Da Literatura:

Em 2002, quando publicou
The Messenger, o
australiano
Markus Zusak (n. 1975) tornou-se um dos mais aclamados autores da sua geração. O livro recebeu quatro prémios, e o reconhecimento de Zusak, que aos 27 anos publicava o seu terceiro romance, rompeu a barreira da língua inglesa.
The Messenger continua inédito em Portugal, mas uma obra posterior,
A Rapariga que Roubava Livros, chegou agora às nossas livrarias
. (NE: A menina de roubava livros, no Brasil)
Zusak, filho de mãe alemã e pai austríaco, nasceu em Sydney, na Austrália. Os pais guardaram recordações da Alemanha nazi, e ele habituou-se a conviver com essas memórias. Nada lhe é estranho: nem os paradoxos da juventude hitleriana, nem a ignomínia da Solução Final, nem as cidades devastadas pelos aliados no fim da guerra.
Não admira que a acção do romance esteja localizada em
Molching, subúrbio pobre de Munique, durante a II Grande Guerra. (Na realidade, Zusak está a falar da cidade de Olching, a meio caminho de Munique e do campo de Dachau.) É lá que vive Liesel Meminger, a rapariga que roubava livros. Em Janeiro de 1939, ela e o irmão Werner iam ser entregues a uma família de acolhimento. Os pais, comunistas perseguidos pelo III Reich, não os podiam ter com eles. Mas Werner morre na viagem, ao colo da mãe, e Liesel foi entregue sozinha aos Hubermann. De um momento para o outro, ficara sem o irmão:
"um intenso estertor de tosse" e,
ZÁS, nada. Em casa dos Hubermann, na rua Himmel, aprenderá a inventar maneiras de provar a si própria que continua viva. A mãe adoptiva, Rosa Hubermann, não esconde o desprezo que sente por ela, a quem trata por
saukerl (este e outros vocábulos alemães não foram traduzidos;
saukerl equivalerá a porcalhona), mas o marido, Hans, pintor e acordeonista, é um homem bom. Ele vai ajudar Liesel a sobreviver no ambiente hostil de Molching.
Liesel roubava livros para, entre outros motivos, evitar que os alemães os queimassem:
"Os alemães adoravam queimar coisas. Lojas, sinagogas, Reichtags, casas, artigos pessoais, gente assassinada e, é claro, livros. Eles apreciavam realmente uma boa queima de livros — o que proporcionava às pessoas parciais em relação a estes a oportunidade de deitar mão a certas publicações que não obteriam de outra maneira". Roubou o primeiro no dia 13 de Janeiro de 1939, no dia em que o irmão foi a enterrar. Caído na neve,
O Manual do Coveiro foi esse livro inaugural. Tinha nove anos, quase dez, mas não sabia ler. Pegou nele sem saber do que tratava, o primeiro de muitos. Deixou passar 463 dias e, a 20 de Abril de 1940, roubou o segundo,
O Encolher de Ombros, um livro azul com letras vermelhas que foi parar às suas mãos
"no fim de uma tarde recheada de muita excitação, muita maldade bela, um tornozelo ensopado em sangue, e uma bofetada de uma mão em que ela confiava".
A história está pontuada de episódios que, na sua aparente fortuitidade, registam com extrema subtileza o quotidiano da retaguarda alemã. Sirva de exemplo a admiração que Rudy Steiner, um amiguinho de Liesel, nutria pelo americano Jesse Owens, o negro que venceu as provas de atletismo nas Olimpíadas de Berlim, em 1936. Um dia, Rudy mascarra-se com carvão, correndo pelas ruas de Molching para escândalo de quem assim o viu. Outro apontamento curioso é o que relaciona a extrema solidão de Max Vandenburg, o judeu que a família Hubermann escondeu na cave, com a de Liesel. Quando a rapariga faz doze anos, Max oferece-lhe um caderno de treze páginas, feito por si, a partir das folhas arrancadas a um exemplar de
Mein Kampf: pintou-as de branco antes de as ilustrar e legendar. Esse caderno está inserido no texto, sendo visíveis, sob a tinta raspada, fragmentos do livro que Hitler começou a escrever na prisão (nos anos 1920), e veio a tornar-se o guia ideológico do III Reich.
A Rapariga que Roubava Livros tem prólogo, dez partes distintas, e um epílogo que nos dá a conhecer o destino de Liesel e Max. Do conjunto faz parte uma pequena colecção de pensamentos de Liesel,
A Sacudidora de Palavras. A obra está construída a partir dos livros que Liesel leu entre 1939 e 1943. Os que roubou e os que recebeu de presente. Sabemos exactamente em que circunstâncias leu cada um deles. A noite do bombardeamento de Munique, por exemplo, deu-lhe oportunidade de ler cinquenta e quatro páginas.
Apesar de tudo, Liesel foi uma rapariga com sorte. Três vezes a morte a procurou, três vezes escapou dela. Não admira que a história seja contada (sim, narrada) pela
Morte herself. Naturalmente, o grau de sofisticação de Zusak impede a menor derrapagem.
Publicado em Da Literatura – por Eduardo Pitta
A MENINA QUE ROUBAVA LIVROSAutor: Markus Zusak
Romance, 500 páginas, 2007
Editora: Editora Intrínseca
ISBN Nº 85 980 78174