"Pareceria que, de fato, para o novelista de linhagem definida como fantástica, aquele que descreve mundos irreconhecíveis e notoriamente inexistentes, não se cogitaria sequer o confronto entre a realidade e a ficção. Na verdade, cogita-se sim, embora de outra maneira. A irrealidade da literatura fantástica torna-se, para o leitor, o símbolo ou a alegoria, o que significa dizer, a representação de realidades e de experiências que se podem identificar na vida. O importante é precisamente isto: não é o caráter realista ou o fantástico de uma imaginação que vai traçar uma linha de fronteira entre a verdade e a mentira na ficção."
Mário Vargas Llosa - La verdad de las mentiras
LUGARES MARAVILHOSOS E OS
RETRATOS DO POVO DE UM LUGAR
Aldyr Garcia Schlee
Lendo Carassotaque, de Alfredo Aquino, pus-me diante de um dos lugares maravilhosos (fantásticos, extraordinários, assombrosos, incríveis, inauditos), que só a literatura pode oferecer. Um mundo de sonho - às vezes inquietante, às vezes delirante; e de sonhadores - sempre surpreendentes e admiráveis.
O primeiro mundo de sonho que freqüentei foi Ophyr, onde a cada três anos as naus mandadas fazer pelo rei Salomão iam buscar ouro, prata e marfim - e surpreendentes bugios e pavões. Um lugar até hoje perdido na Bíblia e nos mapas, cujo nome com p-h-y encantava o guri de dez anos que eu era, além de povoar minha imaginação com sua inacessível fauna e sua inesgotável riqueza.
Quando meu tio Oscar passou a ler para mim a Odisséia, em espanhol, estive em todos os lugares mágicos de Homero, ilha a ilha, cidade a cidade, pelo mar e pelo céu, pelas cavernas e rios profundos, às voltas com as entidades mais extraordinárias e fantásticas que haveriam de me acompanhar para sempre; mas nunca esqueci os pequeninos e tenebrosos mundos insulares de Esquila - devoradora de pobres marinheiros inadvertidos - e Caríbide - que, apesar de toda a encantadora sonoridade de seu nome, era capaz de vomitar rios inteiros no mar, só para afundar em redemoinhos os navios de meus pesadelos.
Meu universo imaginário, estimulado pela mitologia e pelo cinema, encontrou no faroeste de Winnetou e no remoto oriente do Curdistão bravio duas referências geográficas importantes, logo complementadas pela selva africana de Tarzan. Mas, se Edgar Rice Burroughs ficou na África com seu homem macaco e não me fez ir além do mundo inventado de sua cidade esquecida de Ashair e de seu reino feminino de Alale, depois de eu andar perdido por seu continente de Pelucidar, o alemão Karl May (que nunca esteve nos lugares descritos e só parece ter estado nos lugares fabulados), esse alimentou a fantasia de todos os da minha geração além das inóspitas pradarias e dos intrépidos índios americanos, projetando-nos definitivamente em lugares e países de mentira tão maravilhosamente reais como os das
lendas de verdade, a partir do inesquecível Ardistão, cujo isolamento justificava seus segredos e enigmas; cujos déspotas tinham sempre o mesmo sonho, em que eram julgados por suas vítimas; e cuja capital Ard foi “a cidade dos mortos” (em que terá se inspirado Erico Verissimo, para criar a sua Antares).
Como não me encantar, então, com a pequena ilha do desespero ou da esperança, de Robinson Crusoe - que meu professor de inglês nos fazia explorar nas páginas de Daniel Defoe? Como não me reencontrar pasmado com as memoráveis façanhas da Ilha do Tesouro, que meu tio Emílio já me contara sussurrando, com seu olho de vidro, como se fossem coisa sua e não da pena de Robert Louis Stevenson?
A literatura de viajantes, centrada na geografia, nos costumes, na flora e na fauna de lugares remotos, haveria de ceder lugar definitivamente à literatura de viagens - les voyages extraordinaires - na rota de cidades e mundos imaginados.
Dentre essas cidades e mundos imaginados não estou repassando aqui os paraísos e infernos do mundo mítico e dos lugares do futuro da science-fiction, nem nos conhecidos lugares reais do faz-de-conta que a necessidade e a engenhosidade de quem os descreve e aborda escondeu sob nome falso, como a Macondo de García Márquez; a Santa Fé, de Erico Verissimo; ou a Santa María de Juan Carlos Onetti; ou mesmo o impronunciável Yoknapatawpha de William Faulkner; a Balbec de Marcel Proust; o Wessex de Thomas Hardy.
Entre o fazer-de-conta que não se inventa e o fazer-de-conta que só se inventa estão os mundos e cidades e coisas da pura imaginação. Desde os mistérios das ruínas de Blackland, de Jules Verne; os sonhos da caverna de Alastor, de Percy Shelley; a beleza do domínio de Arnheim, de Edgar Allan Poe; o terror da mansão de Baskerville, de Conan Doyle - até os cavalos de Abdera, de Leopoldo Lugones; o açude de Winton, de Graham Greene; o castelo ou a colônia penal, de Franz Kafka; a biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges; o país mutante, de Salman Rushdie; a abadia da Rosa, de Umberto Eco; as dezenove ou vinte cidades invisíveis de Ítalo Calvino - tudo pura invenção e fantasia fora do palpável e do localizável. Trata-se de uma outra realidade, como é próprio da realidade literária; mas esta outra realidade é, sim, uma realidade sem par: a realidade literária posta fora da realidade concreta, idêntica apenas a si mesma e escamoteando o verdadeiramente fático para fazer de conta que não se supre dele, que pode viver e parecer sem ele, e que é só ela, sozinha, extraordinária.
De certa maneira, os territórios dos homens puros, sadios e organizados da isolada Bensalém, de Francis Bacon; como os dos gigantes de Brobdingnag e o dos pequeninos de Liliput, de Jonathan Swift - tanto quanto os lugares fantásticos do País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e o mundo colorido de Oz, de L. Frank Baum - são igualmente extraordinários, bem como a aventura de conhecê-los. Mas, se a magia destes lugares e deste mundo está impregnada da fantasia do reconhecidamente impossível, enchendo de encantamento sua realidade ficcional; a magia de Besalém e das terras de Gulliver reduz-se à fantasia do aparentemente possível, oscilando entre o natural e o sobrenatural, na reprodução do almejado e na construção de uma utopia.
Quando o Brasil ainda estava sendo descoberto, inventou-se uma ilha chamada Utopia, como um padrão perfeito de organização e de vida social. A Utopia, de Thomas More, desde então tem sido o modelo clássico desse tipo de literatura fantástica e alegórica, com uma característica muito própria - a de ser propositiva, além de inventiva: ela não se conforma em criar um mundo ideal e desejável; ela o propõe, como alegoria, à curiosidade, à crítica e à aceitação do leitor.
É nessa trilha utópica - que Thomas More inaugurou e Francis Bacon seguiu, como tantos outros, descrevendo-nos e sugerindo-nos um mundo novo - que se inscreve, também Samuel Butler, com seu Erewhon, reino que guarda com Astral-Fênix, de Alfredo Aquino, uma coincidência: a sua presumível localização geográfica nas proximidades da Austrália (mas a oeste); revelando a dificuldade que existe para se encontrar no mundo real, conhecido e penetrável, um outro mundo simbólico e figurado que lhe sirva de lição.
Pois, vencendo essa dificuldade, Alfredo Aquino pôs sua insular República Federal de Austral-Fênix igualmente na Oceania, mas entre a Nova Zelândia e a América do Sul.
E, desde o detalhamento preciso de sua delimitação marítima, oferece-nos sua alegoria sob o intrigante título de Carassotaque.
Austral-Fênix é um incrível país em que as pessoas não têm olhos, boca, ouvidos... Suas feições se apagaram, apagaram-se seus rostos; e desapareceram suas caras, desapareceram suas cabeças. Quase repentinamente, as pessoas passaram a perder os seus rostos e as suas próprias cabeças, que já não podiam ser vistas em qualquer situação. Ninguém via a cara de ninguém: “era como se os olhares não se cruzassem nunca”. Havia passado um longo período de despotismo em que todos, indistintamente, tinham se dobrado à submissão e ao medo: ninguém mais fora capaz de encarar ninguém nas ruas, nos lugares públicos, rosto-a-rosto, olhos nos olhos, mesmo em casa, nas famílias. Aos poucos, todos baixaram as vistas, foram deixando de se ver - até que os rostos já não podiam ser vistos, as cabeças deixaram de ser vistas. Mas as cabeças continuaram existindo, estavam lá, íntegras, vivas, pensando; podiam até ser tocadas, sentidas pelo tato, e isso ninguém ousava fazer, pois elas tinham desaparecido.
Elas eram vistas através das lentes. Eram vistas nas publicações, nas emissões de TVs, nas imagens fotográficas, nos cartazes de rua, nos filmes, em tudo que era impresso - e nos espelhos.
No espelhismo de sua novela, Aquino utiliza um recurso característico do texto alegórico: a simplificação da escrita que aumenta e facilita a clareza da leitura; que, ao mesmo tempo, conduz e induz facilmente o leitor pelo estranho mundo descrito como se fora seu próprio mundo, ressaltando a alegoria do texto e impondo a reflexão (o refletir) entre o suposto e o acontecido, entre o inventado e o não-inventado, entre o que foi e o que poderia ter sido. Ele nos coloca diante de imagens em que nos vemos, envolve-nos em situações que nos comprometem, remete-nos a um incrível mundo em que acabamos por acreditar - embora não nos vejamos nele.
Em Austral-Fênix acreditava-se que o desaparecido nunca mais reapareceria: os rios, a floresta, os peixes, os rostos das pessoas... Mas, curiosamente, há em Austral-Fênix uma antiga canção popular que também diz: “Olhando no fundo dos teus olhos, vejo direto o teu sentimento; é a minha verdade o que atina o momento...” E há espelhos. E a fotografia; e fotógrafos. E revelações.
O espelhismo da novela de Alfredo Aquino, ficcionista, já se antecipara no espelhismo das pinturas do artista Alfredo Aquino, reproduzidas em um precioso álbum intitulado Alfredo Aquino - 25 Cartões Postais, publicado em 1995, numa primorosa edição Animae. Na apresentação desse livro de arte, Ignácio de Loyola Brandão já havia percebido que os rostos desapareciam nas pinturas de Aquino.
E - perguntando “onde estão os rostos da humanidade?” - observava que num mundo cada dia mais densamente povoado, as multidões enchem as ruas e o indivíduo desaparece, cancelando-se o eu em favor de uma turba sem rosto.
A propósito dessa peculiaridade da obra pictórica de Alfredo Aquino, Ignácio dizia: “hoje, quando, navegamos em razoável democracia, olhamos para os quadros de Alfredo Aquino e nos perturbamos com a quase total ausência de rostos. Ou melhor, os rostos existem, mas não os traços que definem olhos, boca, nariz, queixo. Acabamos transformados em um povo sem olhos - e como é possível adivinhar a alma, se os olhos inexistem? E como é possível falar, respirar, viver neste mundo sem boca e sem nariz? Aqui e ali, nem a cabeça existe, o que se vislumbra é algo deformado, não humano, irreal. Aquino retrata a perplexidade do homem dentro de uma realidade povoada por medo”.
Demonstrando a inquietação do povo brasileiro ante a falta de estabilidade e de trabalho, ante o aumento dos preços e a impossibilidade de se programar o futuro, ante a ausência de líderes e de administradores, ante a voracidade do empresariado, e lamentando a inconsciência cívica de todos nós, Ignácio encontra e revê nessa realidade, os homens e mulheres sem rosto do pintor. Percebe que tal realidade se amplia porque a inquietação não é somente brasileira; e conclui que nisso Aquino revela sua universalidade: “os homens sem rosto estão por toda a parte”.
Passaram-se treze anos desde a publicação desse livro de Alfredo Aquino e desde que se divulgou o texto acima citado de Loyola Brandão. O pintor Alfredo Aquino publicaria em 2004 Cartas/Lettres (Iluminuras), em parceria com o mesmo Ignácio de Loyola Brandão, para - finalmente, em 2007 - lançar seu primeiro livro como escritor: A Fenda (Iluminuras), no qual Luis Fernando Verissimo encontrou “um artista da palavra”.
É diante desse pintor e escritor que o leitor deste livro (Carassotaque) agora se vê e se encontra.
Aldyr Garcia Schlee
Capão do Leão, fevereiro de 2008