Carlos de Azevedo Moura -
ColecionadorSe alguém disser que a rotina de um colecionador é sempre tranqüila e prazerosa, não conhece de perto os verdadeiros bastidores da atuação onde se move esse ser obstinado e desbravador. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que, por seus hábitos um tanto quanto insólitos, ele tende fatalmente a se tornar um
solitário.
Ao mesmo tempo, percorre itinerários que incluem desde briques, feiras de rua, depósitos de demolição, galpões abandonados, ruínas periclitantes e grotas assustadoras, quase inacessíveis.
Por tudo isso, a melhor coisa que colecionadores podem esperar de suas famílias é o
silêncio. Muitos amigos nem sequer demonstram qualquer interesse quando o nosso personagem discursa, excitado e comovido, ao mostrar orgulhosamente, sua mais recente aquisição. Inclusive, em alguns casos esses mesmos amigos não conseguem esconder sua preocupação com a sanidade mental do companheiro, ao tropeçar nos objetos aglomerados ao seu redor, ou espalhados por sofás, mesas, cantos e corredores. O problema mais grave é que, uma vez iniciada uma coleção e estando o vírus devidamente inoculado, é quase impossível reverter essa tendência, e talvez as raríssimas ocorrências que podem reduzir esse ímpeto passam pela iminência de uma bancarrota, ou uma ameaça real de abandono por parte do núcleo familiar e, cá entre nós,
se um desses fatos ocorrer, eles não serão de todo descabidos.
Minha primeira coleção era dirigida para a busca de lápis de propaganda, coisa das ingenuidades dos anos cinqüenta. Em seguida, e usando ainda calças curtas na época, tornei-me um orquidófilo daqueles que se embrenhavam nos banhados atrás de espécies raras. Na continuidade, iniciei a busca de nuvens de querubins, virgens gordinhas e santos com olhares enigmáticos, às vezes beirando expressões de catatonia. Foi minha fase de arte sacra, mas nem por isso consolidei qualquer tendência de religiosidade; refiro-me às crenças religiosas, porque a outra obstinação, o outro credo, o das coleções díspares, este não arrefeceu.
O início de uma coleção no meu caso sempre ocorre acidentalmente, não há intenção pré-concebida, planejada, com data marcada, ou seguidora de alguma moda. No caso de objetos ligados à imigração, e que compõem a temática da presente mostra, talvez tenha havido um impulso subconsciente, um motivador de origem atávica, na medida em que meus antepassados foram imigrantes.
Posteriormente, por inúmeras vezes meus pais levaram-me a passar fins de semana em regiões da colonização alemã, e algumas vezes na região serrana dos italianos, no sul do Brasil. Isso tudo reforçou a motivação para a temática escolhida.
A primeira peça desta coleção foi uma marquesa de cabriúva, abandonada num velho galpão, na antiga casa de meu bisavô, na localidade de Lomba Grande, distrito de Novo Hamburgo, um dos pólos iniciais da colonização alemã. Depois de limpo e recuperado, o móvel foi reconhecido como tendo sido elaborado por meu bisavô, um caixeiro viajante e marceneiro nas horas vagas. Com essa peça referencial, o ânimo cresceu.
Após uma trajetória um tanto vacilante em busca de uma definição conceitual para a coleção, passei a compreender melhor o que eu realmente buscava, mas ainda dentro de um universo restrito: móveis, pequenas louças, vidros.
Por outro lado, a qualidade agregada aos objetos foi o que me motivou mais, desde as primeiras buscas, nomeando prioridades, portanto, a sua expressão estético-formal. Coisa de arquiteto, sem dúvida. Sei que, ao primeiro olhar, às vezes é difícil avaliar o potencial do objeto em relação a esse quesito. Que “
beleza” se esconde por trás de espessas camadas de pó, sujeira ou repinturas grosseiras? No entanto, com o tempo e com muito exercício, esse olhar torna-se arguto, a ponto de, num relance, distingüir num monturo de trastes, um objeto opaco, desfocado e sujo que, a despeito de seu estado, poderia alcançar a condição de jóia rara ao ver recuperado o “
brilho” de outras épocas.
Reside aí outro prazer, na busca delirante dessas formas “
adormecidas” e que consiste na sua recuperação, e que nos dá por vezes a sensação de ser não apenas de restauradores, mas de reavivadores de “
vidas” temporariamente em “
estado de hibernação”.
É no final dessa etapa que o objeto – capacitado ou não como utilitário, seja adorno ou mera ferramenta, por uma conjunção de harmonia das linhas, volumetria elegante e a beleza das cores e texturas, atribuídas à matéria-prima e ao tempo – uma vez recuperado, pode alcançar o que eu chamaria de “
o estado de arte”. Reconheço que esse é um enfoque extremamente subjetivo e é, nesse processo de transfiguração que, através de uma proximidade planejada, um castiçal antigo, um vidro leitoso e uma velha candeia podem me remeter a uma natureza morta (ou, quem sabe, viva) de Giorgio Morandi. Ou um velho cavalinho de brinquedo, resgatado nas grotas de São Lourenço, após a reanimação, me conduzem à evocação de um Marino Marini.
Arte “
acidental” desse tipo pode perfeitamente se aproximar e tangenciar a arte real, reconhecida, de autoria ilustre. Ou será o contrário? De qualquer forma, isso me encanta.
Sem nunca abandonar a preocupação com a qualidade estético-formal do objeto, a idéia da coleção incorporou um novo fator de coleta,
a busca da diversidade, da variação de um mesmo tema. Exemplificando: plainas, ao conter pequenas variações de utilização, especificações de uso, tipo de madeira empregado em sua elaboração, poderão representar variações sobre o mesmo tema, e reforçar, com isso, a flexibilidade criativa de seus autores. A idéia é que a abrangência não é prioritária, mas a variação de um só tema, essa sim, se sobrepõe à amplitude.
Outro quesito básico – a autoria da peça, como o próprio título da mostra bem sugere, deve ser preferencialmente
anônima e, quando muito, conter uma marca que apenas expressa o orgulho do artesão em ter produzido aquela peça exclusiva.
Por outro lado, um novo acréscimo ao acervo foi dado através da aquisição de fotos antigas, cartões postais de época, alguns documentos, quadros e estampas com dizeres religiosos e éticos, ilustrando costumes da época.
É essencial que o conjunto dos objetos, não apenas fale por si, mas que haja uma vinculação desse mesmo acervo com os seus autores e os usuários na época, do contrário, a conotação e o alcance sociológico da exposição resultarão inócuos. Com essas medidas, o acervo foi progressivamente reforçando seu caráter didático-cultural, já que uma coleção desse tipo não pode continuar adormecida em garagens.
É importante, no entanto, ressalvar que se trata de uma coleção de objetos, fundamentalmente visual, sem traçar conclusões ou apontar teses sociológicas, apenas tentando reproduzir o universo cotidiano da casa do imigrante, seja ele alemão, seja ele italiano. Ao mesmo tempo esperamos que a coleção, por seu caráter plástico-visual, possa despertar a atenção de profissionais e estudantes da área de design, em busca de inspiração para a elaboração de projetos contemporâneos, que possam expressar, através de uma releitura formal, objetos e produtos com as marcas de raízes culturais e autóctones.
Carlos de Azevedo Moura, o colecionador.© Coleção Azevedo Moura