Quinta-feira, 10.04.08

OS ALEMÃO - 3






Hier sprechen wir Brasilianischen


                 


O pai de meu pai viera para o Brasil num navio da Hamburg-Amerika Linie, em 1888, para instalar sobre um trapiche, às margens do arroio São Lourenço e a poucas quadras da Lagoa dos Patos, uma Exporthäusern für Kolonialprodukte, quem sabe um estaleiro, quem sabe uma empresa de navegação.

Imagino que trazia uma roupa preta e o cavanhaque aparado – como nos retratos em que o conheci – além de bastante dinheiro para ele mesmo buscar seu “lugar ao sol”, em vez de servir ao Kaiser e garantir a expansão colonial alemã.

Vovô morreu moço, aos 5l anos, depois de uma ponta de lápis lhe penetrar na virilha, numa queda, e apesar de ser levado às pressas para Pelotas, em busca de socorro.

Era o fim da I Guerra Mundial e ele deixava para cada filho um barco de carga e, para toda a gente, a lembrança de uma seriedade casmurra que só escondia, nos olhos líquidos, a risonha zombaria com que se revelava um alemão incapaz de plantar batatas, incapaz de usar tamancos, incapaz de dirigir uma wagenkollonen – mas capaz de tomar banho todos os dias (e que propalava com letra gótica em sua porta:

HIER SPRECHEN WIR BRASILIANISCHEN).

Vovó Anna havia anotado na última página de seu Gesangbuch (editado em Sttetin, em pomerano), o nome e a data de nascimento de cada filho. A letra é boa, mas a tinta está apagada. 

Leio: Karl Ern..... Leonard, 24/3/1893; Emil Klaus Joa.... , 28/7/1895; Wilhelm Konrad Joseph, 25/../1897; Gustav Ferdinand Otto, 2/../1899; August Friedrich Michael, 5/l/1907.

Esses cinco, quando estava terminando a I Guerra Mundial já eram
 
Carlos

Emílio
Guilherme
,
Gustavo
e
Augusto
, meu pai.
Tinham casado com brasileiras (dois deles com castelhanas de Jaguarão); tinham levado para a fronteira as primeiras indústrias, o comércio de exportação e importação, a prestação de serviços e as primeiras granjas de arroz; tinham vivido com gosto e arrebatamento cada instante de sua multíplice e fascinante aventura.


                  


Seus iates – o Portimão, o Protetor, o São Domingos, o Aníbal I, o Aníbal II (cuja âncora guardo amorosamente como relíquia e prova de um inacreditável e irrecobrável tempo de prodígios) – foram apenas começo e fim de tudo: foram rolos de fumaça se erguendo lentamente, e inexoravelmente se perdendo no ar – no retrato de vovô com seu cachimbo de porcelana e seu transcendente intento bávaro de Shiffen mit Dampf; ou lá longe, na última curva do rio atravessado pela ponte cinzenta e pelos trens insaciáveis. 

Seus iates navegaram por toda a região da Lagoa dos Patos e da Lagoa Mirim, arribando a portos estabelecidos ou estabelecendo atracadouros novos, cada qual com suas cargas de ilusões e seu mestre, seu motorista, seu marinheiro, seu moço de convés e seu cozinheiro, exatamente como haviam feito no Rio dos Sinos, no Jacui, no Caí, no Taquari, os barcos de outros alemães – Blauth, Becker, Michaelsen, Schilling, Arnt. Mas tudo acabou como um sonho que se desvanece.


                     



– continua                                              Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
publicado por ardotempo às 19:43 | Comentar | Adicionar

Arcangelo IANELLI - Escultura






















Arcangelo Ianelli
- Escultura pública em mármore de Carrara,
sobre espelho d'água - São Paulo
publicado por ardotempo às 19:34 | Comentar | Adicionar

Gravura em Metal - MIR

Maria Inês Rodrigues

                             

MIR - Sem Título, Gravura em metal, sobre papel, 2006
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publicado por ardotempo às 18:31 | Comentar | Adicionar

OS ALEMÃO - 2




 


Os velhos levados presos por não falarem português


D
epois das férias, retornei a Jaguarão, onde havia nascido, onde estudava e onde morava com minha vó materna, a um passo do Uruguai. Não sei se cheguei a ter vontade de contar tudo, tudo o que eu tinha visto e feito; mas, por qualquer razão que na época não poderia adivinhar, acabei guardando tristemente comigo, em dificultoso segredo, cada alegria, cada descoberta, cada novidade de Santa Cruz.

                                  

Talvez achasse que não acreditariam em mim, talvez não quisesse me intrometer em assunto de gente grande.  De modo que nunca revelei nada, mesmo que fosse sobre as bolachinhas de mil formas, os bichinhos de marzipã e a ávore de Natal enfeitada com maçãs de verdade; eu nunca confessei palavra sobre os velhos levados presos rua afora ou os cânticos natalinos ou o bolo de chocolate de vovó Anna – eu, que ninguém sabia que havia viajado num  automóvel sobre trilhos, dormido em acolchoados  de pena de ganso e morado dentro de uma fábrica de balas!...

Em Jaguarão, os dois primeiros alemães que apareceram foram um fotógrafo e um dentista, prático licenciado. Depois, com seus barcos a vapor, com seus ternos elegantes e com suas manias de grandeza que acendiam de inveja os fazendeiros locais, chegaram meu pai e seus irmãos, trazendo rio acima cimento e ferro para a grande ponte, trilhos e dormentes para a ferrovia; as quais haveriam de unir Brasil e Uruguai e de marcar o início do longo e agoniado declínio da navegação fluvial e lacustre.


                


Eu ainda não era nascido, mas me lembro bem, porque está num conto meu.

Desde que chegaram os homens, desde que se abriram as picadas, desde que vieram os dormentes e trilhos as coisas foram mudando demais. Eram gentes de pêlo variado, de modos estranhos, de toda a laia e para todo o gasto; eram medidas e escavações, picaretas e pás, campo rasgado e mato derrubado; eram toras pesadas enchendo os iates, eram aquelas talas de ferro luzindo e depois enferrujando, enferrujando...


               


Foi o verão mais quente que já se teve; e foi o dia mais quente de todos os verões, aquele 1º de janeiro de l93l da inauguração da ponte: as pessoas debruçadas na amurada, olhando o rio bem de cima; a água limpa da estiagem passando em desordenados redemoinhos; embaixo, barcos enfeitados, as chatas, os iates que haviam carregado ferro e cimento, cimento e ferro, cimento e ferro, meses a fio, para a construção; e, bem embaixo, na sombra sob as alfândegas, o mormaço, a umidade, o entulho, o cheiro de bosta fresca...


                 



– continua                                                  Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
publicado por ardotempo às 03:52 | Comentar | Adicionar

Aforismo Borgesiano - 12

Memória

Toda memória é, de algum modo, uma antologia.

                                                     


©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecê Editores – Buenos Aires  Argentina
publicado por ardotempo às 03:17 | Comentar | Adicionar

Arthur Luiz PIZA

                                      

Arthur Luiz Piza - Relevo de lâminas de metal, pintadas em negro,
sobre fragmento de carpete de sisal, circa 80
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publicado por ardotempo às 01:17 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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