Experimentar Rothko
Alexandra Nunes Coelho - Londres (Público)
Os Murais Seagram são um "caso" da pintura do século XX. Mark Rothko pintou-os para um restaurante luxuoso de Nova Iorque, depois devolveu o dinheiro da encomenda e ficou com eles. Acabaram espalhados pelo mundo. Uma exposição na Tate Modern junta uma boa parte destas telas.
Entre 1958 e 1959, num antigo ginásio da baixa de Nova Iorque, Mark Rothko criou uma série de telas que se tornaram um caso na pintura do século XX. O autor, nascido na Rússia, em 1903, numa família judia, chegara a América de barco, com 10 anos. Quando acabou de pintar essa série mudou oficialmente o nome de Marcus Rothkowitz para Mark Rothko.
Que acontecera, entretanto, entre 1958 e 1959?
Elvis Presley foi incorporado no Exército e os franceses elegeram De Gaulle. A Síria e o Egipto juntaram-se na República Árabe Unida. Em Notting Hill explodiram motins raciais. Morreu o primeiro humano com HIV no Congo. Fidel Castro tomou o poder em Cuba e o Dalai Lama saiu do Tibete para o exílio. 9235 cientistas publicaram um apelo contra testes nucleares e o Alaska tornou-se um dos Estados Unidos da América. Nos cinemas, foi a época de "Gata em Telhado de Zinco Quente" e de "Vertigo". Publicaram-se "Breakfast at Tiffany's", de Truman Capote, "A Condição Humana", de Hannah Arendt, "O Teatro e o Seu Duplo", de Artaud, "Naked Lunch", de William Burroughs, "Doutor Jivago", de Boris Pasternak.
Este era o mundo enquanto Mark Rothko, fechado no seu estúdio da Bowery, onde antes treinavam equipas de basquete, pintou a sequência de telas que ficou conhecida como Murais Seagram.
E meio século depois - agora -, uma exposição em Londres junta pela primeira vez o maior número destas telas jamais reunido, tentando reconstituir o que estaria na cabeça de Rothko quando as pintou.
Pela primeira vez, porque esta série, concebida para ser vista como um todo, acabou estilhaçada entre Londres, Washington e Japão - o Kawamura Memorial Museum of Art tem nada menos que cinco pinturas, e é o parceiro decisivo da exposição que pode ser vista até 1 de Fevereiro. Entre mais de 60 obras expostas, os Murais Seagram são o eixo e o chamariz.
Seagram é um famoso edifício na Park Avenue, em Nova Iorque, concebido por Mies Van der Rohe, em colaboração com Philip Johnson. O projecto incluía o restaurante Four Seasons, até hoje um símbolo de requinte. Jonhson e a herdeira do império Seagram, também arquitecta, convidaram Mark Rothko a pintar os murais para as paredes. A encomenda significava reputação, dinheiro e a possibilidade de trabalhar uma série de grandes dimensões.
Rothko entusiasmou-se ao ponto de procurar um novo estúdio até encontrar o tal ex-ginásio no número 222 da Bowery, com altíssimo pé direito. E em Julho começou a trabalhar na série - grandes telas com fundos espessos em vermelho, carmim, castanho, negros, com rectângulos e quadrados mais escuros ou mais claros, como janelas ou cortes.
Depois dos seus primeiros anos figurativos, Rothko explicou que figurar era sempre mutilar, porque é impossível pintar verdadeiramente uma figura. Quis encontrar outra forma mais satisfatória, que temporariamente passou por figuras mitológicas, até chegar às grandes manchas geométricas de cor que o tornaram célebre.
Que procurava nessa temporada entre 1958 e 1959 quando concebeu os Murais Seagram?
Ele próprio deu algumas pistas numa conferência no Outono de 1958, em que alinhou uma espécie de itinerário para a criação da obra de arte.
1. Preocupação com a morte (a arte trágica lida com a morte).
2. Sensualidade (base para ser concreto em relação ao mundo).
3. Tensão (conflito ou desejo).
4. Ironia (auto-apagamento e desprendimento).
5. Graça e jogo (elemento humano).
6. Efémero e sorte (elemento humano).
7. Esperança (10 por cento de um conceito durável).
Rothko terminou os Murais Seagram em maio de 1959 e partiu em viagem à Europa, para visitar família. Foi então, ao tirar o passaporte, que mudou oficialmente de nome. E quando voltou pôs fim ao envolvimento com o Four Seasons - devolveu dinheiro e ficou com os quadros.
Como diz o curador da actual exposição na Tate, Achim Borchardt-Hume, até hoje correm diversas versões sobre a reviravolta de Rothko. Há quem diga que inicialmente o artista estava convencido de que o Four Seasons não iria ser um exclusivíssimo restaurante, mas sim uma cantina para os empregados do arranha-céus. Outros acreditam que a mancha inquietante das telas era afrontosa para os milionários que as tinham encomendado.
A caminho da escuridão
O nome de Rothko está escrito a vermelho vivo no quarto andar da Tate Modern, à beira-rio. O Tamisa ondula entre prata e castanho, e quase chove. Lá fora é mesmo Outono. Cá dentro cheira a café. Antes ou depois de sair de Rothko, é possível comer, beber e comprar merchandising - sacos, t-shirts, cachecóis, cadernos, postais, canecas Rothko. E na parede do café está a frase do artista que também abre o catálogo: "Se as pessoas querem experiências sagradas, encontram-nas aqui. Se querem experiências profanas, também as encontram aqui. Não tomo partidos."
Rothko pode ter declarado que não tomava partido entre profano e sagrado, mas tinha na cabeça comprar uma capela para expor as suas pinturas, e uma das suas sérias mais famosas é a da Capela de Houston.
"As pinturas têm de ser miraculosas", escreveu. Quando o artista completa a obra, termina a intimidade entre criador e criação, e a obra passa a ser de quem a vê. O criador é um "outsider" e a obra deve ser uma "revelação" para quem a olhe. Com centenas de visitantes é sempre mais difícil.
A exposição da Tate começa com uma sala de maquete e pranchas. Ao lado está a primeira experiência de uma tela grande, uma só, contra a parede, e as pessoas encostam-se naturalmente à outra parede, para a poderem ver. Chama-se "Four Darks in Red", quatro barras horizontais, de diferentes escuridões e larguras sob fundo vermelho.
A sala seguinte é um enorme salão rectangular, o centro da exposição. Aqui estão os Murais Seagram, os que vieram do Japão e os que vieram de Washington para se juntarem aos que a Tate tem na sua colecção. Luzes baixas, como Rothko pretendia.
14 telas enormes cobrem as paredes como superfícies opacas, mas com textura, com relevos, grão, espessuras diferentes consoante as acumulações de tinta. Primeiro são manchas, depois tornam-se tácteis. E ao fim de algum tempo formam imagens. Algumas parecem livros abertos, outras portas fechadas. Umas brilham, outras são opacas. Rodando no branco, parede a parede, parecem tentativas de rasgar a escuridão. E pela resistência, pela impossibilidade de serem penetradas, tornam-se inquietantes. É a continuação, a persistência, que as faz existir.
As salas seguintes são um caminho para o negro. Na sala seis há quatro telas preto-sobre-preto, em que as diferenças são dadas pelo brilho e pela textura, como quando sobrepomos cetim preto a carvão ou madeira preta. Na sala oito há telas duplas em cinza e preto, horizontes. A última sala parece uma floresta em que as telas formam a paisagem, sempre sob um céu negro, e a parede a interrompe. É uma paisagem muda, sem som, como alguém que tapa os ouvidos, ou se cala, virado para dentro.
"Pela primeira vez, a última fase do trabalho de Rothko é abordado através da ideia de séries", explica o curador, quando o Ípsilon lhe pergunta o que esta exposição revela sobre um dos artistas mais populares da segunda metade do século, considerado pelos detractores como algo decorativo.
"Muitos visitantes, entre eles muitos artistas, sentiram que começavam a ver os últimos trabalhos de Rothko a uma luz completamente nova, e ficaram impressionados pela modernidade contínua da sua visão da pintura, bem como pela extraordinária energia e bravura do seu trabalho final, que frequentemente tem sido ensombrado pela história da sua vida."
Publicado no Ipsilon (Público)