmônica. Não gosto muito dos paradigmas, isto é, na minha vida não tenho grandes paradigmas de pessoas importantes ou gente famosa. Ao contrário, sou permanentemente influenciada pelas pequenas pessoas – meus amigos, alguém que compõe uma canção, alguém que me conta algo na rua –, não a influência dos grandes nomes da história ou da literatura, mas a das pessoas anônimas. Essas me influenciam muito mais.
E tenho também algumas premissas na minha vida. Uma delas é cada dia avançar um pouco mais na tolerância. Creio que a sociedade cubana necessita que os indivíduos aprendam a tolerar a diferença, as opiniões que não são similares às suas. Estou nesse aprendizado. Estou agora na universidade da tolerância. É um longo caminho, longo caminho de respeitar o que diz o outro, e acho que falta muito para que me forme e tenha um diploma... (riso). Acho que pelo menos estou no caminho.
A filosofia da minha vida é sobretudo tratar de ser feliz cada dia, com harmonia, com tolerância. Rir. Rio muito. Minha família é muito importante para mim, mas também meu país.
Não me agradam os apáticos e os indolentes. Meu país me dói. Tudo que acontece me dói, e creio que esse é também o combustível para fazer meu blogue. Se nada me importasse, se eu me alienasse de minha realidade, não escreveria as coisas que escrevo. Eu as escrevo precisamente porque Cuba me importa. E me importa porque quero que meu filho e meus netos não tenham que emigrar para poder realizar seus sonhos, ou para realizar seus projetos profissionais e pessoais.
Nessa direção emprego minha energia. Em fazer de Cuba um país onde se possam realizar os sonhos.
Ideologia e política
MP – O que você me diz de ideologia?
YS – Nunca militei numa organização política, nunca, e não creio ter uma direção, uma linha política clara. Isso é algo que a pós-modernidade trouxe, também. Antes, era muito fácil definir as pessoas, os processos, como de esquerda ou de direita. Hoje, já não está tão claro.
Acho que uma das características deste momento é que já não é tão fácil dizer se alguém é de esquerda ou de direita. Eu, pessoalmente, não defino politicamente a mim mesma. Creio ter muita tendência para a questão social, mas fundamentalmente me considero uma cidadã, que emite opiniões, que faz perguntas, que questiona ou reivindica. Mas eu mesma não me defino com uma coloração política.
De todo modo, os temas sociais, a questão das minorias, dos mais discriminados, me interessam sempre muito. Mas a direita e a esquerda já não estão tão claras, já não é tão fácil defini-las. Penso que sou tão pós-moderna como a situação atual.
MP – E a política? Ideologia é uma coisa, filosofia é outra coisa. Mesmo sem ser militante, existe política na sua vida.
YS – Em Cuba, ninguém pode se manter à margem da política. Respiramos política, comemos política. Por quê? Porque a sociedade cubana está muito politizada. Eu nunca pertenci a uma organização política, mas isso não significa que não tenha uma projeção política. Muito bem. Essa projeção política não implica ter uma posição alinhada com o governo, ou contra o governo. Eu me considero – e nisso me defino como um elétron livre – uma pessoa que é da sociedade civil, tratando de descrever como vive e tratando de conectar-se com outras pessoas da sociedade civil.
Claro, para o governo isso é oposição. Mas eu mesma não me defino como uma opositora.
O que acontece é que o espectro de classificação que o governo usa para as pessoas independentes, alternativas, cidadãos com voz própria, ou com critérios próprios, como eu, é muito esquemático. Tudo é branco ou preto. E, para o governo, as pessoas que não aplaudem são opositoras.
Penso que essa saturação política da sociedade cubana, sobretudo nos meios de imprensa, de informação, criou nas pessoas o efeito contrário. Criou apatia, desinteresse. Fez com que muitas pessoas se fechem numa bolha, em suas casas, e não queiram ter contato com o mundo exterior, de tão politizado que está.
Ainda que eu me sinta uma pessoa com muito envolvimento político – gosto de ler as notícias, estar a par do que acontece –, creio que também tenho minhas zonas pessoais onde a política não entra, onde me refugio desse mundo político que normalmente se torna tão incompreensível para o cidadão. E essas grandes zonas onde me refugio da política são a literatura, minha família, meu lar, meus hobbies – a botânica, a jardinagem –, e assim me desligo dessa realidade tão excessivamente politizada.
A mágica de botar comida na mesa
MP – O tema agora é alimentos.
YP – Esse capítulo, em Cuba, repousa fundamentalmente sobre os ombros das mulheres. Depois de 50 anos de projeto de emancipação feminina, na realidade em Cuba continuamos tendo uma estrutura machista da família e da sociedade. Então, as mulheres cubanas têm que fazer cada dia muita mágica, são umas verdadeiras magas, para poder colocar um prato de comida para os filhos, para os maridos, para a família.
No meu caso particular não é assim, porque tenho um marido muito emancipado (riso). Fazemos juntos todas as coisas da casa. Mas muitas mulheres têm uma verdadeira dupla jornada de trabalho. Uma fora de casa, em sua profissão, e outra quando chegam em casa.
A questão da comida é, no momento, uma preocupação geral dos cubanos. Primeiro, porque a maioria dos alimentos necessários para sobreviver não tem um preço correspondente aos salários. Os salários são em pesos cubanos; a maioria dos produtos que se vendem é em pesos conversíveis [pesos conversíveis valem 27 vezes mais do que pesos cubanos]. Essa esquizofrenia econômica, essa contradição monetária faz com que, para as mulheres, seja uma verdadeira angústia diária achar o que colocar na mesa.
Eu não me considero uma pessoa consumista. A crise econômica dos 90 me fez saber que posso viver com muito pouco. Isso é importante. Porque me parece que essa mesma crise econômica criou em muitas outras pessoas um apetite voraz, uma falta de medida na hora de consumir. No meu caso particular, criou o efeito contrário: saber que necessito de muito pouco para sobreviver. Meu marido brinca comigo e diz que eu tenho “alma de faquir”, porque sou uma pessoa que, se tem comida, perfeito, se não tem, não importa, tenho outras coisas que também me dão gosto e me divertem, entretêm.
Mas acho que a angústia principal que passo a cada dia é alimentar meu filho. Acredito que isto gera muita tensão para as mães: ter um filho adolescente, que precisa alimentar-se, porque é magro e pequeno, e saber que materialmente não conseguimos lhe dar tudo de que necessita. De toda forma, como aprendi essa mágica, como todas as mulheres cubanas, quase todo dia posso resolver a questão alimentar com muita, muita criatividade, muita imaginação e muito tempo fazendo fila, muito tempo inventando, muito tempo preparando os alimentos.
Tênue fronteira da legalidade
MP – Você nunca teve a tentação de fazer alguma coisa ilegal?
YS – Nós, cubanos, necessitamos cada dia fazer muitas coisas ilegais para sobreviver. Quase a cada minuto temos que transpor a linha entre a legalidade e a ilegalidade, para tudo. Porque em Cuba o mercado negro é muito importante para sobreviver. Sem o mercado negro, sem os produtos que nos são trazidos à porta de casa, sem os vendedores ilegais, muitas famílias estariam muito mal. Por isso acredito que faço, sim, coisas ilegais, como 99% dos cubanos têm que fazer para sobreviver.
MP – Você nunca teve vontade de ser, vamos dizer, mais rica do que seus vizinhos, ou com a vida melhor, fazendo permanentemente uma atividade ilegal?
YS – O que acontece é que em Cuba há muitas coisas proibidas. Por exemplo, talvez a maioria pense que fazer um blogue, escrever opiniões na internet, pode ser proibido. Portanto, pode ser que sim, que eu faça coisas proibidas e ilegais. Mas não me dedico a nenhuma atividade ilegal que fira minha consciência. Todas as vezes que passo a linha da ilegalidade é para sobreviver, para alimentar minha família. Não estou vinculada a nenhum tipo de negócio ilegal. Acho que me considero impedida de fazer essas coisas também por uma questão de educação e de ética.
De todo modo, na sociedade cubana todas as limitações legais e as proibições fomentam muito a ilegalidade. Por isso, de alguma maneira todos somos um pouco delinqüentes.
Estantes solidárias
MP – E os alimentos para a mente? Quando eu estive em Havana, não tinha muito livro para comprar, era difícil.
YS – Eu tenho uma magnífica coleção de livros em casa, uma biblioteca muito boa. Em parte são livros meus que arrasto desde a infância e outros são livros de meu marido, que também foi acumulando muita literatura em toda a sua vida.
Mas paralelamente a isso há uma espécie de rede de distribuição de livros entre amigos. Decidi há anos que o mais importante para mim é ler os livros. E, uma vez lidos, já não me importa tanto conservá-los. Por isso leio os livros e os passo a outras pessoas.
E assim acontece com muita literatura que em Cuba não é vendida em lugar nenhum ou está proibida. Penso, por exemplo, nos romances de Milan Kundera, que jamais foram vendidos em Cuba. Penso nessa literatura de exilados cubanos pelo mundo, Cabrera Infante, Jesus Diaz, Eliseo Alberto Diego, que nunca se vendem nas livrarias cubanas – e posso ter um problema, ficar malvista se tiver um livro desses na mão e alguém me vir.
Mas graças aos amigos, a essa rede alternativa e subterrânea que muitas pessoas se dispõem a fazer, trocando livros, estou muito atualizada em matéria de literatura internacional. Funciona assim. Os alimentos para a alma também implicam transpor a linha da legalidade.
Informática abafou a lingüística
MP – O que diz da tecnologia? Você disse que montou seu próprio computador.
YS – A informática e a computação são hobbies meus há mais de 14 anos. É um hobby que pouco a pouco foi deslocando minha profissão de filóloga. Hoje me considero mais informática do que filóloga, porque passo mais tempo programando, desenhando páginas web, consertando códigos HTML do que fazendo um trabalho de lingüística.
Faz 14 anos, tive meu primeiro computador, montado com peças do mercado negro, e a partir de então eu, e muitos jovens como eu, soubemos substituir com peças do mercado negro, com invenções, com verdadeiros Frankensteins a ausência dessa tecnologia nas lojas e a impossibilidade material de ter acesso a um computador novo, legal, com nota de compra.
Isso caminhou assim até mais um menos dois meses atrás, quando o governo de Raúl Castro autorizou a venda de computadores legalmente.
Graças a essa inventiva, a essa criatividade, e à ousadia que nós, cubanos, temos para fabricar engenhos tecnológicos, pude desenvolver essa segunda profissão, que é a informática.
Anonimato e protagonismo
MP – Fale-me agora de duas coisas contraditórias: o anonimato e o protagonismo. Primeiro, o anonimato. Você é anônima para os seus vizinhos, você anda no seu bairro pelas ruas e ninguém sabe direito quem você é?
YS – O processo de passar do anonimato em que eu vivia para estar no centro dos meios de imprensa de muitas partes do mundo foi muito rápido para mim. Eu, particularmente, sempre fui alguém que gostava da privacidade, da intimidade e do anonimato. Acho que não há adjetivo que um cidadão receba com mais felicidade do que o ser anônimo. Um cidadão normalmente é anônimo, desconhecido, pequeno.
Essa questão do estrelato, de estar nos jornais e na televisão de quase todo o mundo trouxe algumas mudanças para minha vida. Os jornalistas me perguntam mais, recebo mais telefonemas. Mas creio que na essência sigo mantendo um mundo privado, íntimo, muito fechado.
Eu prefiro o anonimato. O anonimato me permite criar com mais tranqüilidade, observar com mais objetividade. E penso que se os políticos tivessem a intenção de ser mais anônimos, menos espetaculares, os problemas que temos se resolveriam melhor. Quando a política deixar de ser um palco onde se procura brilhar e exibir-se e se converter num grupo de pessoas anônimas que tentam resolver os problemas e administrar um país, acho que muitos dos problemas que temos agora começarão a ser solucionados.
Diante da dicotomia entre anonimato e estrelato ou publicidade, fico com o anonimato, que é sempre muito mais real, mais autêntico, mais espontâneo. E mais duradouro. Porque os palcos, a imprensa, tudo isso passa, e no final cada pessoa fica com si mesma, e ela mesma é o ente mais privado, mais íntimo que possa encontrar.
Sonho: viver numa Cuba plural
MP – Quais são seus sonhos?
YS – Tenho muitos sonhos. Acho que se alguma coisa me caracteriza é que estou constantemente sonhando. Tenho sonhos de viver numa Cuba plural, inclusiva, onde caibamos todos.
Tenho o sonho de escrever um livro, publicá-lo, ver meu nome na capa, isso me agrada muito. Como toda filóloga, toda apaixonada pela literatura, creio que a máxima realização seria começar a publicar meus textos, a escrever, e que os outros leiam o que escrevo.
E os sonhos têm relação, sobretudo, com meu filho. Quero que meu filho encontre um espaço nesta Cuba onde hoje tantos jovens emigram, que ele não tenha que emigrar para ter uma profissão, para poder ter um teto próprio, para poder manter sua família.
E também seguir junto a meu marido e ao grupo com que trabalho no portal Desde Cuba (www.desdecuba.com), fomentando e alimentando a sociedade civil cubana. Sonho que essa sociedade civil desperte, que não se deixe guiar por ideologias nem por líderes carismáticos, e que sinta que o país pertence à sociedade civil, que somos nós os responsáveis pelo que aqui se passa.
Entrevista por Mauro Malin - © Publicado pelo Museu da Pessoa
Crônica - Luis Fernando Verissimo
No filme "La Chinoise", de Jean-Luc Godard, um personagem se vê diante de um quadro-negro em que estão escritos os nomes de todos os principais escritores, compositores, pensadores e artistas da História - e começa a apagá-los, nome por nome, até sobrar só um. Está fazendo uma espécie de purgação intelectual. Experimente fazer o mesmo. Encha um quadro-negro com todos os nomes que lhe ocorrerem, em nenhum tipo de ordem. Uma seqüência pode ser, por exemplo, "Heródoto, Nietzsche, São Tomaz de Aquino e Charlie Parker", outra "Villa-Lobos, Steinberg, Marques De Sade, Platão e Frida Kalo". Quando não sobrar espaço no quadro negro nem para um nome curto ("Meu Deus, esqueci o Rilke!"), comece a apagar. Nome por nome. O importante é não racionalizar. Não estabelecer critério ou hierarquia. Deixar a apagador fazer seu trabalho sem interferência da sua consciência ou da sua emoção. Apenas ir apagando. Você pode descobrir coisas surpreendentes a seu próprio respeito. Nomes que, até aquele momento, faziam parte da sua galeria de veneráveis se revelarão apagáveis, outros serão poupados até quase o fim. E no fim, o nome que sobrar, o único nome que você não apagar, poderá ser a maior revelação de todas. Não será, necessariamente, o nome de quem você considera o mais importante, influente, valioso ou simpático da história das idéias ou das artes. Será apenas o nome que, por alguma razão, você não conseguiu apagar. Depois você só precisará se explicar para você mesmo.
No filme do Godard, o único nome que ficava no quadro-negro era o de Brecht.
De volta a Moscou - Ferreira Gullar
Numa manhã de 1973, em maio, deixei Moscou rumo a Santiago do Chile, com
paradas em Roma e Buenos Aires. Na véspera, à noite, sob a neve, chorando,
despedi-me de Helena para sempre. "Já começo a te esperar", gritou-me ela da
janela, antes de descer para alcançar-me. Abraçou-me e beijou-me sem nada
dizer e voltou soluçando para casa. Dentro daquele avião, eu estava morto,
indiferente ao que fosse acontecer comigo.
Essas lembranças me passavam pela mente, durante o vôo que 28 anos depois eu fazia, de volta à cidade. Havia mais de dez anos já não existia a União Soviética e eu não fazia idéia de que Moscou iria encontrar, depois de tudo o que acontecera com ela e comigo. Tomei o avião da Aeroflot em Madri, em companhia de Roberto Viana, que pretendia filmar-me nos lugares onde com mais freqüência estive durante o tempo que vivi na cidade. Ao nos aproximarmos do destino, como costuma ocorrer nas viagens aéreas, começou a passar um filme, mas sobre a revolução de 1917, um documentário em que aparecia Lênin discursando para a multidão rebelada. Mal acreditei no que via: afinal de contas, o socialismo soviético não se extinguira para dar lugar ao capitalismo?
Essa foi a primeira das minhas surpresas naquela viagem de volta ao passado.
Minutos depois, estava eu de novo no aeroporto Sheremetyevo. A permanência
das coisas sempre me surpreende. Todos esses anos e o aeroporto permanecia
lá! Mas a minha perplexidade foi quebrada pela realidade burocrática: não
queriam deixar que entrássemos com o equipamento de filmagem. Roberto
explicava-se em inglês, alegando que a embaixada russa no Brasil dera a
autorização. De nada adiantou e uma hora depois deixávamos o aeroporto sem o
equipamento. Tomamos um táxi que nos levou para um hotel próximo ao centro
da cidade. No alto dos prédios e nas paredes, os anúncios de Coca-Cola e
McDonald's, onde outrora havia retratos de Lênin.
Na manhã seguinte, a temperatura caiu e começou a nevar. Roberto alugara um
equipamento de filmagem de uma empresa, juntamente com um câmera russo.
Tinham que me filmar na antiga Escola do Partido, onde eu havia estudado e
que era clandestina até para os soviéticos. Ali bacharelei-me em subversão.
Lembrava-me que a escola ficava entre duas estações de metrô: Sokol e
Aeroport, mas essa indicação se tornou desnecessária porque o câmera sabia
onde ela ficava e que era agora um instituto de estudos econômicos com o
nome de Gorbatchov.
Ao descermos do táxi, logo reconheci a entrada do prédio, com alguns degraus
de pedra e duas grossas colunas de um lado e do outro da porta. Mas era
proibido entrar lá. Num guichê, à entrada, um policial fardado pedia o
documento de quem pretendesse entrar. De nada adiantou insistir. Enquanto o
câmera falava com o guarda, eu espiava pelo vidro, tentando rever o hall do
edifício onde deixávamos nossos capotes e "chapcas". Estava irreconhecível.
Deu para ver que o pátio interno fora ocupado por uma edificação. Se a
permanência das coisas me surpreende, a mudança delas me surpreende muito
mais. A filmagem foi feita na escadaria, eu fingindo que entrava no prédio.
De lá, rumamos para a praça Vermelha, onde fica o mausoléu de Lênin, que
nunca me interessei por ver. A neve parara de cair, um sol tímido se abria
sobre o Kremlin e as torres coloridas da catedral kitsch de São Basílio. Ao
chegarmos, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a estátua eqüestre
do general Jukov, ainda no mesmo lugar.
À direita da estátua, um grupo de idosos exibia cartazes onde se lia, em
russo, "viva o comunismo". Roberto teve a idéia de me filmar junto com eles,
o que os alegrou bastante. Um velhinho me perguntou:
- Otkuda vi, tavarich?
- Brasília - respondi.
- Brasília?! Pelé! Carnival!
Em seguida, afastei-me e fui rever a praça dita Vermelha. (A palavra
vermelho em russo é quase a mesma que belo). E veio-me à lembrança a
primeira visita que fiz a ela, quando me perguntei: "Que faz aqui, na praça
Vermelha, tão longe de casa, o filho de dona Zizi?". Não sabia se era sonho
ou realidade.
Minha perplexidade agora era outra. Caminhei até a borda da praça onde
camelôs vendiam bugigangas. Eram na verdade miniaturas de Stálin e Lênin.
Entendi tudo: o cadáver de Lênin não continuava lá como atração turística? E
no avião, não passara, como atração turística, a revolução de 1917? Minha
surpresa não tinha cabimento: o socialismo, com erros e conquistas,
tornara-se parte da história da Rússia, que pretendera extinguir.
Simples, assim.
© Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo - UOL - 22 de junho de 2008
Compromisso
Eu entendo que somente exista a literatura boa e a literatura ruim.
Essa idéia de "literatura engajada" soa-me do mesmo modo que "equitação protestante".
©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecé Editores – Buenos Aires Argentina
Grata la voz del agua
a quien abrumaron negras arenas,
grato a la mano cóncava
el mármol circular de la columna,
gratos los finos laberintos del agua
entre los limoneros,
grata la música del zéjel,
grato el amor y grata la plegaria
dirigida a un Dios que está solo,
grato el jazmín.
Vano el alfanje
ante las largas lanzas de los muchos,
vano ser el mejor.
Grato sentir o presentir, rey doliente,
que tus dulzuras son adioses,
que te será negada la llave,
que la cruz del infiel borrará la luna,
que la tarde que miras es la última.
Poema de Jorge Luis Borges - Alhambra - Granada, 1976
São Paulo / São João
Solstício de Inverno em São Paulo - Fotografia de Mário Castello, São Paulo - 2008
Maria Kodama
Um dia o bisavô de Jorge Luis Borges deixou Moncorvo para ir ganhar a vida na Argentina e décadas depois nasceu aquele que é considerado um dos maiores escritores do mundo. Do bisavô nada se sabe, mas do autor de Aleph quase tudo é conhecido, mesmo que a sua posterior passagem por Lisboa para receber uma condecoração tenha sido breve e nem tenha possibilitado uma "expedição" à terra das origens. Quem conta este episódio é Maria Kodama, que está em Portugal para falar do Borges que conheceu e com quem viveu, hoje, na Biblioteca Nacional ao lado de José Saramago.
Não é o primeiro encontro entre ambos para falar da influência da obra do autor argentino, mas, segundo diz, é mais fácil para Saramago "falar dele porque é um escritor e tem uma forma de pensar e de pensar-se muito próxima da que Borges tinha, até porque são os dois muito perfeccionistas" devido às "formas de ver o mundo, que coincidem, mesmo sendo as reflexões filosóficas sobre a vida num caso autobiográficas [as de Borges] e no outro não". Lamenta que "não se tenham conhecido porque creio que se teriam dado muito bem, tido conversas magníficas e creio que conseguiriam conciliar as suas personalidades".
Quando se lhe pergunta o que vai revelar hoje aos portugueses, responde que ainda não sabe, mas pretende contar situações da sua memória em torno de Borges, "até porque a sua percepção é diferente da dos leitores e muda de leitor para leitor". E ao falar da palestra, Maria Kodama não resiste mais uma vez a lembrar as ligações do escritor ao nosso país: "Gostava muito da literatura épica portuguesa, principalmente de um dos seus autores preferidos, Camões, de quem sabia partes da obra de memória." Quanto aos livros do seu parceiro de palestra, Maria Kodama dá especial preferência ao Ensaio sobre a Cegueira, porque possui "reflexões muito agudas" e não protesta quanto ao estilo saramaguiano porque "para mim é fundamental que exista algo que diferencie o autor e se não o encontro desisto da leitura". "Esse fascínio encontro-o em Saramago, como se fosse uma música, o que já é raro, porque a maioria dos autores pensam que escrever é pôr uma frase a seguir a outra e não reconhecem a diferença entre literatura e uma conversa. Falta-lhes a leitura e isso nota-se".
Como presidente da Fundação Jorge Luis Borges, considera que a sua principal tarefa é captar novos leitores e iniciá-los na leitura da obra, porque "não falta interesse aos estudantes e académicos nas universidades, onde já é muito lido, mais até no estrangeiro - designadamente em França e nos EUA - do que na Argentina". Para Maria Kodama, o mais difícil "é preservar a memória, quando o interesse da obra desperta o interesse em promover inúmeras iniciativas mas só vêm pedir o nosso apoio quando está tudo organizado".
Profunda conhecedora da obra do ex-companheiro, Maria Kodama faz questão de lembrar o quanto Borges "desejava ser reconhecido pela sua poesia e queria poder exprimir-se desse modo - que achava maravilhoso - e acho que o conseguiu em muitos poemas". Quanto à prosa, não nega que a tese existente de que o escritor antecipou o aparecimento da Internet, ao tornar o leitor um participante activo, tem consistência porque "o trabalho que fez nos anos 40 antecedeu o que se fez nos anos 70/80".
Uma história que Maria Kodama não deverá contar na palestra de hoje é como conheceu Borges: "Tive o primeiro contacto com ele aos cinco anos através de uma professora que me ensinava inglês, e como o seu sistema passava pela leitura de poesia leu-me dois dele. Portanto, a nossa primeira aproximação foi de ouvido e enquanto me explicava o que estava a ler - mesmo sendo um poema que falava do amor e de sedução -, fazia-o de um modo imperturbável. Anos mais tarde, conheci-o pessoalmente numa conferência a que um amigo fanático de Borges me levou. Não entendi nada da conferência, mas impressionou-me muitíssimo e entendi que era tão ou mais tímido que eu. Aos 16 anos, comecei a estudar inglês antigo com ele e aí começou uma história complexa..."
Gabriel OROZCO
O outro - A Citröen DS prateada, de Gabriel Orozco - Objeto escultórico – carro cortado longitudinalmente e suprimido em um terço central de seu tamanho original, resoldado e transformado num veículo estreito de dois lugares, com acesso aos dois bancos individuais em linha de fila, pelas quatro portas laterais. Trata-se de um veículo clássico, bastante confortável e extremamente seguro, uma vez que, destituído de seu potente motor, permanece imóvel no local onde está exposto.
Instalação, 1993
A ratificação do Acordo Ortográfico é algo que não agrada muito a José Saramago. Até porque não se deve mexer naquilo que deu "bons resultados". Contudo, o escritor considera que o futuro da língua poderia estar "bastante comprometido" sem a existência deste acordo. Na reedição das suas obras, a mudança de grafia será feita por revisores.
Aos 85 anos, Saramago diz que já não tem paciência para recorrer constantemente ao dicionário nem para regressar aos bancos da escola primária. As reedições das suas obras vão ter de aplicar o Acordo ortográfico. O que lhe parece? E que importância tem? Em 1911 fizemos uma reforma ortográfica, suponho que por decreto, e sobrevivemos ao choque. Que não deve ter sido muito grande porque não se manejam reacções nesse tempo contra o acordo ortográfico. Não deixou rasto. Ao longo da minha vida passei por algumas coisas dessas, que não eram exactamente reformas ortográficas, mas apareciam algumas coisas dessas. Aprendi a escrever a palavra mãe com "e" no final, depois veio uma reforma gráfica e passei a escrever com "i" final. Depois veio outra e passei a escrever com "e" novamente. Agora estamos em algo mais vasto e complexo que não me agrada completamente. Nestas matérias sou bastante conservador: o que está e deu bons frutos e bons resultados não se mexe. Mas tenho de compreender uma coisa: o futuro do português que escrevemos poderia estar bastante comprometido se não houvesse este acordo.
É certo que haverá por parte de muita gente uma certa relutância em escrever acto sem "c" quando até agora escrevíamos com "c". Mas o Brasil tem 200 milhões de habitantes, creio. Podemos com os nossos dez milhões impor à sociedade mundial a nossa norma por isto ou por aqueloutro. Apresentem as razões. Há aí um grupo de pessoas que respeito muito que não estão de acordo comigo. Mas creio que temos de embarcar nesse comboio mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio. Vai começar a escrever acto sem a letra "c"?
Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso. Isto vai até 2015, creio, e vamos ter de actualizar dicionários. Agora que eu tenho 85 anos não vou sentar-me outra vez no banco da escola primária para aprender a escrever. Isso faço eu. Há uns apêndices que caem para outra pessoa, neste caso o revisor, que se encarregará de limpar a prosa.
"Em 1911 fizemos uma reforma ortográfica, suponho que por decreto, e sobrevivemos ao choque", afirma José Saramago.
Publicado no blog de José Saramago