Escrito por Marcelo Coelho
Virou moda, eu diria quase um cacoete em muitos críticos, elogiar este ou aquele poeta pelo seu “rigor formal”. Brinco que há mais rigor na poesia contemporânea brasileira do que no IML.
Claro que João Cabral era rigoroso, medido, centrado, intelectual. Drummond, também, mas de outro jeito. Claro que neles não existe uma palavra fora do lugar, uma explosão fora de hora...
Mas o cabralismo pode ser um defeito, quando serve apenas à timidez. Nesse caso, a influência de Manuel Bandeira é muito mais rara e difícil de ser trabalhada, porque a poesia de Bandeira não depende de se espremer em letra miúda e versinho “rigoroso”; ela se solta com pouca coisa, não precisa de verborragia mas tampouco de aperto encasacado.
Abri por acaso um livro de Elisa Lucinda, chamado A Fúria da Beleza. É a segunda edição, publicada em 2007 pela Record. Sem dúvida, essa escritora, cantora e atriz, nascida em 1958 em Vitória, corre muitos riscos quando escolhe um verso solto, cheio de exclamações, coloquial e bastante “declaratório” quando diz do que gosta, do que não gosta, quando fala de amor, paixão, criança... Mas que importa! “Deus salve as belezas corajosas!” diz ela, e descreve bem, com esse verso, um poema como o que se segue:
Ele
Já começa a beijar o meu pescoço
com sua boca meio gelada meio doce,
já começa a abrir-me seus braços
como se meu namorado fosse,
já começa a beijar a minha mão,
a morder-me devagar os dedos,
já começa a afugentar-me os medos
e dar cetim de pijama aos meus segredos.
Todo ano é assim:
vem ele com seus cajás, suas oferendas, suas quaresmeiras,
vem ele disposto a quebrar meus galhos
e a varrer minhas folhas secas.
Já começa a soprar minha nuca
com sua temperatura de macho,
já começa a acender meu facho
e dar frescor às minhas clareiras.
Já vem ele chegando com sua luz sem fronteiras,
seu discurso sedutor de renovação,
suas palavras coloridas,
e eu estou na sua mão.
Todo ano é assim:
mancomunado com o vento, seu moleque de recados,
esse meu amante sedento alvoroça-me os cabelos,
levanta-me a saia, beija meus pés,
lábios frios e língua quente,
calça minhas meias delicadamente
e muda a seu gosto a moda de minhas gavetas!
É ele agora o dono de meus cadernos, meu verso, minha tela,
meu jogo e minhas varetas.
Parece Deus, posto que está no céu, na terra,
nas inúmeras paisagens,
na nitidez dos dias, no arcabouço da poesia,
dentro e fora dos meus vestidos,
na minha cama, nos meus sentidos.
Todo ano é assim:
já começa a me amar esse atrevido,
meu charmoso cavalheiro, o belo Outono,
meu preferido.
Bem, há um enorme controle e “rigor”, se quisermos, na maneira com que Elisa Lucinda deixa a metáfora meio escondida, meio sugerida, ao longo do poema, para revelá-la só no final.
Há um certo “passadismo”, também, nesse romantismo das estações, que me lembra um poeminha francês sobre o mês de Abril, que volta feliz “comme un prince acclamé après un long exil”. Ao mesmo tempo, que poder de transformação em dizer desse amante “que varre minhas folhas secas, que vem quebrar meus galhos”...
Por vezes, a inspiração fraqueja: “inúmeras paisagens”, “discurso sedutor de renovação”, são frases de uma triste vagueza comparadas à precisa e feliz lembrança do “muda a seu gosto a moda das minhas gavetas”.
Publicado no Blog de Marcelo Coelho